Por Doris Pinheiro
Convidamos o historiador, professor, curador, consultor e pesquisador em Cultura Material e Iconografia pela UFBA, Rafael Dantas, para falar sobre a origem e a importância do Dois de Fevereiro. Confira nossa entrevista!
Doris Pinheiro – Esta grande festa que acontece no Rio Vermelho, é para mim a representação em maior escala e pública de muitos e muitos presentes para a Rainha do Mar que acontecem ao longo da costa em todo o Brasil. O que se sabe da história desta festa do Rio Vermelho?
Rafael Dantas – O primeiro ponto a destacar é justamente essa importância que os mares possuem para a cidade de Salvador. Foram pelos caminhos marítimos que a nossa cidade surgiu, que a nossa cidade foi construída. E essa cidade marítima, essa cidade costeira, sempre teve costumes ligados às tradições de ressaltar a importância do mar, de influência de matriz africana, que em épocas passadas não eram permitidas como a gente vê hoje, mas também, expressões de referência de festividades católicas ou de santos que protegiam o caminho de pescadores, de marinheiros, etc.
No caso das expressões de fé, as expressões ligadas ao universo afro baiano, de matriz africana, especialmente as comemorações de Yemanjá no Rio Vermelho, a gente destaca a força da colônia de pescadores, isso especialmente no decorrer dos anos 20, do século 20. Antes essas festas aconteciam espalhadas por diversas áreas do litoral da capital baiana, principalmente na região subúrbio, na Ribeira Penha. No século 20 que esse costume começa a fincar raízes justamente nessa área, no Rio Vermelho, que já era conhecida pelas forças ligadas às atividades da pesca. E hoje, através do seu azul e branco, esta força está presente nos presentes, seja em flores, nos espelhos, na alfazema, entre outros adornos, nos balaios, que também caracterizam esses encontros de cultura que formam a nossa cidade, a identidade do povo da Bahia.
DP – O que representa para quem professa religião de matriz africana ter uma festa pública deste tamanho, sem nenhuma vinculação com o chamado sincretismo?
RD – O grande ponto que chama atenção é justamente a força, a resistência ao longo de todo esse tempo. É uma festa que já é centenária, já passou de 100 anos e ainda temos essa expressão de emoção, de vivacidade, de reverência às águas, de você oferecer os presentes à Rainha do Mar, à Yemanjá e ter esse protagonismo das comunidades dos terreiros, das pessoas ligadas a esse universo de matriz africana. Então isso é um exemplo de força de resistência de luta, de muita luta, porque nem sempre foi assim. Muita perseguição, muita contrariedade, muitos problemas também marcaram o desenvolver dessa atividade, desta liberdade de criar, de utilizar os espaços públicos, ao longo de todo esse período, tanto no 19, como especialmente no século 2. Então hoje vivermos está expressão de espontaneidade, de resistência. Me alegra, por ser baiano, por ser soteropolitano e mostra esta importância do protagonismo dessas tradições ligadas aos costumes de matriz africana, afro baianas, ao longo do tempo.
DP – Quando foi que começou esta grande festa que hoje reúne milhares de pessoas?
RD – É interessante falar que a tradição, o costume, a expressão de fé religiosa festiva de oferecer os presentes ao mar a Yemanjá não tem como o nascimento especificamente o Rio Vermelho. Outras tantas regiões de Salvador, outros tantos lugares da cidade de Salvador, onde era banhado pelas águas, também recebiam essas expressões, seja no âmbito do particular ou das comunidade já formadas. Não exatamente como a festa imponente que a gente encontra hoje no Rio Vermelho, mas expressões também onde já estava presente essa vontade, essa reverência.
Inicialmente vamos ter um cruzamento das festas que já existiam em fevereiro com essa prática na verdade ligada ao universo de religiões de matriz africana e aí sim o Rio Vermelho passa a ser esse destaque, que todo mundo conhece, que todo mundo vem inclusive para visitar e também para oferecer os seus presentes. Agora a festa começa no Rio Vermelho especialmente nos anos 20, fruto justamente da união desta comunidade de pescadores. Isso nos anos de 23. Existe uma certa dúvida em relação a data exata, mas na década de 20 do século 20 e é continuada através dos anos, das décadas seguintes. Mas antes do Rio Vermelho outros lugares também eram um palco para essa tradição de presentear, fazer as reverências à Yemanjá.
DP – De onde nasceram as festas de largo de Salvador e qual a importância de ter elas vivas!
RD – É interessante perceber que desde o primeiro momento que a cidade surge, já vem com festa, uma festa de cunho religioso, de cunho de procissão, uma festa de reverência no sentido católico, que era o grande norte das relações sócios culturais daquele contexto. Evidentemente paralelo a isso havia outras expressões ligadas a outras tradições, a outros dois outros povos que também estavam presentes na cidade de Salvador.
A grande questão era o que era permitido naquela época e o que não era permitido. Com o passar do tempo essa expressão popular, ganha muito mais dimensão, especialmente por conta da resistência da luta, especialmente do povo aqui da cidade, do povo negro. Isso vai se enraizando, se consolidando com muita expressão, com muita carga identitária desses encontros de cultura que formaram a cidade de Salvador e que formaram o povo do estado da Bahia e do Brasil ao longo de todo esse tempo.
Então as festas de largo na cidade geralmente surgem em volta das igrejas, em volta das paróquias, surgem nas casas das pessoas abertas para as praças. Tem todo esse enraizamento, tem todo esse compartilhamento de uma vontade de expressar sua fé em conjunto, em comunidade e é justamente a importância em mantê-las que mostra como é relevante, como é colorida essa pluralidade da nossa cultura porque as festas, assim como as feiras, assim como os outros espaços que estão tão carregado dessas expressões culturais, são mostras dessas faces da identidade do povo da Bahia, daqueles, daquelas que formam constantemente a nossa cidade, que constroem a nossa cidade nos seus atos de ser, de vivenciar, de experienciar a cidade e de fazer da cidade o que ela é.
Então o mais bonito, mais curioso de tudo isso é entender que essas festas são grandes reflexos desses panoramas de encontros, de desencontros de força, de resistência, do colorido de todos que estão dia após dia construindo uma cidade com suas expressões de fé, com suas expressões de futuro melhor e com preservação evidentemente do passado, com expressões ligadas a tradições e costumes antigos. Então a festa por si só personifica, representa esses encontros de história que formam a nossa história hoje.