Por Antonio Albino Canelas Rubim – pesquisador e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Os traumáticos anos recentes e a “guerra cultural” vigente demonstram que a cultura não está fora do mundo, com seus cantos, encantos e desencantos.
De 4 a 8 de março se realiza a IV Conferência Nacional de Cultura, em Brasília. Ela ocorre em meio a muitas disputas político-culturais no Brasil e no mundo. No momento quando esse texto é escrito, a corajosa e necessária fala do presidente Lula sobre o genocídio em Gaza repercute muito mais que os 30 mil palestinos assassinados, maior número proporcional de crianças, mulheres e civis mortos em qualquer conflito humano recente. Tal violência, em verdade, foi gerada pelo apartheid imposto pelo governo de extrema-direita de Israel em Gaza e na Cisjordânia. A repercussão da fala de Lula demonstra sua liderança internacional em busca da paz, ao dizer o que muitos queriam e precisavam falar, mas que se calavam, de modo vergonhoso, ante a barbárie, o medo e a conivência. Em sentido contrário, a repercussão mostra como a fala está sendo manipulada pela direita e pela mídia, nacionais e internacionais, na ‘guerra cultural’, agendada no mundo e no Brasil. Esquecer tal disputa político-cultural-ideológica é hoje, risco e perigo.
A IV Conferência Nacional de Cultura acontece em um ambiente tenso, perpassado de intensos conflitos, inclusive aquele central para a humanidade e para o Brasil: a disputa entre autoritarismos, muitos deles em tonalidade neofascista, e democracias, restritas apenas ao modo de governar o Estado ou amplas, acolhendo a democratização do Estado e da sociedade, permeada hoje por desigualdades de toda ordem, inclusive das distintas relações de poder existentes. A histórica desigualdade social e os recentes ataques à democracia em 2016, 2018 e 2023 agendam a democracia como dado crucial para a vida e a política na atualidade brasileira.
O desafio central da IV Conferência Nacional de Cultura é não esquecer tal cenário, colocar-se em sintonia fina com ele, e ser capaz de instalar a democracia no centro de seus debates e de suas deliberações. O tema da Conferência, ‘Democracia e Direito à Cultura’, pode ajudar a dar centralidade à democracia, mas em muitas conferências municipais, setoriais e estaduais nem sempre foi o que aconteceu. Nelas, prevaleceu a discussão mais corporativa das temáticas inerentes ao campo cultural com suas justas demandas. Em tais conferências se notou a preocupante desatenção das conexões entre cultura e democracia, em seu horizonte mais ampliado.
Articular as demandas político-culturais específicas e a questão democrática é essencial para o sucesso da conferência; do imprescindível desafio de dar centralidade à cultura no contexto brasileiro atual e mesmo da própria vigência atualizada da democracia em terras brasileiras. Uma conferência apenas voltada para as justas demandas do campo cultural, por mais importante que elas sejam, não vai estar em sintonia viva como a necessidade mais urgente do Brasil hoje: a afirmação, consolidação e aprofundamento da democracia e a superação das variadas modalidades de autoritarismos, que ferem a história e que persistem em nossa atualidade, servindo de alicerce: às forças neofascistas, às violências físicas e simbólicas; e às atitudes de incivilidade, que assolam o país.
Tal colagem não se viu, de modo satisfatório, até agora. A conferência nacional tem o enorme desafio de (re)engendrar a articulação entre cultura e democracia, que foi tão significativa em variados períodos da nossa história, inclusive nos momentos recentes de luta contra a barbárie bolsonarista. O campo da cultura, em sua quase totalidade, atuou como agente político-cultural efetivo, que se contrapôs às atitudes autoritárias da gestão genocida e obteve improváveis vitórias em ambiente adverso e hostil à cultura. Nesse horizonte, as leis Aldir Blanc I e II e a Paulo Gustavo são conquistas político-culturais admiráveis.
O primeiro ano do terceiro governo de Lula, apesar das imensas dificuldades advindas do desmantelamento do Estado nacional nas mais diversas áreas, inclusive na cultura, trouxe novas realizações, como a árdua recriação e reconstrução do Ministério da Cultura e a extensa implantação das leis Paulo Gustavo e da Lei Aldir Blanc II. Mas mostrou fragilidades, a exemplo: das vagas bem aquém das necessidades da cultura, contempladas no concurso nacional unificado para contratação de funcionários públicos; das poucas atividades e discussões relativas às políticas culturais, à implementação frágil da democracia cultural e ao tênue avanço da cultura democrática, inibidos, dentre outros, pelo fetichismo do dinheiro, que tomou o ambiente cultural, em detrimento da atenção com enlaces entre cultura e democracia.
Ter recursos é indispensável para uma área tão carente de recursos na história como a cultura, mas eles não podem substituir as políticas culturais, pois elas devem orientar as políticas de fomento e financiamento e não acontecer o inverso. Mais que isto, a presença do dinheiro, dado seu imanente fetichismo na sociedade capitalista, com suas expressões reificadas do tipo “o dinheiro pode tudo”, inibiu o desenvolvimento das políticas culturais e da cultura, de modo perverso, ao dificultar a reflexão e o debate, tão inerentes à cultura, por conta da invasão do ambiente cultural pelo fetichismo do dinheiro, que em sua onipresença tende a reduzir as atividades à busca incessante por ele, canibalizando as falas e deprimindo a imaginação utópica de alternativas.
Não se pode perder a oportunidade ímpar na história de dar centralidade à cultura. Hoje, como nunca, o orçamento da cultura teve aumento substantivo, ainda que não o ideal, mas muito acima de qualquer outro momento da vida nacional. Somem-se a isso as amplas verbas advindas de outras áreas. Recentemente, a Petrobras disponibilizou os maiores recursos de sua história para a cultura. Tal contexto, com todas suas potencialidades, fez emergir o desafio atual de construir a centralidade da cultura na sociedade e no Estado. Diversos caminhos, nada fáceis e simples, existem para alcançar tais objetivos. Um deles, reconhecer a cultura como fator de desenvolvimento e buscar tecer sua centralidade na sociedade e no Estado em diálogo com sua dimensão econômica, com todas as possibilidades e perigos da alternativa. Sem cultura não há plenitude de desenvolvimento na sociedade. Outro itinerário, que conforma a centralidade da cultura na sociedade e no Estado, deriva do seu reconhecimento como componente essencial para a construção democrática, por meio da produção e/ou da difusão de bens simbólicos, que alimentem culturas e valores democráticos. Sem cultura não há democracia em seu sentido mais pleno.
Colocar a democracia no centro da cultura e das políticas culturais significa discutir e deliberar como a cultura, em sua diversidade e pluralidade de manifestações, pode acolher e dotar a sociedade de bens e serviços culturais, que: suscitem e consolidem valores democráticos; colaborem para superar desigualdades sociais; respeitem as diferenças; humanizem pessoas e suas relações; inibam violências físicas e simbólicas; fortaleçam afeto, intelecto e sensibilidade humanas. Enfim, que impeçam a barbárie e alimentem sempre a criatividade humana e a imaginação utópica.
A cultura não é automaticamente emancipadora, como se pode imaginar de modo apressado ou como, muitas vezes, se auto iludem os próprios fazedores de cultura. A cultura é e sempre foi um campo de disputas, goste-se ou não disso. Os traumáticos anos recentes e a “guerra cultural” vigente demonstram cabalmente que a cultura não está fora do mundo, com seus cantos, encantos e desencantos. Assim, cabe distinguir culturas democráticas das autoritárias e antever como será possível à cultura ser profeta da democracia.
Tal discussão floresce como crucial na IV Conferência. Como a cultura, respeitadas todas as suas especificidades, pode estar comprometida com a democracia? Como imaginar e implantar políticas culturais alimentadoras da democratização das relações sociais, que perpassam toda sociedade, inclusive o Estado? Como desenvolver políticas culturais que atendam às justas demandas do campo cultural, mas que, simultaneamente, dialoguem com os desejos, mais imediatos e/ou transcendentes, das comunidades humanas? Não parece ser fácil traduzir políticas culturais em programas e projetos que atinjam tais objetivos tão complexos e generosos. Mas esse é o maior desafio em cena na contemporaneidade.
A IV Conferência Nacional de Cultura como encontro, vivo e vital, de todos os agentes culturais democráticos, no qual todas as tribos culturais convivem, festejam e se reencantam, tem obrigação de religar democracia e cultura, mas também de reanimar o campo cultural como imprescindível agente político-cultural para o aprofundamento e a consolidação das culturas democráticas no Brasil e no mundo. A Conferência, em sua potência, reunindo Estado, sociedade, comunidades e agentes culturais de toda nação tem o dever de dar rumos alvissareiros para a cultura, a sociedade e o mundo, em uma atualidade tão plena de riscos e possibilidades.