“O sangue que está dentro da veia dessas pessoas se auto declarando, é porque ele rejeita ser exterminado”

Cacique Juvenal Payayá
O Cacique Juvenal Payayá é escritor, poeta, romancista, desenhista e plantador de sementes e mudas nativas da Caatinga e Cerrado. Nasceu em uma aldeia na Chapada Diamantina. É formado em Economia na UEFS, em Educação na UNEB, onde recebeu o título de Doutor Honoris Causa. Se especializou em Administração na FACCEBA. Desde a década de 1980 é um dos líderes da causa indígena e da luta pela afirmação do Povo Payayá, sendo membro fundador do Movimento Associativo Indígena Payayá (MAIP). Publicou 12 livros, entre romances, contos, crônicas e poesia. Ele falou com a gente sobre os povos originários do Brasil, ontem e hoje.
Juvenal Payayá
O que eram os povos originários do Brasil? Ora, em primeiro lugar, nós vamos entender bem que a Biaiala, segundo os Cunas, a linguagem Cunas, aquele pessoal que morava ali no Caribe, a Biaiala era uma extensão de terra, não existia essa divisão Brasil, Paraguai, Estados Unidos, é uma das questões.
A segunda questão é que todas as invasões, elas tendem, no caso, a substituir, isso historicamente, substituir a população originária pela presença do invasor, foi o que aconteceu aqui. A diferença básica é que, em quase todas as invasões, os povos, eles acabam se fundindo, ou então são exterminados mesmo. Aconteceu com os povos indígenas que rejeitaram se fundir e os que sobraram, muitos foram forçados, essa aqui é a compreensão básica, foram forçados a se fundir. Por quê? Porque as mães, as mulheres foram estupradas. E aí, quando eles rejeitam a desistir de ser índios, que é o que os invasores queriam, o que ocorre, na verdade, é que vamos tentar eliminar na força. E essa eliminação pela força não deu certo. Ou seja, o invasor fracassou. Esse é o que é o negócio, ele fracassou. As razões aí, isso é um debate profundo, mas na verdade… fracassaram.



Despertar no futuro – Os povos indígenas, a partir de determinada consciência, porque aquelas pessoas filhas de, digamos, filha do colonizador com a matriz indígena, ele desperta no futuro e sabe, na verdade, que ele tem que fazer a opção. E le quer fazer a opção entre ser nada ou ser pardo ou essa coisa de ser moreno, de ser bugre, de ser… Quando ele faz essa opção de voltar a ser o que era anteriormente, ou seja, voltar a ser Pataxó, voltar a ser Tupinambá, voltar a ser indígena Payayá, ele renega a parte do colonizador. Ou seja, eu sei que o meu corpo tem uma parte do colonizador, eu simplesmente renego, porque eles já me renegaram uma vez. Essa é a questão mais profunda.
Então aí já respondo àquela questão do Censo. Por que que as pessoas hoje estão se auto declarando em maior número. Facilidade, mesmo sabendo que a luta é cruel, mas eles estão rejeitando, porque eles reconhecem o mal que fizeram para a sua avó, para a sua bisavó, para a sua tetravó. Raramente você vê uma pessoa dizer “o meu avô era índio”. Geralmente ele fala que é avó, então é quase sempre o fruto de uma relação não consensual, certo?



Todos os Direitos – Quanto ao direito, o direito de ter a sua habitação, o seu território, a sua área preservada e a sua vida preservada, a sua cultura preservada. esse é o direito. Agora, o que cabe é demarcar em que espaço. É por isso que nós lutamos pela demarcação das terras, ou seja, as terras todas são nossas, nos tiraram a força. Nós não temos força hoje para lutar contra o invasor, mas então é que pelo menos se demarque as terras. O meu direito é ter um espaço. O que eu vou cultivar no espaço, aí é o problema mesmo. Tá certo? Aí é o problema da cultura. Aí é problema da luta do povo, da integração dos povos.
Sangue contaminado – O que nós lutamos hoje é a subsistência, certo? Para eu subsistir, está tudo dentro dessa palavra. Por quê? Para que eu volte a ser o que eu era anteriormente? Isso é impossível, por quê? Porque o nosso sangue está contaminado. Essa é a questão. Nossa cultura está contaminada. A primeira coisa que nos deram foi uma roupa contaminada para que botássemos em cima da pele pura, da pele pura da minha avó, dos meus ancestrais, e com ela me contaminar. Então hoje eu já estou contaminado com um sapato, com uma roupa, com o uso já até do símbolo máximo do colonizador moderno que é a gravata. Certo? Que para mim é absurdo, mas até eu uso.
Então nós já estamos contaminados com isso. Na verdade, nós lutamos para que as nossas terras sejam demarcadas e que lá nós possamos ter liberdade de cultivar a nossa cultura e andar do jeito que ainda é possível, nos alimentar da forma que for possível, na verdade, sem querer voltar a um passado tão distante que eu acho que isso se torna até prejudicial para a própria vida das nossas crianças, dos nossos jovens, etc.
O que nós precisamos – Eu acho que hoje nós precisamos de apoio. Veja só, a coisa pior aqui que pode existir é você estar num determinado agrupamento onde você percebe que existe, bem visível ali, dois grupos e um grupo recebe o apoio e o outro grupo a vaia, certo? Então o que nós estamos precisando é de pessoas que nos apoiem. E já existe uma proposta aí de convidar essa gama intelectual, que escreve, que publica seus livros, né? Que façam uma grande manifestação. Eles tem facilidade, sabe? E essas pessoas aceitaram, nós estamos precisando de gente talvez até como você mesmo, né? Que nos ajude a unir esse povo e objetivamente direcionar.
Um encontro pra gente fora dos grupos indígenas, um apoio externo. É assim como fazem como quando existe uma guerra, a primeira coisa que o que o guerreador lá faz é procurar apoio externo né? E essa que é a questão, é papel do Itamarati, nós estamos precisando hoje de apoio externo, de pessoas que possam nos ajudar a fazer com que nossas propostas cheguem mesmo às decisões, para fazer com que as nossas propostas sejam debatidas nos fóruns com a nossa visão e não só com a visão do colonizador.
E principalmente, eu acho que esse lado é fundamental, a pessoa possa entender que nós somos seres humanos, que nós somos gente, nós já estávamos aqui, o que nos diferenciou e fez com que a gente não matasse todos aqueles portugueses, aquela meia dúzia de português que chegou ali em Porto Seguro, e, 1500, foi só a questão cultural, foi só a questão cultural. Se a gente fosse uma nação guerreira, nós teríamos trucidado uma quantidade de pessoas assim como aconteceu no Caribe, com Colombo.

Povos indígenas ou índio? Ora, para mim aqui, Juvenal, eu escrevo, faço romance e tal, e uso indiscriminadamente essa palavra índio, porque o que me interessa no caso não é ser índio ou ser indígena, o que me interessa é ser Payayá, o que me interessa é ser meu povo, então, quem me deu esse apelido de índio foi o Colombo, lá na hora de chegar ali, tá tudo bem. Aí foi vergonhoso mesmo né? Pensou que estava chegando na Índia e pegou o apelido. Depois, um sujeito culto, lá com seu pós-doutorado, com sua pós-imaginação, com seu conhecimento, domínio de língua, o domínio do caso, aí descobriu que indígena em latim quer dizer “originário”. Aí troca-se, troca-se a palavra índio para o latim, o índio lá do Colombo, um sujeito mal educado, inculto, né, e troca-se para a grande língua latina que dominou toda a América, que dominou a língua do colonizador, certo, a língua neolatina, então eu tô só trocando meia dúzia por seis, que os dois são apelidos, índio apelido, indígena apelido.
Eu não acho que isso é importante, e também não é importante, mesmo porque a Constituição tá lá, “índios”. Aí no dia que eu for procurar, que eu for, digamos, apelar para a Constituição, alguém vai dizer, “indígena, aqui não, a Constituição não fala nada de indígena, fala de índio”, então são essas questões que a gente tem que ter em mente para a gente não ir também espalhando teorias, né, e andando por cima do colonialismo. Aí eu estou ajudando a decolonizar. Está nada! Você está ajudando a confundir. Então é isso aí. Eu sou na verdade os Tupinambás, os Tupiniquins, os Butucudos. Esse que é o nosso povo .Juntos, juntos, somos os povos originais.
Educação – Eu tenho muito a falar sobre isso, mas quero falar pouco aqui. O que eu quero colocar é o seguinte, a geografia foi uma das ciências mais importantes para o colonizador. Nós tínhamos um grande território que chamava Biaiala, e que hoje chama-se América. Em nome de quem? Deu-se o nome a um geógrafo, que era o Américo Vespúcio, que foi responsável por fazer os primeiros mapas, por interpretar os rabiscos que eram os primeiros mapas, mas ele chegou lá através do conhecimento que ele tinha de geografia. A geografia tem uma disciplina que chama-se cartografia. Hoje o Google usa os mapas para te levar a você onde você quiser, e nós temos mapas hoje, construídos pelos geógrafos, sobre tudo, sobre qualquer assunto. Você tem o mapa do céu, você tem o mapa das estrelas, você tem o mapa do mar, você tem o mapa dos cardumes de peixe, você tem um mapa, por exemplo, que te leva a você a maior montanha das Américas e o caminho a chegar lá. Você tem uma montanha, um mapa que te leva a Machu Picchu, às Cataratas do Iguaçu, ou o mesmo território Payayá, mas você não tem um mapa de onde é que moravam, onde é que habitavam, de onde era o território dos povos indígenas.
O primeiro mapa que veio surgir com esse detalhe, aliás, o primeiro que apareceu, que a gente conhece, é de 1503, por aí, com as características do Brasil. Confiável. E o primeiro que veio surgir, com todas as características dos povos indígenas foi em 1943, com um cara, um alemão, chamado Kurt Nemuan Daju, cujo nome é indígena, Guarani, e quer dizer, o homem que é capaz de fazer tudo, o homem que é capaz de construir sua casa. Ou seja, ele construiu um mapa dos povos indígenas, nos qual estão lá os Payayá. Então, o que é que eu quero que inclua? Eu estou cobrando isso na universidade, que a geografia inclua, precisa que os doutores, que os mestres, que eles investiguem onde é que moravam, qual era o território anterior dos Tupinambá, qual era o território dos Guaranis, qual era o território dos Yanomami, qual era o território dos povos Payayá.
A partir do momento esse mapa estivesse na nossa mão, essa coisa que hoje nós chamamos de marca temporal, não teria passado. Não tinha passado. Então, para me limitar à geografia, eu diria assim, nós precisávamos de reconstruir onde moravam os habitantes, ainda desses povos, 200 e poucos povos que ainda existem, ainda vivos, mas os outros não morreram, não, tá. Os Botucudos estão aparecendo, estão aparecendo os Cunha, estão aparecendo todos. É aquele sangue que rejeita morrer. O sangue que está dentro da veia dessas pessoas se auto declarando, é porque ele rejeita ser exterminado.