Por Rosana Andrade
A pedido do público, volta a cartaz no Teatro Módulo, na Pituba, “Fanta & Pandora, Uma Folia em Cena”, sempre às sextas, às 20h. As duas professoras serelepes, interpretadas pelos atores Rodrigo Villa e Lelo Filho (que também assina a direção do espetáculo) entram em cena juntamente com Paloma, personagem interpretado pelo ator Maurício Martins, em homenagem a Moacir Moreno, um dos fundadores da trupe há 37 anos. Reconhecida pelo humor ao longo de quase quatro décadas, a Cia Baiana de Patifaria desenvolve um trabalho de pesquisa em vários gêneros teatrais e tem nove montagens em seu repertório – Abafabanca, A Bofetada, Noviças Rebeldes, 3 em 1, A Vaca Lelé, Capitães da Areia e Siricotico, uma comédia do balacobaco, Fora da Ordem e Fanta & Pandora. Rosana Andrade conversou com Lelo Filho. Confira a entrevista!



Conversei com o ator, diretor, produtor e dramaturgo Lelo Filho. Ele fez um apanhado de suas mais de quatro décadas de carreira. Apesar de ter sido primeiramente conhecido pela comédia “A Bofetada”, que diverte gerações com suas personagens icónicas, o ator comemora este ano 10 anos da peça “Fora da Ordem” que leva a reflexões sobre a ditadura no Brasil, em especial ao público mais jovem.
ROSANA ANDRADE: Com mais de 40 anos que está nos palcos, você viu, participou e provocou muitas mudanças, como foi passar por todas elas?
LELO FILHO: São exatos 42 anos de carreira. Eu comecei em 1982 no IV Curso Livre de Teatro, do Teatro Castro Alves, em Salvador, que já era um curso revolucionário e começou a atrair um público maior para o Teatro baiano quando surgiu. E eu sou fruto de tudo que eu assisti com os artistas locais e os que vinham de fora para o ‘palcão’ do TCA. Sou um privilegiado em ter assistido Harildo Deda, Wilson Melo, Nilda Spencer, ser contemporâneo de Ylmara Rodrigues Então acho que eu passei por transformações dentro do próprio teatro baiano que vem de um conjunto de transformações que o Brasil passou do início ao fim da ditadura civil/militar, da resistência do Teatro dos Novos e da Escola de Teatro da UFBA, até a abertura política no teatro, na música, na teledramaturgia, no cinema, nas Artes em geral. Foi muito bom poder ter participado de um movimento tão grande, tão intenso de retomada do público baiano lotando os teatros para assistir produções locais e a sensação de ser um dos fundadores de uma companhia que, de certa forma, ajudou a fazer com que o público daqui passasse a reconhecer a qualidade da produção teatral local. Uma companhia de teatro que alterou a minha vida positivamente, pois pude conhecer o Brasil através do meu trabalho e fez com que o Brasil pudesse conhecer o meu trabalho através de cada personagem que eu interpretei. Com a Cia circulei pelo país e acabamos indo até Nova York com as nossas Noviças Rebeldes.
RA: Sei que é apaixonado por atuação desde pequeno, como foi o papel da sua família nessa sua escolha?
LF: A minha família foi e continua sendo fundamental até hoje na minha formação como artista. No início foi a música e depois, através de alguns tios que me ajudaram de certa forma a desenvolver o trabalho artístico já com o senso de atuação, de interpretação. Acho que guardei essas pequenas experiências da infância e antes de completar 20 anos de idade, me inscrevi no IV Curso Livre do Teatro Castro Alves e ali o teatro me arrebatou embora na faculdade eu estudasse Ciências Sociais. Dentro de casa, tive uma infância cheia de brincadeiras lúdicas, de criação de personagens, de situações e a minha primeira peça de teatro eu escrevi aos 11 anos de idade a partir das histórias que nos contavam sobre o filme O Exorcista, que a gente não podia assistir no cinema. Escrevi uma e montei dentro da minha casa com os meus irmãos e apresentei para as crianças da vizinhança. Naquela noite pude ver o impacto que aquilo causou.
RA: 37 anos de criação da Cia Baiana de Patifaria, qual foi o maior legado dela até hoje para o teatro?
LF: Acredito que a Companha Baiana de Patifaria representa para o Teatro baiano, como hoje representa, de certa forma também, para o teatro brasileiro a cada montagem um ato de resistência. Então acho que nosso maior legado talvez tenha sido primeiro resgatar de volta aos teatros, o público local para assistir artistas e produções locais inverter um pouco o processo que existia quando eu comecei de que o público baiano em sua grande maioria lotava a grande sala do Teatro Castro Alves para assistir produções que vinham de fora com artistas das telenovelas. Sem querer, nós iniciamos um movimento junto com tantos outros artistas e outros grupos que foram surgindo no mesmo período, como resistência para enfrentar tantos períodos difíceis para se produzir, se fazer arte num país como o Brasil. E com todos os adventos da internet, dos streamings, 37 anos depois continuamos aqui.
RA: Você rodou meio mundo com a Cia, teve até Broadway, destaque para nós alguns momentos memoráveis da sua carreira.
LF: Eu provavelmente não teria conhecido o Brasil da forma que eu conheço, se não fosse o meu trabalho na Companhia Baiana de Patifaria e as nove produções do repertório. Foram mais de 70 cidades de norte a sul do país. A nossa ida para Nova York, em 1997, com Noviças Rebeldes, foi uma iniciativa do autor americano do musical original Nunsense que foi traduzido para o português por Flávio Marinho e teve o primeiro elenco masculino no mundo, interpretando aqueles personagens, com direção de Wolf Maya. Conseguimos fazer duas semanas de temporada no circuito off Broadway, na Rua 46, conhecida como a Rua dos brasileiros em Nova York, onde tinham musicais do porte do Titanic e duas quadras depois, num teatro anexo a uma igreja apresentamos nossas rebeldes noviças, para um público de brasileiros e americanos curiosos. A viagem para Nova York mais me ensinou sobre trabalho, do que possivelmente o glamour da viagem de uma trupe brasileira para a cidade dos musicais. Foi um ano de muito trabalho para mim, para a equipe de produção que trabalhava comigo na época e, de certa forma, para o elenco quando chegaram no país para a divulgação e as apresentações.
RA: Não tem como falar de você e da Cia sem enaltecer Fanta Maria, o que ela representa na sua vida e na sua carreira? Além de muito sucesso, é claro!
LF: Eu não me canso de repetir que Fanta Maria, esse personagem do espetáculo A Bofetada, é pra mim um grande presente dos deuses do teatro. De forma conjunta com o diretor Fernando Guerreiro na época, na leitura do texto de Fanta e Pandora, que é o nome da cena, a primeira leitura feita por mim e Frank Menezes o ator que interpretava Pandora nos causou uma alegria imensa. E quando um texto de humor já me provoca riso na leitura eu acho que é um bom sinal. Então é um personagem que veio para mim de uma forma muito natural e com o passar do tempo fui amadurecendo, aprendendo por ser um personagem com extremo bom humor. Mas, embora Fanta Maria seja o personagem mais conhecido, eu tenho um carinho imenso por outros personagens que eu fiz ao longo da carreira, como os de Siricotico que eram Elizabeta e Alaô. Esse, inclusive, é para mim um personagem emblemático porque é quase autobiográfico por se tratar de um produtor de uma trupe no século XIX como eu sou produtor de uma trupe nos dias de hoje vivendo os mesmos perrengues, a falta de uma política cultural consistente para ajudar grupos, coletivos. Assim como os cinco personagens que interpreto em Fora da Ordem são muito importantes pra mim.
RA: Comemorando 10 anos de “Fora da Ordem”, como as mensagens que traz na peça estão reverberando no público nos dias atuais?
LF: No último dia 7 de maio começamos a comemorar os 10 anos da estreia de Fora da Ordem e eu espero que essa celebração continue durante o restante do ano, que eu consiga trazer a peça mais vezes em cartaz e, quem sabe, uma temporada maior. Dessa vez foi um projeto de Arte e Educação para dialogar com jovens estudantes de escolas diversas da cidade, muitos foram com seus pais, para assistir e depois debater os temas da peça com professores convidados ao palco no final da apresentação. É um espetáculo que eu acredito alterar a minha trajetória de carreira, porque o retomo a minha origem no teatro que foi no drama, mesmo tendo me dedicado tanto tempo ao humor na Cia Baiana. Fora da Ordem é um texto escrito por mim depois de dois anos e meio de pesquisa, codireção de Odilon Henriques, produção de Marcos Mota e Rita Valério e um trabalho fenomenal do cineasta Dedeco Macedo. O espetáculo mistura teatro, cinema, poesia, música e dança para falar de um tema extremamente necessário que foi resgatar o período da minha infância e adolescência vivido sobre o regime militar, onde o que imperava eram as proibições sobre o que se devia ouvir, ler, assistir. Em Fora da Ordem eu coloco de certa forma toda minha indignação com aquele período, aquele regime tão duro que o Brasil viveu por mais de duas décadas. E hoje em dia temos dialogado com o público diverso e bastante jovem.
RA: Relembre-nos como foi a criação dessa peça?
LF: A criação de Fora da Ordem durou dois anos e meio entre uma pesquisa muito profunda sobre o período do regime militar e as informações que nós não tínhamos. A censura nos tirava o acesso a livros, músicas, filmes, novelas. Utilizando os recursos que hoje são possíveis para pesquisa e conversas com alguns profissionais que foram muito importantes na construção das temáticas do texto como o bullying, homofobia, racismo, intolerância religiosa e o excesso de violência no país. E tive a contribuição do meu amigo André Liohn que é um fotojornalista testemunha de alguns momentos históricos que o mundo tem atravessado como primavera árabe, por exemplo, e através dele eu consegui inserir no espetáculo fotos e vídeos de situações de guerra de conflitos, sobre populações em busca de liberdade, lutando contra a tirania.
RA: Quais os principais desafios do artista de teatro, nesse mundo tão internetizado e influenciado?
LF: Com o advento da internet, dos streamings e todas as possibilidades de acesso para se assistir qualquer coisa na TV ou no aparelho celular, ganhamos mas desafios para enfrentar. Mas temos uma coisa em nosso favor que é o ao vivo, o acontecimento presencial, o encontro. O teatro para mim continua sendo um ritual, então nenhuma outra experiência através de uma tela pode se comparar ao espectador estar diante de um ator, uma atriz em cena, ter o trabalho de um diretor, de um figurinista, de um cenógrafo que elaborou, que criou, que ensaiou e está apresentando o resultado ao vivo. No período da pandemia tivemos que resistir transmitindo pela internet, mas naquele período foi a maneira que artistas tanto da música, da dança, do teatro tiveram para continuar trabalhando.
RA: Qual seria o “mundo perfeito” para a arte ter dignidade e valorização em nosso país?
LF: “Em um mundo perfeito”, todo artista em qualquer função gostaria de ser reconhecido pelo seu trabalho, pelo seu esforço, por seu estudo. É uma cadeia produtiva gigante de vários talentos por trás de qualquer artista que esteja no palco. Trabalhar com dignidade e com políticas públicas pensadas para fortalecer a Cultura e as Artes.
RA: Ao longo desses anos, qual mudança mais significativa do público com o qual você interage?
LF: A Companhia Baiana de Patifaria é reconhecida por ter atraído um público muito diverso. No entanto, o mundo mudou e vários fatores interferem de certa forma no fluxo de público nos teatros. Há um perfil de jovem que simplesmente desconhece o movimento teatral local e atual. O Teatro baiano tem produzido muita coisa interessante para todos os gostos, mas boa parte de jovens não conhecem e, o pior, muitos sequer são estimulados a conhecer. É preciso reconhecer o trabalho de alguns professores e escolas que tentam diminuir esse abismo entre tantas formas artísticas possíveis e um público tão diverso.
RA: E quais os planos/novidades na vida e na carreira?
LF: Espero conseguir colocar os dois espetáculos em cena, a comédia Fanta e Pandora (junto com Rodrigo Vila que interpreta Pandora e Maurício Martins que faz Paloma) e o drama Fora da Ordem, continuando a debater sobre esses temas tão importantes e necessários principalmente no Brasil de hoje e num mundo tão violento e tão ameaçado pelo autoritarismo, pelas intolerâncias. Desejo que novos espetáculos sejam montados desde que tenhamos políticas públicas realmente de investimento, as leis de incentivo realmente cheguem a todos.
RA: Deixe aqui para nós uma mensagem de inspiração e incentivo para as novas gerações de artistas.
LF: Que a perseverança seja o guia pra todos os amantes das Artes. Ouvi isso de Fernanda Montenegro, em 1983, quando tinha 20 anos e minha primeira peça estava sendo apresentada no Teatro Ipanema, no Rio de Janeiro. “Não é uma profissão fácil”, disse ela ao grupo de jovens atores baianos na saída do teatro. É preciso amar muito essa profissão, é o único caminho.
SERVIÇO:
O quê? A Cia Baiana de Patifaria em FANTA & PANDORA, UMA FOLIA EM CENA celebrando 36 anos de seus personagens mais famosos do megassucesso A Bofetada.
Quando? Reestreia dia 05 DE JULHO às 20h, em curta temporada às SEXTAS. Ingressos no Sympla R$60 (inteira) e R$30 (meia).
Onde? TEATRO MÓDULO (Tel.: 71 2102-1350) – Av. Prof. Magalhães Neto, 1177, Pituba, Salvador.