Por Vilson Caetano
Rainha do Mar é mais um título da mãe dos orixás. Assim como Yemanjá, “mãe cujo filhos ou filhas são peixes.” Fato é, que a divindade dos egbá, cultuada no rio Ogun, migrou para outro lugar chamado Abeokutá e certamente de lá, seguiu para o Novo Mundo e se tornou o orixá mais cultuado da diáspora negra africana.
Dentre os iorubás, Yemanjá é um dos orixás mais importantes. Símbolo da fertilidade, ela aparece sempre ao lado de Obatalá, aqui chamado também de Oxalá. Há quem diga que ambos formam o par mítico da criação. Chamada também de “dona da cabeça”, ou iya ori, que não pode ser traduzido como “pensamentos”, pois o conceito de ori é muito mais amplo entre os yorubas, Yemanjá é responsável pelo equilíbrio do mundo.
Por conta disso, ora ela está no céu como a estrela que ultrapassa a noite e perdura até o dia amanhecer, ora nas águas que correm em todas as direções. Quando corre como rio chama-se odô, daí a expressão Odo Iya, mãe do rio; mas também quando corre sobre a terra, recebe o nome de ossá, a lagoa; quando corre no mar, é chamada de okun e por fim,recebe o nome de ajê, as riquezas. Nas histórias sobre Yemanjá, o mar, a lagoa, o rio e as riquezas aparecem como personagens associados a ela.
É ainda Yemanjá um orixá da guerra. Este aspecto da Rainha do Mar ficou comprometido entre nós graças a influencia cristã católica que a associou desde cedo à virgem Maria, em especial á figuras de Nossa Senhora dos Navegantes e Nossa Senhora da Guia, celebradas pela igreja católica no dia 02 de fevereiro. De acordo com algumas histórias, foi Yemanjá quem teria ensinado o orixá Ogun a lutar. Sem falar do dia em que Yemanjá venceu um exército que marchava contra o reino de Xangô, levantando o seu espelho e multiplicando o numero de guerreiros e guerreiras.
Acertadamente foram os africanos yorubas oriundos de Oyó que introduziram e mantiveram o culto a Yemanjá entre nós. Posteriormente este culto foi fortalecido por outras modalidades de religiões afro-brasileiras existentes no Brasil a fora.
Na cidade de Salvador, cidade à beira mar, como tantas outras, a mãe dos orixás recebia culto em vários locais. Na região da Barra onde até a década de 30 se colocava um presente; no Monte Serrat, no local conhecido como pedra da sereia; em Itapoan; Amaralina e no Rio Vermelho, ainda quando este era um rio, nas imediações do atual Largo da Mariquita.
É o presente às águas uma de nossas maiores heranças africanas. Chamado de Ebún, ainda hoje é comum nas cidades da Nigéria, “dar comida às águas.” Esta ideia esta presente no que aqui vamos chamar de “mito fundante do presente do Rio Vermelho.” De acordo com a história, a falta de peixes teria motivado o presente realizado não apenas pelos “homens do mar”, mas também por mulheres, porque a priori são as mulheres quem preparam os presentes. Então, precisamos começar a contar esta história de maneira diferente. Em troca, Yemanjá retribuiu com muitos peixes, garantindo o sustento de todas as famílias.
Dia 02 de fevereiro, assim, é dia de agradecer e pedir a Yemanjá pela nossa vida e pelo nosso sustento. É dia de celebrar, dia de dançar, festejar, encontrar amigos e amigas. É dia em que pescador e marisqueira não trabalham, pois “guardam” a fim de reverenciar a Rainha do Mar.
Outra curiosidade é que desde cedo os africanos de nação ijexá, graças à sua relação com as águas, tomaram para si a responsabilidade da organização destes presentes. Foi assim que um candomblé conhecido como Língua de Vaca, que funcionava onde hoje é o Departamento de Polícia Técnica da Bahia, no início da Av. Centenário e próximo ao Dique do Tororó, organizou durante muitos anos o presente de Yemanjá dos pescadores do Rio Vermelho.
Este é pois um dos motivos pelo qual, antes de seguir para bairro do Rio Vermelho, um presente é colocado no Dique do Tororó, dedicado ao orixá Oxun. Oxun é um dos orixás mais importantes para o povo ijexá. Reverenciar Oxun no Dique do Tororó é fazer memória a este grupo que foi fundamental para a consolidação do presente, do candomblé na cidade de Salvador e de uma de nossas maiores expressões: os afoxés.
São pois estas histórias que a festa de Yemanjá reúne. E se a cada ano, essa festa cresce, aumenta também o compromisso com a nossa ancestralidade. Hoje são vários desafios, dentre eles o de afirmar a festa de Yemanjá como a maior festa de origem africana na cidade de Salvador. Porque não basta ser a cidade mais negra fora do Continente Africano, é preciso ocupar todos os espaços da cidade. A festa de Yemanjá traz pontos que precisamos está atentos, como por exemplo, “o que colocamos no mar.” Eu sempre insisto que a referencia é “oferecer aquilo que o peixe come” , afinal também nós não consumimos toneladas de produtos que são produzidos e despejados pela anualmente nos oceanos. Todos e todas precisam cuidar do mar. Precisamos nos cuidar mais. Tomarmos conta um dos outros. É, pois, esse cuidado, o maior sentido do presente oferecido às águas, afinal, somente quem vive e depende do mar, sabe o que significa ir e vir todos os dias de dentro delas. Sabe, por fim, o que significa celebrar com cantigas, mas também presentes, pois estes são fundamentais para o equilíbrio de todos nós.
Vilson Caetano é professor da Escola de Nutrição e do Programa de Pós Graduação em Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia. Desenvolve pesquisas na área de populações afro-brasileiras e possui vários trabalhos relacionados às comunidades e povos tradicionais. É autor de vários livros, dentre eles: Banquete Sagrado, notas sobre os de comer em terreiros de candomblé; Corujebó, candomblé e polícia de costumes (1938 a 1976); e Ijexá, o povo das águas.