Por Gerson Brasil, jornalista e escritor gersonbrasil@gmail.com
Para Isabela, Carolina e Valentina
Na má vontade. São chamados de bichanos, com a desconfiança no encalço da maldição alicerçada por diversos infortúnios presentes e outros vindouros de famílias, normalmente vastas. São os gatos, aqueles pestes. Ninguém pergunta onde está o gato, como se faz com o cachorro, mas é preciso ficar esperto para não pisar no rabo, acompanhado da mordida e as reclamações grunhidas.
É o melhor amigo do homem? Não. É o grande inimigo? Não. Difícil descrevê-lo. Alice de Lewis Carroll tentou conversar com o “gatinho de Cheshire” e se surpreendeu. “Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para sair daqui” mas “Isso depende bastante de onde você quer chegar, mas você chegará a algum lugar, se caminhar bastante”.
Alice ficou espantada com a resposta, talvez, por não saber que toda escolha é insuficiente, uma heresia, (o gato sabia disso e de outras coisas); mas não abole o arrependimento. Se você não for herege e confiar em Pedro, há a oportunidade de “arrependei-vos, pois, e convertei-vos para se apagarem os vossos pecados”.
Se não confiar em Pedro, na suposição da dúvida, Clarice Lispector pode lhe ajudar. Miss Algrave, em “A Via Crucis do Corpo” depois de provar de Ixtlan, ‘com ele não fora pecado e sim uma delícia’, conjecturou: ‘quando chegasse a lua cheia, tomaria um banho purificador de todos os homens para estar pronta para o festim com Ixtlan’.
Theodoro W Adorno o gato de Cortázar tinha a capacidade de fazê-lo esquecer das memórias, “me divirto muito falando de Teodoro (o nome é uma ironia com o pensador Theodoro Adorno, racionalista, mas Cortázar nega) e de outros gatos ou pessoas que de mim mesmo”.
Aquinhoados por uns, demonizados por outros, os gatos seguem o caminho das pedras, aquele de Moisés, a reavivar mais ainda a crença dos cristãos, conduzindo-os através do Mar Vermelho. No filme, Charlton Heston interpretando Moisés está soberbo; bom, a direção coube a Cecil B. DeMille, o mago das bilheterias de Hollywood. Sucesso garantido.
Kathryn Hughes, professor da Universidade de de East Anglia, Norwich, Reino Unido, no ensaio “Escrito por Pata”, no The New York Review, of Books, 4 de junho deste ano, lembra que os gatos só começaram a falar com os humanos no século XIX, por meio de revistas e romances. Mas ela chama a atenção que os felinos ficaram tão danados que é possível que eles leiam os livros dos tutores, quando se aboletam em cima, ou podem estar elaborando uma obra prima e ainda fofocando sobre você.
Dizem que os gatos não são de confiança, mas a cidade de Iepers na Bélgica, que matava gatos cruelmente no período medieval, hoje faz festival em devoção aos felinos. Chega a atrair 50 mil pessoas, os bichanos ficam muito satisfeitos e a cidade mais ainda, recebe uma multidão e o turismo agradece.
O escritor, poeta, crítico e dramaturgo, inglês, T.S. Eliot, dedicou-lhes 15 poemas na forma de presente de aniversário a dois afilhados, que viviam sob a tutela de editores da Faber & Faber, na qual Eliot trabalhou e teve seus poemas publicados.
Poemas abraçados à prosa, e outro não foi como o dedicado a Miragéli e Kalbinômi, gatos acrobatas, mas de firme reputação, excluindo a cozinheira; “Sinto muito, minha gente. A carne estava excelente. Quando a tirei da panela/ mas ela sumiu do prato! Na família, espalhafato: foi o maldito do gato! Mas fica assim por mais que se questione”.
Nas aquarelas dos gatos, há também ensinamentos. Gato não é cão, “o cão comum e citadino, ao passo/ Inclina-se a bancar sempre o palhaço. Com os gatos, dizem que é regra bastante/Só lhes falares se te falam antes/ Em geral eu me inclino com recato. E digo: como passa, senhor gato? Quando o encontro pelo caminho, reformulo e digo simplesmente, passa gato”.
Os gatos de Eliot têm nome, mas é para compor os poemas, só o gato sabe seu nome, “mas a ninguém confessa. Ele pensa, e pensa, e pensa no seu nome/ No inefável afável/Inefanífavel/ Fundo e inescrutável sentido de seu nome”.
Eliot se diverte e diverte o leitor com o gato chato, “se lhe pões no prato, ele pede a tigela”. E tem a velha gata malhada, que, apesar de velha, presta relevantes serviços à família, depois de cessados os ruídos, “e atribui aos ratos uma imprópria dieta”.
De poemas para afilhados, que pediram ao padrinho a publicação dos mesmos, “Os Gatos” de Eliot, londrinos, na boa e inventiva tradução de Ivo Barroso, se incorporaram à literatura e passaram à familiaridade dos adultos. Os poemas os cativaram com jogos de palavras, invenções, e sem render apologia, sapiência ou maldição aos bichanos. Eliot trouxe para o universo da poesia um tema corriqueiro, mas sem se descuidar da forma, que lhe granjeou fama com “A Terra Devastada”.
“Precisa conhecer Míster Mistófelis!/ Não estou certo? /Não há decerto/Um mais esperto/ Que o Gato Mago Mefisto-Félix”!
Eliot coloca muitos gatos no gato, até se atreve a dar-lhes nomes, mas com cuidado, sempre os relaciona a alguma coisa; o gato ferroviário, Agapito, Gogó, o gato ator, Mac Anália, o gato misterioso, que some quando algum litro deixa o leite de forma inesperada, ou o Lulu sofre um atentado.
Não é fácil ser gato, mais lhe dão gatuno a comedor de ratos. Como “Boris, o Vermelho, personagem de Jorge Amado”, senhor de muitíssimas antipatias do mundo, só pelo apelido. Com os gatos, se as antipatias não estão logo ali, não é preciso elaborá-las, surgem na primeira pisada de rabo e consequentemente a mordida.
O que deita rede aqui em casa, às turras com inimigos e adversários, se lhe demora a comida, a mordida não espera, é certa. E não há jeito de evitar que o faça. São os felinos, sabotam o trabalho e a diversão alheia, porém, garbosos na hora de tomar banho e vagabundos oniscientes nas sonecas intermináveis. “Os Gatos” de Eliot foram parar no musical (Cats) que ficou 21 anos na West End de Londres, e 19 anos na Broadway, em Nova York