Por Dr. José Lúcio Martins Machado
Quando uma pessoa opta por seguir a medicina como profissão, deve ter em mente que aprender e estudar se tornará um compromisso ético para com as pessoas que irá cuidar para o resto da vida. Ao lidar com gente em busca de nossos cuidados, estas esperam que o médico esteja sempre atualizado e apto a cuidar do nosso bem mais precioso: a saúde.
Uma vez ouvi de um colega docente: “Formar médicos com competência técnica é nossa obrigação. Nosso desafio é formar bons cidadãos que incorporem em sua prática os valores éticos e humanísticos”. O que significa ensinar a profissão e o cuidado com as pessoas com afeto, empatia e responsabilidade, sem esquecer do ser humano crítico reflexivo, e fazer diferença na transformação da vida no planeta através da saúde e da educação.
Afinal, que tipo de médico nosso país precisa?
Diria que é aquele que está ligado às diversas dimensões do complexo econômico industrial da saúde 4.0, ou seja, este médico precisa ter competência técnica, acuracidade no diagnóstico dos problemas de maior prevalência, decisões baseadas em evidências científicas e responsabilidade médica pela pessoa sob cuidado. Ele precisa ser sensato e analítico para desenvolver planos terapêuticos com foco na segurança do paciente e ter uma visão integradora do cuidado em saúde com pensamento holístico de forma única e indivisível do ser humano. Deve saber trabalhar em equipe, sem esquecer da compaixão pelas pessoas que estão sob seus cuidados.
Mas como é possível unir prática clínica de excelência com formação de caráter?
A experiência vivenciada relevante nos impacta, nos transforma e é a que levamos para o resto da nossa vida. O conceito de medicina humanizada só pode ser despertado se oportunizarmos vivências relevantes aos alunos. Em todas nossas escolas os estudantes se integram nas comunidades de entorno dos campi por meio de uma atividade longitudinal no currículo, chamada “Práticas Médicas no SUS” onde vivenciam, durante todo o curso médico, a realidade de nossa gente por meio da atuação no âmbito da Atenção Primária em Saúde junto às Unidades de Saúde da Família e de nossos Centros Integrados de Saúde.
Há dois anos, num projeto ambicioso, iniciamos uma atividade missionária junto à sete populações ribeirinhas do Rio Tapajós num Barco Hospital Escola, o Abaré, em parceria com a UFOPA, que intitulamos de Missão Amazonia. Já realizamos seis dessas missões onde pudemos levar mais de 200 estudantes e 60 professores para atendimento daquelas comunidades.
Conscientes da necessidade de elevarmos nossos níveis de consciência acerca de um planeta adoecido e que em determinadas regiões abandonadas pelo primeiro mundo, urge a necessidade de uma maior presença de ajuda e apoio humanitário, então organizamos uma expedição internacional rumo à Benin, quinto país mais pobre do continente africano.
Na Missão África, em um grupo de 44 pessoas, sendo 30 alunos e 14 docentes, passamos 10 dias atendendo ao ar livre, em consultórios improvisados sob sombra de árvores, com atendimentos sendo realizados em blocos de tijolo e bancos que serviam de maca para exames. Os alunos aprenderam muito sobre diferenças culturais e tiveram que se adaptar ao idioma local. Foram muitos os problemas com infraestrutura como falta de energia elétrica, falta de água potável, mosquitos, alimentos perecíveis e muito, muito calor.
Atendemos, em vilarejos locais, pessoas que nunca passaram por uma consulta médica na vida. Vimos e cuidamos de pacientes com escabiose, pediculose, tuberculose, malária, miíases dentro dos ouvidos, muitos hipertensos sem tratamento. Enfermidades passíveis de controle, lá estavam presentes em um número imenso de pessoas num ambiente de abandono e esquecimento pelo mundo desenvolvido.
Não existe serviço público de saúde, tudo é pago, e as pessoas mal têm acesso a alimentos e saneamento básico. Atendemos pessoas que estavam há três dias sem comer. As pessoas morrem de fome e de doenças banais pela simples falta de medicamentos básicos. Morrem doentes de hipertensão, diabetes, malária, tifo, raiva, tuberculose, hepatite.
Porém, em meio aquela realidade distante da condição de cidadania e dignidade humana, esquecidos pelo governo, políticos, pelas instituições, pelo mercado financeiro, pelo mundo, fomos recebidos de forma acolhedora, com muita festa e alegria, ecoando cânticos locais, muitos sorrisos, carinho e crianças curiosas sempre ao nosso redor. Após as consultas e distribuição criteriosa de medicamentos a palavra mais frequente e carregada de gratidão era “Merci, merci!!!”.
Os alunos lá presentes tiveram a possiblidade de vivenciar uma experiência singular, para muitos única, e refletir seu verdadeiro papel na construção de uma sociedade mais justa e menos desigual. Uma oportunidade para estudantes fazerem algo que nunca imaginaram: aprender além dos muros da escola numa missão humanitária internacional.
Foi uma vivência digna de formação de lideranças acadêmicas e da saúde. De lá, saímos melhores médicos, com maior nível de consciência sobre cidadania, empreendedorismo e responsabilidade social, melhores pais e mães de famílias. Meu papel e dos demais professores foi apoiar os alunos em um profundo processo de transformação. E aprender com eles e com o povo de Benin. No próximo ano, se Deus nos permitir, lá estaremos de volta, com outros 40 estudantes oferecendo nossa ajuda e apoio e lapidando a formação de bons médicos, tão necessários ao nosso país e ao mundo em que vivemos.
* CMO (Chief Medical Officer) da Inspirali