Sidney Rocha
As palavras proferidas pelo jamaicano Marcus Mosiah Garvey continuam ecoando nos dias atuais : “vamos nos emancipar da escravidão mental porque, enquanto outros podem libertar o corpo, ninguém além de nós mesmos pode libertar a mente”.
No século passado essas palavras ecoaram de forma bastante incisiva na mente e no coração de Bob Marley, conterrâneo de Garvey, ambos jamaicanos que nasceram em St. Ann’s Bay, um pequeno vilarejo próximo a Kingston, capital da Jamaica.
Garvey, nascido a 17 de agosto de 1887, e Marley nascido no dia 6 de fevereiro de 1945, mesmo separados por quase sessenta anos de diferença em relação a idade cronológica, tinham em comum o desejo de ver o povo negro sendo tratado de maneira equânime em todas as esferas da sociedade, dentre outras demandas pleiteadas pelos mesmos.
Garvey trilhou pelas veredas da militância político-espiritual e foi um dos personagens mais destacados da raça negra no século XX. Em 1914, na Jamaica, formou a UNIA – Associação Universal Para o Progresso Negro. Posteriormente também se estabeleceu nos Estados Unidos, e em 1916 formou uma base da UNIA em Nova York, no bairro do Harlem, de onde com o passar do tempo se espalhou por várias partes do mundo, chegando a alcançar a incrível marca de mais de dois milhões de associados, tornando a UNIA a maior associação Pan-africana de toda a história.
A Garvey também foi atribuído o título de profeta, quando em umas de suas preleções ele havia dito: “olhem para África, lá um rei negro será coroado, então a redenção africana estará próxima”. Alguns anos depois, em 2 de novembro de 1930, Lij Tafari Makonnen foi consagrado Imperador da Etiópia, se tornando o 225° descendente direto da tribo de Davi, assumindo os diversos títulos atribuídos ao cargo: Reis dos Reis, Leão conquistador da tribo de Judá, Senhor dos Senhores, etc.
Também recebeu o atributo divino de Haile Selassie I, que significa o poder da Santa Trindade. Após essa consagração, os que outrora eram chamados de Os Nazarenos passaram a ser denominados de Rastafaris, que significa “cabeça criadora”, “cabeça sem medo”, fazendo alusão ao nome de batismo do imperador Tafari Makonnen.
Marley por sua vez transitou pelas veredas da música reggae, tornando-se um dos artistas mais proeminentes de todos os tempos e, inspirado pelo poder das palavras enunciadas por Garvey, de que cada indivíduo é responsável por se libertar da escravidão mental, Bob compôs umas das canções mais emblemáticas de sua carreira: Redemption Song / Canção de Redenção, do álbum Uprising, lançada por Bob Marley e pela banda The Wailers em 1980.
Outras questões que denotam similaridade entre o pensamento de Marley e Garvey são: a libertação dos povos africanos aonde quer que estejam; a união da raça; a autonomia do povo negro; e a forte ligação com o mundo espiritual cultuada por ambos.
Outro elemento a ser destacado na trindade “Palavra, Som e Poder” é justamente o som. Bob Marley com seu “som”, a música reggae, conseguiu expandir pelo mundo o clamor que ecoava dos povos africanos e afrodiaspóricos pelos quatro cantos da terra.
O clamor por libertação chegou através do “som” de Bob Marley, aqui em Salvador capital do Estado da Bahia, onde na final década 70 fez germinar a semente da Legião Rasta, grupo rastafari que dentre outros elementos em comum com a busca por liberdade e igualdade propagadas por Marcus Garvey e Bob Marley, tinha a busca pela libertação mental como um elemento crucial para a comunidade rastafari, bem como para toda a comunidade negra, que sofria as agruras perpetradas pela ditadura militar vigente no período.
E um dos símbolos comuns a Bob Marley e aos membros da Legião Rasta eram justamente os dreads, que suscitavam a fúria e a perseguição incessantes contra a comunidade rastafari de uma maneira em geral, e em particular também aos artistas baianos que se assumiam enquanto rastas, a exemplo de Ubaldo Warú, Nilton Abisay, Geraldo Cristal, dentre outros.
Após a morte física de Bob Marley, em maio de 1981, a música reggae já havia se consolidado em terras soteropolitanas, e o seu conteúdo sócio-cultural, político, filosófico e acima de tudo espiritual, continuou influenciando a comunidade rastafari da cidade.
Depois de passados quase cinquenta anos da música reggae ter aportado aqui em Salvador, de forma pioneira no país foi instituído o Dia do Reggae através da lei municipal nº 5.817/2000, fazendo alusão a data de falecido do cantor jamaicano Bob Marley. Posteriormente em 2012 foi instituído o Dia Nacional do Reggae no Brasil pela lei federal nº 12.630/2012. Para além dos dias Municipal e Nacional do Reggae, também foi estabelecido em 2018, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), o dia 1 de julho de cada ano, como o Dia Internacional do Reggae.
Embora existam todas essas leis que foram estabelecidas para manter viva a memória e o legado do artista rastafari Bob Marley, bem como da música reggae, o reggae ainda continua sendo discriminado e cerceado dos meios de comunicação formal, tendo em vista que nos programas de rádio somente é tocado em programas com horário dito especiais, geralmente com a duração de não mais que uma hora. Nas TVs dificilmente é difundido, principalmente se for executado por uma banda ou cantor rastafari; nas programações a exemplo das festas de fim de ano, grandes festivais da cidade etc., raramente o reggae faz parte da grade, mesmo que seja apreciado por boa parte da população.
Nesse cenário nebuloso se faz mister que a música reggae seja escutada em sua plenitude e absorvida de forma consciente, a fim de que possa transformar os maus hábitos praticados por uma parte significativa da população, que embora também clame por liberdade, igualdade, amor e justiça, tem sido a mesma que discrimina a comunidade rastafari.
Discrimina não somente a comunidade rastafari, como também os vários artistas e bandas, que se assumem enquanto rastas, como Paulo da Luz, Moa Anbesa, Kebra Nagast, Bem-Aventurados e tantos outros que continuam sendo rechaçados e discriminados pela sociedade, que com sua postura discriminatória corrobora as mazelas deixadas pelo racismo, preconceito e hipocrisia, dentro do tecido social.
Não obstante, seja a mesma sociedade que escuta a música do “Rei do Reggae Bob Marley”, o rastafari, que com seus imensos dreads, sua “Palavra, Som e Poder”, continua contribuindo para que a tão desejada libertação mental seja materializada e venha a ser praticada. Oxalá! Que o “Som” de Marley, fundamentado nas “Palavras” de Garvey, tenha o “Poder” de fazer ruir esses hábitos que sustentam a opressão.