Neta de um cambista que vendia ingressos da Noite da Beleza Negra na porta da festa, Lorena foi eleita princesa em 2024 e decidiu: “Quando eu voltar, vou brocando”
Fotos: André Frutuoso
“Pronto, pronto, gente, acalmem-se.” Essa foi a fala da apresentadora Arany Santana para a plateia após a apresentação de Lorena Xavier no palco da Senzala do Barro Preto, na noite do último sábado (15), durante a 44ª Noite da Beleza Negra. Ao som da canção Ilê Original, a eleita Rainha do Ébano 2025 arrepiou a torcida com uma coreografia impecável e contagiante, pondo em prática a determinação que teve ao levar o título de princesa na Noite da Beleza Negra do ano passado: “Quando eu voltar, vou brocando”.
Lorena mora em Itapuã, tem 22 anos e mais de 30 mil seguidores em suas redes sociais (@rainhalorebispo). Além de influenciadora, é dançarina e escritora. Mesmo com toda sua espontaneidade, ela conta que ficou em choque com a reação crescente da torcida durante sua aparição no palco. “Isso me surpreendeu demais. Quando vi aquele mar de gente gritando… tomei um barravento ali”, comentou, rindo. “Mas entendi que a nossa energia contagia as pessoas, e elas são inundadas pela nossa dança. Eu realmente não acreditei que tinha tanta gente gritando por mim, isso me marcou muito”.
Agora vestida com seu manto de realeza, Lorena vibra com a missão de conduzir milhares de negonas e negões malassombrados daqui a duas semanas, durante o Carnaval cinquentenário do bloco afro mais antigo do Brasil. “Esse troféu não é um status, é um espaço poderoso de transformação, e eu quero perpetuar meu reinado de um jeito que reverbere na história de outras tantas pessoas, estimulando mais mulheres a ocupar esse cargo com sabedoria.”
Avô cambista – A primeira vez que a mãe de Lorena entrou para assistir a uma edição da Noite da Beleza Negra foi no ano passado, quando a filha foi eleita princesa. Antes disso, a imagem das realezas negras bailando imponentes só existia na imaginação de dona Rosângela, que escutava o pai contar sobre os anos em que trabalhou como cambista na porta da festa.
“Meu avô, já falecido, vendia ingressos, mas nunca colocou minha mãe aqui dentro… por várias situações. Mas ele contava a ela como acontecia a Noite da Beleza Negra, como muitas negonas, vestidas como deusas, bailavam e reinavam. Minha mãe sempre teve o desejo de viver esse lugar, mas, enquanto menina preta, naquela época, não sentia que tinha legitimidade, a realeza dela não era convocada. Então, a primeira vez que ela acessou a sede do Ilê Aiyê foi em 2024, quando me viu ser consagrada como Princesa do Ébano. E agora, em 2025, ela me vê ser consagrada como Deusa do Ébano. Isso não tem como não reverberar nela também. Ela é uma grande Deusa do Ébano, uma inspiração para mim.”
Princesas – A noite de ontem também entrou para a história da psicóloga Tainã Santana Vieira, 31 anos, moradora da Lapinha, eleita Princesa do Ébano em segundo lugar, e da arte-educadora Stéphanie Ingrid Souza, 23 anos, moradora do bairro da Santa Cruz, que conquistou o terceiro lugar e também reinará como princesa do Ilê Aiyê no Carnaval 2025.
“Concorrer a Deusa do Ébano sempre foi, para mim, uma missão social — um símbolo de visibilidade para outras mulheres negras da comunidade. Mas, depois de ter minha filha, esse propósito ganhou um novo significado. Quero que ela cresça fortalecida em sua identidade de criança e mulher negra, e encontrei nesse concurso uma ferramenta poderosa para isso. Hoje, ela é a minha inspiração, e eu quero ser essa referência viva para ela — um espelho de empoderamento e beleza negra, algo essencial para nossas crianças”, comentou a vice, Tainã Vieira.
Para Stéphanie, que concorreu pela segunda vez, o Ilê Aiyê é uma grande escola de transformação. “Desde pequena, os tambores do Ilê ecoavam sobre o meu corpo e me encantavam. Eu olhava para a Deusa no trio e sonhava: ‘Imagine eu ali em cima!’. Hoje, esse sonho se tornou realidade, e chegar ao pódio é uma vitória incrível porque esse lugar é o nosso por direito ancestral. Carregar esse título é uma grande responsabilidade. Para quem sonha, eu digo: não desistam. O caminho pode ser árduo, mas somos fortes, somos pretas, empoderadas, malassombradas — e tudo que for para ser nosso chega até nós”, comemorou.
Espetáculo lindo de ver – Muito além de um concurso de beleza, a Noite da Beleza Negra é uma celebração da arte preta. Com o tema “Curuzu é o mundo – E a porta de entrada é a percussão”, o espetáculo reafirmou o evento como a mais importante ação afirmativa do bloco afro, provando o quanto o Ilê Aiyê sabe caprichar e emocionar quando a missão é passar sua mensagem de protagonismo negro para o mundo.
Numa das edições mais bonitas, a plateia cantou alto durante a interpretação da canção Fé, de Iza, pelas atrizes Jennifer Nascimento e Cris Vianna, e vibrou com a cantora Larissa Luz em sua performance, que narrou a história de resistência do Ilê Aiyê em meio a lutas raciais e sociais, exaltando a percussão como símbolo de liberdade. Depois, ela entrou cantando Tututu e Meu Sexo junto com a orquestra Aguidavi do Jêje. A apoteótica Rachel Reis fez o show de encerramento como a grande atração convidada musical do evento.
Artista do corpo e da alma – Um dos momentos mais esperados e especiais da noite foi a homenagem à figurinista do Ilê Aiyê, Dete Lima, que desde 1974 transforma tecidos e amarrações em símbolos da beleza e sofisticação do bloco. A atriz Denise Correia convidou para uma viagem no tempo pela história da Ekedi mais velha do terreiro Acé Jitolu, enquanto um desfile de deusas de reinados anteriores celebrou a história contada pelas mãos da artista.
“Com este desfile, celebramos a vida de uma mulher que faz arte, ciência, psicologia e muito mais. Ela veste as deusas, veste as pessoas, veste os corpos, mas, acima disso, veste o pensamento, veste a alma, veste a autoestima. se o ilê aiyê é o mais belos dos belos, tudo passa pelas mãos dela. Mãos cheias de poder, mãos que traçam caminhos, que apontam o horizonte, que moldam futuros, mãos cheias de talento. No Quênia começou a jornada da vida. E aqui no Ilê Aiyê, a memória nunca é esquecida. E nós agradecemos a Mãe Dete por nos contar essa história”, destacou a artista.
A apresentadora Val Benvindo entregou a Mãe Dete o troféu: “É com muita emoção que reverenciamos Dete Lima, minha dinda, por todos esses anos de Beleza Negra. É a senhora que nos torna mais belas, mais empoderadas e mais representantes de nós mesmas. Em nome de todos aqui hoje, neste Ilê, pedimos sua bênção e te reverenciamos com esse troféu”.
Ainda tornaram a noite inesquecível com suas atuações marcantes no palco a anfitriã Band’Aiyê, o coletivo Afrobapho, a personagem Koanza como apresentadora-surpresa — ao lado de Arany Santana, Val Benvindo e Sandro Teles —, a Deusa do Ébano 2024, Larissa Valéria, que passou o manto para a nova rainha, além das tantas dançarinas e percussionistas que embalaram a vibração da noite. A direção artística foi assinada por Ridson Reis.