Por Gina Marocci
A cultura arquitetônica portuguesa moldou os dois primeiros séculos da sociedade baiana no modo de morar, de construir e fazer cidades. As artes e a arquitetura desse período dão testemunho disso. Mestres e artífices oriundos de Portugal transmitiram seus conhecimentos e formaram os primeiros artistas nacionais. Dentre esses mestres, os engenheiros militares, já na primeira metade do século XVIII, gozavam de um distinto prestígio social pelo nível intelectual, numa sociedade de iletrados, e pelo apoio técnico ao desenvolvimento dos núcleos urbanos, fator fundamental à ocupação do território colonial (Marocci, 2011).
Apesar dos registros históricos fixarem mais as obras de fortificações como principais ações dos engenheiros militares, eles assumiram diversas obras civis e religiosas. No início do século XVIII, Miguel Pereira da Costa foi autor da planta da Igreja de Nossa Senhora da Palma (da primeira), juntamente com Gaspar de Abreu, que foi professor da Aula Militar da Bahia entre 1711 e 1718 (Oliveira, 2004). Nesse período, a cidade estava em expansão para além do vale do rio das Tripas (na atual Baixa dos Sapateiros), região onde foram erguidos o Convento de Nossa Senhora do Desterro, a Igreja e o Convento de Nossa Senhora da Palma, a Casa da Pólvora e trincheiras de proteção. A primeira igreja foi erguida em 1630, como ex-voto de Bernardino da Cruz Arraes. Em 1670, já como propriedade da Ordem dos Agostinianos Descalços, a igreja foi ampliada e construiu-se o hospício. Na segunda metade do século XVIII, o conjunto pertencia à Irmandade do Senhor da Cruz, que fez a última reforma datada de 1778, quando foram abertas mais duas portas na fachada principal (Carrazzoni, 1980).
No século XVIII, as igrejas de Salvador foram ornadas com obras de arte como forros, altares, retábulos e imagens em estilo barroco e, mais tarde, rococó e neoclássico. O forro da nave da igreja da Palma, obra atribuída a Veríssimo de Souza Freitas, é uma pintura ilusionista barroca, que tem no forro da igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia o seu melhor exemplar. Aliás, a Igreja da Conceição da Praia tem uma bela história iniciada nos primeiros anos da cidade. Começou como uma ermida erguida à beira-mar, e esta foi a primeira construção. A segunda edificação pode ter sido erguida no início do século XVII, período em que foi constituída a freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Praia, contudo, em 1736, as confrarias do Santíssimo Sacramento e de Nossa Senhora da Conceição da Praia resolveram ampliá-la. Em 1749, o engenheiro militar português, Coronel Manoel Cardoso de Saldanha elaborou o projeto arquitetônico e ficou encarregado da obra da igreja. Ele também fez melhorias na, então, nova Casa da Pólvora, hoje ampliada e bastante modificada, abrigando o Quartel dos Aflitos (Oliveira, 2004). Projetou, também, os quartéis da Piedade, que ficavam onde hoje está a praça. Foi professor da Aula Militar da Bahia, entre 1758 e 1761, e teve como discípulos os baianos José Antônio Caldas e Manoel de Oliveira Mendes.
Fachada da igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia e detalhe do forro da nave (https://pt.wikipedia.org/wiki/Bas%C3%ADlica_Nossa_Senhora_da_Concei%C3%A7%C3%A3o_da_Praia#/media/Ficheiro:Basilica-conceicao-da-praia.jpg).
O forro da nave da igreja de Conceição da Praia é uma obra do pintor José Joaquim da Rocha (1737-1807), um dos maiores artistas brasileiros do século XVIII. A pintura ilusionista, característica do Barroco, utiliza a perspectiva em tetos e paredes com o intuito de ampliar os espaços e permitir ao observador uma percepção tridimensional da cena retratada. O forro da nave da igreja da Conceição da Praia representa a Glorificação do Cordeiro de Deus, apoiada sobre uma sucessão de colunas e arcos pintados (falsa arquitetura), que permitem ao observador contemplar Jesus na glória, acima de todos os santos. Além de pintor, José Joaquim da Rocha foi encarnador, dourador e restaurador, e é considerado o fundador da escola baiana de pintura barroca. Além do forro da Conceição da Praia, duas obras se destacam entre mais de 150 distribuídas pelas igrejas de Salvador, os forros das naves das igrejas de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e da Ordem 3ª de São Domingos, ambas no centro histórico da cidade.
O forro da igreja cuidada, carinhosamente, pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos tem ao centro um medalhão com Nossa Senhora do Rosário ao centro, ladeada por Jesus Ressuscitado e São Pedro Apóstolo, São Domingos de Gusmão (fundador da Ordem dos Dominicanos) e São Pedro de Verona, além de muitos querubins. Na igreja de São Domingos, o forro, restaurado pelo IPHAN, nos inunda da atmosfera barroca do efeito de luz e sombra, dando à arquitetura em perspectiva tons de azul e dourado, em que vasos de flores, guirlandas e anjos emolduram cenas do céu: Jesus Ressuscitado, entre nuvens, está ao lado de Maria. Abaixo deles, São Francisco de Assis e São Domingos de Gusmão estão sobre nuvens.
As obras de José Joaquim da Rocha serviram como ateliê de formação de novos profissionais, discípulos que se tornaram estofadores, decoradores e grandes pintores, como José Teófilo de Jesus, Veríssimo de Sousa, Manoel de Sousa Coutinho e Antônio Joaquim Franco Velasco. As técnicas utilizadas nos forros dessas três igrejas são consideradas por especialistas “[…] a consolidação de Salvador como uma Colônia de avançado conhecimento científico para a produção de pinturas de forro, o poder financeiro religioso e, sobretudo, o objetivo Tridentino alcançado pelas Ordens Religiosas, tudo isto está envolvido em uma produção desta tipologia.” (IPHAN, 2015)
Com a morte de José Joaquim da Rocha, Antônio Joaquim Franco Velasco deu continuidade como professor aos trabalhos de formação de novos profissionais no ateliê e, em 1813, na Aula Pública de Desenho. Reconhecido entre seus contemporâneos por sua genialidade, ele tinha um estilo próprio, registrado nas pinturas decorativas para igrejas na cidade de Salvador e nos retratos de pessoas como D. Pedro I, D. Marcos de Noronha e Brito, o 8º Conde dos Arcos. No início da década de 1810, realiza trabalhos para a Matriz de Santana, por volta de 1813 produz pinturas para o teto da nave.
Franco Velasco deixou um legado de obras de arte na Bahia e em outros estados, além de formar profissionais gabaritados como os baianos Bento José Rufino Capinam e José Rodrigues Nunes que, após a morte do mestre, deu continuidade à pintura do forro da nave e o douramento da capela-mor da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, em Salvador.
REFERÊNCIAS
CARRAZZONI, M. E. (Coord.). Guia dos bens tombados. Rio de Janeiro: Expressão e Culrtura, 1980.
FONSECA, R. M. José Joaquim da Rocha: o mestre ilusionista da Bahia. 2014. Dsiponível em: https://salvadorcidadepatrimonio.wordpress.com/2014/09/17/jose-joaquim-da-rocha-o-mestre-ilusionista-da-bahia/. Acesso em: 4 jun. 2024.
IPHAN resgata pintura de José Joaquim da Rocha na Igreja de São Domingos. 2015. Disponível em: https://iphanba.blogspot.com/2015/07/iphan-resgata-pintura-de-jose-joaquim.html. Acesso em: 5 jun. 2024.
MAROCCI, G. V. P. O Iluminismo e a urbanística portuguesa: Lisboa, Porto e Salvador no século XVIII. 2011. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.
OLIVEIRA, M. M de. As fortificações portuguesas de Salvador quando cabeça do Brasil. Salvador: Fundação Gregório de Matos, 2004.