Por Gerson Brasil
Décima novela da Terceira Jornada do Decamerão de Giovanni Boccaccio, quando a carne encontra guarida na volúpia, mesmo sendo santa. São 100 histórias escritas por Boccaccio em 1353, durante a Peste Negra. Aquele que deu o nome de Divina à Comedia de Dante, olha para a volúpia das mulheres, o celibato obsceno dos clérigos, as trapaças dos comerciantes, a perseguição e ódio ao amor cortês enfim, é uma sátira do mundo medieval, cujas tintas preservamos. O que se segue é um pequeno extrato da novela. O livro pode ser comprado nas livrarias, editoras, no Amazon e na Estante Virtual. Il Decamerone foi a obra mais traduzida do século XV; em Catalão em 1429, em alemão em 1472, a francesa, 1485, a espanhola, 1496.
– Graciosas senhoras, talvez nunca tenham aprendido como se põe o diabo no inferno; por essa razão, sem me afastar muito do tema sobre o qual se conversou o dia inteiro, quero dizer como se faz isso; aprendendo, as senhoras talvez ainda possam salvar a alma e também ficar sabendo que o Amor, embora prefira morar em palácios alegres e alcovas refinadas a morar em pobres choupanas, nem por isso deixa de às vezes fazer sentir suas forças nos densos bosques, entre as ríspidas montanhas e nos ermos antros; por isso se pode entender que tudo está submetido ao seu poder.
Portanto, indo aos fatos, digo que na cidade de Capsa, na Berberia, houve outrora um homem riquíssimo, que, entre alguns outros filhos, tinha uma filhinha linda e graciosa, cujo nome era Alibeck. Esta, que não era cristã, ouvindo dos muitos cristãos da cidade loas à fé cristã e ao serviço prestado a Deus, um dia perguntou a alguém de que maneira se podia servir a Deus com menos impedimentos. Responderam-lhe que as pessoas que serviam melhor a Deus eram aquelas que mais fugiam às coisas do mundo, como quem tinha ido para as solidões dos desertos de Tebaida. A jovem, que era muito ingênua e tinha cerca de quatorze anos de idade, movida mais por ímpeto pueril que por desejo refletido, sem pensar duas vezes e sem ouvir ninguém, na manhã seguinte se pôs às escondidas e sozinha a caminho do deserto de Tebaida; e, com grande canseira, sem que sua vontade esmorecesse, depois de alguns dias alcançou aqueles ermos. Vendo de longe uma casinha, para ela se dirigiu, encontrando à porta um santo homem que se admirou muito de vê-la por lá e lhe perguntou o que estava procurando. Ela respondeu, que, inspirada por Deus, ia à procura de um modo de servi-lo e precisava de alguém que lhe ensinasse como.
O bravo homem, vendo-a jovem e tão bela e temendo ser enganado pelo demônio, caso a mantivesse lá, elogiou sua boa disposição e, depois de lhe dar umas raízes, frutos silvestres e tâmaras para comer e água para beber, disse: – Filha, não muito longe daqui há um santo homem que, para isso que você está procurando, é mestre muito melhor que eu; vá falar com ele.
E ensinou-lhe o caminho. Ela, indo até lá e ouvindo as mesmas palavras, foi prosseguindo até que chegou à cela de um eremita jovem, pessoa bastante devota e boa, cujo nome era Rústico, a quem fez a mesma pergunta que fizera aos outros. Ele, para submeter sua firmeza a uma grande prova, não a mandou prosseguir caminho como os outros, mas a recebeu em sua cela; e, chegando a noite, fez-lhe uma caminha de folhas de palmeira a um canto e disse-lhe que descansasse ali.
Feito isso, não demorou muito para que as tentações viessem fazer batalha contra as forças dele, pois ele, que havia muito tempo estava sendo traído por
elas, não precisou de muitos assaltos para abandonar o campo e capitular. Deixando de lado os pensamentos santos, as orações e as disciplinas, começou a rememorar a juventude e a beleza dela e a pensar por quais vias e modos lidaria com a moça, para que ela não o percebesse como um homem dissoluto a obter aquilo que dela desejava. E, experimentando primeiramente com certas perguntas, deu-se conta de que ela nunca conhecera homem e de que seria simples como parecia; e assim imaginou um modo de levá-la a satisfazer seus desejos achando que estava servindo a Deus. Primeiramente, com muitas palavras, mostrou-lhe como o diabo é inimigo de Nosso Senhor e, depois, lhe deu a entender que o serviço mais grato a Deus era meter o diabo no inferno, ao qual Nosso Senhor o condenara.
A mocinha perguntou como se faria isso. Rústico disse:
– Logo vai saber; para isso, faça tudo o que eu fizer.
E começou a despir as poucas vestes que tinha, ficando completamente nu; a mocinha fez o mesmo; ele ficou de joelhos como que em adoração e mandou-a fazer o mesmo à sua frente.
E, estando assim os dois, ao vê-la tão bela, Rústico, mais que nunca, inflamou-se em seu desejo e então deu-se a ressurreição da carne; Alibeck muito se admirou quando a viu e disse:
– Rústico, que coisa é essa que estou vendo em você, assim esticada para fora, que eu não tenho?
– Oh, minha filha – disse Rústico –, é o diabo de que lhe falei. Está vendo?
Agora ele está me incomodando tanto que mal posso suportar.
Então a jovem disse:
– Oh, louvado seja Deus, pois vejo que estou melhor que você, porque não
tenho esse diabo aí.
Rústico disse:
– Tem razão, mas em vez dele você tem outra coisa que eu não tenho.
Alibeck disse:
– O quê?
Rústico disse:
– O inferno; e digo-lhe que eu creio que Deus a mandou aqui para a salvação da minha alma, pois esse diabo vai ficar me atormentando desse jeito, e você, se tiver piedade de mim e permitir que eu o meta no inferno, a mim vai dar grande consolo, e a Deus, enorme satisfação e serviço, se é que veio a este lugar para fazer o que diz.
A jovem respondeu de boa-fé:
– Ó, meu pai, já que tenho o inferno, que seja como quiser o senhor…
Rústico disse:
– Minha filha, bendita seja; então vamos metê-lo ali, para que ele depois me deixe em paz.
E, dizendo isso, levou a jovem para uma daquelas caminhas e lhe ensinou como era preciso ficar para aprisionar aquele amaldiçoado de Deus.
A jovem, que nunca tinha posto diabo nenhum no inferno, na primeira vez sentiu-se um tanto incomodada, pelo que disse a Rústico:
– É verdade, meu pai, muito má coisa e inimigo mesmo de Deus deve ser
esse diabo, porque se até no inferno machuca quando é posto para dentro, imagine em outros lugares.
Rústico disse:
– Filha, nem sempre será assim.
E, para evitar que isso acontecesse, antes de saírem da caminha o puseram para dentro umas seis vezes, até que da última vez lhe baixaram a tal ponto a cabeça soberba que de bom grado ele sossegou.
Mas, como a soberba retornou depois várias vezes, e a jovem obediente sempre se dispôs a dobrá-la, aconteceu que ela começou a gostar da brincadeira, e dizia a Rústico:
– Estou vendo que era verdade o que diziam aqueles bravos homens de Capsa, que servir a Deus é tão bom; e de fato não me lembro de nunca ter feito nada que me desse tanto deleite e prazer como pôr o diabo no inferno; por isso acho que qualquer pessoa que faça outra coisa que não seja servir a Deus é uma besta.
Por isso, muitas vezes ela se aproximava de Rústico e dizia:
– Meu pai, vim aqui para servir a Deus e não para ficar sem fazer nada; vamos pôr o diabo no inferno.
E depois de fazer isso às vezes dizia:
– Rústico, não sei por que o diabo foge do inferno; porque, se ele gostasse de ficar no inferno como o inferno gosta que ele entre e fique, não sairia nunca.
Assim, pois, convidando tantas vezes Rústico e incentivando-o a servir a Deus, a jovem lhe consumira a tal ponto o enchimento do gibão que ele sentia frio em horas nas quais um outro teria suado; por isso, começou a dizer à jovem
que o diabo só devia ser castigado ou posto dentro do inferno quando levantasse a cabeça por soberba:
– E nós, pela graça de Deus, o esclarecemos tanto, que agora ele está pedindo sossego a Deus.
E assim impôs certo silêncio à jovem.
Mas ela, vendo que Rústico já não lhe pedia que pusesse o diabo no inferno, disse um dia:
– Rústico, se o seu diabo já está castigado e não o incomoda, a mim o inferno não dá paz; por isso seria bom que você, com o seu diabo, ajudasse a acalmar a fúria do meu inferno, assim como eu com o meu inferno ajudei a acabar com a soberba do seu diabo.