Por Gerson Brasil
O ônibus está inclinado e perpendicular ao retângulo da janela na companhia de dois cotovelos, logo após o cochilo da tarde e também à noite e as manhãs não esquecidas, sempre guardando o almoço e o passo apressado de quem desce a ladeira em busca de locomoção com tempo cravado em compromissos sempre inadiáveis?
Quem sobe nem presta atenção e lança injúrias e maldições a quem desce, seria bom trocar de lugar pelo menos até a casa 32, lá dormem sossegados três batentes de concreto, estreitos, mas o suficiente para abrigar uma trégua, breve, antes da chegada do gato. A porta está fechada, mas se encolha educadamente, porque o morador tem suas necessidades, também inadiáveis, e nesse justo momento vai exercer a moradia que lhe foi confiada e se não se faz presente no horário dos outros moradores da casa será repreendido e quem sabe a comida tome outro destino.
Afinal para ter direito ao almoço é preciso comparecer na hora certa, não se tolera atrasos e indisciplina, num local onde cada habitante tem seus deveres e obrigações, escalados na bandeira do Brasil hasteada no pátio, por onde todos passam e recordam abusivamente que é necessário ordem e progresso.
Não há santos, budas, estatuetas de barro, madeira ou mármore, nem fitas ou retratos, pinturas e nem aquelas porcarias penduradas à toa, as quais não dão testemunho o suficiente para dividir o tempo. Está pregada ali antes da chegada do homem à lua, ou foi quando Adalgisa operou o coração no hospital?
Demorou para retornar à casa, lembro que um dia o vizinho deu o recado de que fossem buscá-la, mas não sabia se era naquele instante ou se podia ficar para o dia seguinte. Nenhum papel. E como contatar o médico, Osvaldo Santa Cruz Linhaço? Médicos e hospitais são tão mais aborrecidos do que a doença. Se alguém não se sente bem, ou se coloca a mão na barriga e franze o rosto, ou se está com febre, tem-se certeza de que a doença chegou, o aviso é claro.
Repouso, água, depois chá, pouca conversa, à miúde, e o mingau. Mesmo quem se irrita com a bandeira, (?) essa porra, lança esforços em direção a combater a doença, um inimigo que todos conhecem, gostariam de não conhecer, mas não sentem medo. Medo só da morte.
Não havia preocupação com Adalgiza, na larga formação da vida e dos estudos conhecia doenças, carnes, frutas e verduras, como um escoteiro enfadado cobria de alerta cabelos friorentos, peles manchadas e o prenúncio da erisipela, por isso a doença não causava incômodo, corria paralela às louças, escovas de dente, a bucha que lava os pratos, os talheres e o esquecimento que retirou do café o açúcar, mas não logrou impelir o sacrifício ao pão da ausência da manteiga. Sabia-se de outras observações, mas disso não se falava, era proibido, cobria-se de tempo à espera, como o melhor lugar para aguardar a revelação ou o comentário que iria proteger as mãos, ou os pés, ou a mudança de hábito, com relação ao emprego de uma substância, ou de um macaco.
Todas as sortes e todo os azares eram cozidos em meia, com a ajuda de um ovo de madeira, nada ficava à toa, ou espalhado pela casa, que encurtava os pensamentos dos moradores fixos ou de passagem, se é que era possível passar. Esse estado só era concedido às roupas, na aritmética, cujo sinal de menos era recebido com elogios.
Para evitar euforias e desgraças o inventário das palavras era curto, poucas sílabas se encontravam à disposição e criou-se o hábito de utilizar locuções e expressões em latim, para dar conta, traduzir períodos de passos breves e longos, bater de portas, frituras e suspiros, especialmente quando o tempo estava bom, com pouco ruído e poderia se descoser da bandeira a purga do aviso, já introjetado, porque não havia outro caminho, a não ser a rua, pior, a ladeira, que não se deixava ver por inteiro, arrebatada por uma elipse, sem que se saiba quem a tenha contratado.
Todos se fartavam, mas pertencia a Adalgisa sublinhar o emprego de suavis mamilla, auxiliada pelo pudor e na incumbência de vigiar e espanar untuosidades ou disputas, que ameaçassem quebrar as regras, seguidas até pelo gato. Não eram muitas expressões, mas tinham a capacidade de sustentar longos períodos adormecidos na comunhão. Como a ajuda é sempre bem-quista, empregava-se aleatoriamente certos haxixe e folhas embebidas ora em óleos, adrede suntuosamente imersas em caldeirões com água suficiente para o banho e para beber. El diablo que habita la discordia fue echado de la casa, sin celebración ni insultos.
A poucos metros do retângulo que dava forma à janela desenhada na razão pura, com o emprego do número 1.6180, outras janelas do ônibus, agora já há algum tempo estacionado, sem se importar de encontros marcados, fome, sede e aquele doce de banana inerte, mas nem por isso morto e sim às margens de cobiças, deixam ver alguém tossindo e levando a mão à boca, na indicação de uma moléstia ou tuberculose.
Mal cabia o disfarce da repugnância de quem estava por perto, ao procurar erguer barreiras para se defender. Impossível. Dois cotovelos apoiados numa almofada sustentavam Nascimento e a camisa de mangas curtas e calça cujas bainhas estavam desaparecidas. Será que vão abrir as janelas? Estão pertos, mas educadamente se comportam como se estivessem no palco, contíguo ao silêncio da plateia que não se deixava ver, chovera. E se a tosse pulasse a janela e espalhasse a doença pela rua e nas casas?
Vou recolher os cotovelos e as almofadas e a existência se fará através das persianas de madeira, mas antes chamarei Adalgisa. Porque você não fala com eles? A noite vai demorar e lembre-se de que há outras casas a requerer cuidados. E porque eles não me acenam? não os ouço, mas posso ler nos lábios e nos rostos a aflição da conta de luz atrasada. Ontem, não comprei o remédio porque não tinha dinheiro e as poucas moedas estavam embaixo do travesseiro em um dos dois beliches do quarto. Abra a janela, o ônibus continua imóvel, mas já é outro momento, outro instante. Eu sei, mas não estou convencido, afinal se esse é outro momento, não vejo onde aqueloutro se escondeu. Odeio burla.