Por Marlon Marcos
A Cidade da Bahia, como também é chamada a cidade do São Salvador, é quase uma ilha e possui um vasto litoral que a torna um dos lugares mais atraentes deste nosso país tropical. Temos a Baía de Todos os Santos, e ali ( aqui), tudo se amplia em beleza, mistério e fundamentos de indígenas, africanos e portugueses, que tomam conta do nosso imaginário e a gente se reveste na fé nas Águas quando o protagonismo africano na história desta cidade consolida narrativas míticas que expressam a orixá de origem iorubana, Yemoja, mais conhecida como Iemanjá, o mar mãe desta terra de gente praieira.
Iemanjá possui vários mitos que dizem que Ela é a mãe de grande parte dos orixás e é a Senhora criadora da vida e detentora de todas as águas, não só as salgadas como costumamos pensar. Em África, precisamente na região dos egbás, Ela é cultuada no Rio Ogum, a guerreira ninfa daquelas águas doces correndo para o mar, lugar destino e domínio maior de Olokun, o senhor dos oceanos, uma espécie de pai ancestral desta força Iemanjá, que também é a Iyá Ogum, mãe da guerra.
No Brasil, Iemanjá é a força soberana dos nossos oceanos, mas também habita os rios. Ela é água criadora e refresca as cabeças e cuida da saúde mental dos seres humanos. Iyá Ori, mãe das cabeças, evocada durante os rituais de Bori em cerimônias de muita fineza, delicadeza e silêncio, que servem para fortalecer as cabeças de quem pratica alguma das chamadas religiões de matrizes africanas. Aquela que evita a loucura e dança a favor da serenidade, mesmo que marulhando através dos seus tsunamis.
Em Salvador, seu dia maior é o 2 de fevereiro. Dia de louvar nossas águas marítimas, ofertar presentes à vaidosa divindade, dançar e cantar para Ela. Um dia de festa popular inclinada a revisitar tradições deixadas por civilizações africanas que aqui chegaram e que sempre trataram as águas como divindade e força primordial que origina Vida. A água-fêmea formuladora de todas as existências que pulsam como viventes.
O 2 de fevereiro nasceu, como deveria ser, de uma investida de pescadores na região do Rio Vermelho, que desesperados com a escassez de suas pescas, recorreram à “forca que mora n’água” para ter um resultado melhor. Depois do presente arriado, lá nos idos de 1923, e com o pedido atendido, este dia ficou instituído como o Dia de Louvor à Mãe Negra dos Oceanos, a orixá Iemanjá.
É muito complexo entender a profundidade deste evento festivo e os motivos históricos que tornaram Iemanjá o orixá mais conhecido e festejado no Brasil por pessoas de vários credos e até de gente sem nenhuma religião. Houve um embranquecimento da imagem desta orixá, e muitas de suas características originais foram perdidas e substituídas por caracteres divinos associados à Nossa Senhora, mãe do Cristo Jesus.
A Umbanda popularizou a imagem de uma mulher branca, de cabelos negros, longos, lisos, flutuando sobre águas e derramando pétalas de rosas das mãos, exprimindo doçura, maternalidade e placidez. Mas, a imagem real desta mulher, é a de uma negra, cabelos crespos, seios volumosos e linda! Belicosa, a que luta ao lado de Exu e Ogum, e domina seu lar, governa seus instantes entre calmarias e fúrias como as águas maiores do seu domínio: os mares.
Talvez, por conta do racismo, se Iemanjá fosse difundida em sua imagética original, esta popularidade fosse menor. Talvez. O importante é que esta energia negra se funde a várias imagens e prevalece como força afro-brasileira entre nós. É uma orixá que chama o mundo para louvá-la no mar do Rio Vermelho.
As Iaras indígenas também estão ali. Outras Iyabás, como Oxum, Nanã, Ewá, chegam nas águas de Iemanjá que definem as forças femininas que comandam a natureza. Oyá também vai ali. E todos os seres encantados que reverenciam esta inquantificável potência, elemento natural, chamado de mar, que é a própria Iemanjá – mãe de todos os baianos.
Uma voz de iyalorixá cantando: “ Orixá do mar, orixá ê/ Eu vou ver onde Ela está, orixá ê/ Eu vou ver Mãe Iemanjá, orixá ê/”, as águas balançando entre tantas expectativas e sentimentos, o sol forte acordando a nossa condição de humanos e pedintes e a esperança trilhando o horizonte de quem crê nos mistérios marítimos desta experiência ultra baiana.
Eu desenho fragmentos de um Oriki (poema sagrado) que dedico à minha Rainha Maior, e rezo por mim e pelo mundo nesse dia difuso que abriga a minha religião candomblé. Um Oriki trânsito, Transnação, passeando pelo congo-angola entre Koketu e Kaiala, pelo jeje de Aziri Tobossi, pelo ketu de Yemoja… E escrevo assim:
“ Deusa acima de qualquer religião
Um ser eu mesmo que me nina
E eu nunca estou sozinho.
Um ser eu que me anima
E me encanta no colorido do seu canto
Trazendo-me azul turquesa
Para sua sonorização
Mãe Senhora Menina
Música celeste saída das águas
Entrada infalível para o meu consolo”
(Iyá Ogunté, Marlon Marcos)
Iemanjá sustenta-se-nos no âmago da Baía de Todos os Santos e depois se navega pelas culturas espraiadas pelo mundo onde qualquer água chega. Odô Iyá!
Marlon Marcos é poeta, antropólogo, historiador, jornalista, professor da Unilab-Malês, é o Ebomi Adê Okún, do Unzó Tumbenci ( Lauro de Freitas) e filho dileto de Iemanjá.