Por Gina Marocci
Salvador amanheceu sobressaltada em 8 de maio de 1624, quando foram avistados 24 navios de guerra holandeses, com canhões e uma grande quantidade de soldados de várias nacionalidades, holandeses, ingleses, irlandeses, escoceses, galeses e poloneses, todos pagos pela Companhia das Índias Ocidentais (Tavares, 2001), empreendimento composto por banqueiros e comerciantes que financiou a invasão da Bahia.
Mas, por que os holandeses investiram contra o Brasil? Muita gente não sabe que já pertencemos à Espanha, mesmo num período curto, de 1580 a 1640, sobre o qual falaremos de forma reduzida neste parágrafo. Foi na época do reinado dos Felipes de Espanha, iniciada quando D. Sebastião de Portugal desapareceu na batalha de Alcácer-Quibir (Marrocos, 1578), fato que, por conta do contrato de casamento da irmã dele, D. Manuela, com D. Felipe II de Espanha, determinou a União Ibérica, ou seja, a unificação das coroas espanhola e portuguesa.
Antes disso, Portugal tinha um forte comércio com a Holanda, principalmente nos portos de Lisboa, Viana do Castelo e Porto, com a importação de tecidos, pólvora e armas, e a exportação de sal, cortiça, azeite, peixe seco e açúcar proveniente do Brasil (Tavares, 2001).
No entanto, Espanha e Holanda tinham uma longa história de guerras e invasões, logo, com a união das coroas, os holandeses passaram a mirar também as colônias portuguesas, já que os portos portugueses estavam fechados para eles. Na Baía de Todos os Santos, antes de 1624, houve a tentativa de invasão em 1587, 1599 e 1604, que resultou no saque de engenhos do recôncavo.
No final do século XVI, a cidade possuía cerca de 4 mil habitantes e ultrapassara os muros, dos quais não havia mais vestígios, pois eles tiveram vida curta devido ao material de construção, a taipa, e ao rápido crescimento direcionado ao conjunto dos jesuítas (Oliveira, 2004). No estudo de Salvador em 1580, elaborado pelo Centro de Estudos da Arquitetura na Bahia (CEAB), se percebe a adição da área correspondente ao Terreiro de Jesus e ao Pelourinho. As ladeiras da Misericórdia, da Conceição e da Gameleira eram as principais ligações entre a cidade baixa e a cidade alta. Para além das portas da cidade, delineavam-se os caminhos para as ermidas de São Sebastião, ao Sul, e do Monte Calvário, para o Norte (Marocci, 2011).
Em 1604, com a vinda do engenheiro militar Francisco de Frias da Mesquita, para tratar da defesa do litoral brasileiro, elaborou-se o primeiro plano de fortificação de Salvador, com aprovação e ajustes de Leonardo Turriano, Engenheiro-mor baseado em Lisboa, e Tibúrcio Spanochi, Engenheiro-mor da Espanha (Oliveira, 2004). O plano abrangia a melhoria de fortes existentes, o reforço dos castelos das portas da cidade e a abertura de trincheiras.
Antes dessa intervenção, a cidade possuía nos pontos extremos o Forte de Santo Antônio (Ponta do Padrão) e de São Felipe (Monserrat). Segundo Oliveira (2004), o projeto reforçava as muralhas da cidade num perímetro maior e previa a construção de uma cidadela que ia desde a depressão da Misericórdia até a Porta de Santa Luzia (na atual praça Castro Alves).
Previa-se, também, a demolição de alguns edifícios, como o Tesouro e Alfândega, na Praça Municipal, e outras próximas às Portas de Santa Catarina (no largo do Pelourinho). Em 1621, Portugal e Espanha já sabiam que haveria uma nova tentativa de invasão dos holandeses e o novo governador-geral, Diogo de Mendonça-Furtado, ficou encarregado de recuperar os fortes e baluartes de Salvador, além de construir outros, porém, a tomada da cidade pelos holandeses em 1624 colocou à prova o sistema de defesa da cidade.
No dia 9 de maio de 1624, no reinado de Felipe IV (1621-1665), foram iniciados os ataques a Salvador, com o bombardeio do centro da cidade e do forte de Santo Antônio da Barra, local em que aconteceram lutas em terra e a tomada das regiões da Barra e da Graça até a capela de Nossa Senhora da Vitória (Tavares, 2001). Os navios mercantes portugueses foram incendiados e o avanço das tropas holandesas atingiu a cidade baixa, enquanto a população, atordoada, fugia das casas e conventos.
Ao perceber que a cidade não podia resistir aos invasores, o bispo D. Marcos Teixeira, acompanhado de alguns jesuítas, religiosos e religiosas, além de centenas de pessoas, refugiou-se na Quinta dos Padres (na atual Baixa de Quintas). Depois, eles fugiram para o aldeamento do Espírito Santo (atual Vila de Abrantes) chefiado pelos jesuítas.
No dia 10 de maio, as tropas holandesas chefiadas por Piet Heyn ocuparam uma cidade quase vazia, o governador-geral Mendonça-Furtado e membros do clero foram aprisionados. Johan Van Dort, designado para a administração militar, estabeleceu normas administrativas para a cidade, armazenou provisões na capela e no colégio dos jesuítas, aquartelou soldados nas igrejas e conventos do Carmo e de São Bento, e tratou de melhorar as defesas, com a limpeza do campo no entorno da cidade, a construção de defesas na ermida de São Pedro, no Santo Antônio Além do Carmo e no outeiro do Barbalho (Oliveira, 2004). O rio das Tripas foi represado para formar um dique, que alcançava o atual trecho das Sete Portas e, mais adiante, uma lagoa natural (Dique do Tororó).
Mesmo com o retorno de parte da população, os holandeses não conseguiram fazer a cidade retomar a sua vida normal. Também não conseguiram dominar os engenhos do recôncavo baiano e invadir outras capitanias, como haviam planejado. Por outro lado, os refugiados no recôncavo e no litoral norte começaram a organizar a resistência para a retomada da cidade.
Com o governador-geral preso, talvez morto, escolheu-se D. Marcos Teixeira para liderar as ações de resistência, que organizou 25 companhias chefiadas por 27 capitães (Tavares, 2001). Houve várias tentativas frustradas de retomar áreas estratégicas próximas à cidade, mas a morte de Johan van Dort, emboscado por soldados e indígenas na região de Água de Meninos foi um fato importante para a quebra do moral e da ordem administrativa e militar entre os invasores.
Grupos de emboscada se instalaram em Itapagipe, Itapuã, Rio Vermelho, Barbalho, São Pedro e São Bento, além da estrada da Vitória. Em Itaparica, soldados e indígenas tomaram armas, munições e embarcações dos holandeses. Outro grupo atacou a companhia holandesa e matou o sucessor de van Dorth, Wilhen Schouten (Tavares, 2001). Sucessivas emboscadas foram coordenadas sob o comando de Francisco de Moura Rolim.
Em março de 1625, chegaram reforços: uma esquadra composta por 52 navios, com 12.566 homens vindos de Portugal, Espanha e Nápoles, sob o comando de D. Fradique de Toledo y Osório e D. Manuel de Meneses. Com a ajuda de saveiros vindos do recôncavo, soldados desembarcaram na Barra e em Itaparica, e no dia 1º de abril, a esquadra entrou na Baía de Todos os Santos. As tropas desembarcadas iniciaram ataques por terra nas portas de São Bento e na colina das Palmas. Trincheiras foram abertas no Terreiro de Jesus, onde ocorreram os embates finais.
No dia 1º de maio de 1625 a cidade foi restituída, mas ocorreram novos atos de violência e saques praticados pelos soldados portugueses, espanhóis e napolitanos, o que provocou uma dura reação de D. Fradique que determinou vários enforcamentos. Uma parte dos soldados vindos com D. Fradique ficou na Bahia, o que provocou obrigações bastante pesadas para a população, como o pagamento do soldo e da manutenção da tropa na capitania.
Mesmo com a derrocada dos holandeses em 1625, a preocupação com a defesa da cidade tomou conta das iniciativas governamentais por todo o século. De 1625 até 1635, Frias da Mesquita ocupou-se em recuperar as fortificações danificadas pela guerra e construiu novos fortes com apoio do governador-geral Diogo Luiz de Oliveira.
Em Vila Velha foram erguidos os fortes de Santa Maria e São Diogo e em Pirajá, o Forte de São Bartolomeu da Passagem. Na cidade baixa, do extremo norte ao sul reforçou-se o Forte de Monserrate, construiu-se o Forte do Rosário (Água de Meninos), preparam-se várias trincheiras e no Forte de Santo Antônio da Barra construíram-se mais baterias.
Na cidade alta, construíram-se fortificações permanentes em Santo Antônio Além do Carmo, Barbalho e São Pedro. Iniciou-se, também, a construção do Forte de Nossa Senhora do Pópulo e São Marcelo (UFBA, 1998). Após o retorno de Frias da Mesquita a Portugal, a cidade ficou sem um engenheiro militar por algum tempo.
REFERÊNCIAS
MAROCCI, G. V. P. O Iluminismo e a urbanística portuguesa: Lisboa, Porto e Salvador no século XVIII. 2011. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.
OLIVEIRA, M. M de. As fortificações portuguesas de Salvador quando cabeça do Brasil. Salvador: Fundação Gregório de Matos, 2004.
TAVARES, L. H. D. História da Bahia. 10. ed. São Paulo: UNESP; Salvador, BA: EDUFBA, 2001.
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA. Centro de Estudos da Arquitetura na Bahia. Evolução Física de Salvador. Edição especial. Salvador: Fundação Gregório de Matos, 1998.