Baseada em fatos, “Diários da Caserna – Dossiê Smart”, do coronel da reserva Rubens Pierrotti Jr., narra esquema de corrupção envolvendo oficiais de alta patente do Exército em projeto de desenvolvimento e absorção de tecnologia de um simulador de apoio de fogo de artilharia
Historicamente, as Forças Armadas do Brasil gozam de boa reputação entre os cidadãos brasileiros. É muito comum, por exemplo, ouvir de pessoas de todas as idades que o período da Ditadura Militar foi ótimo para o país, porque, entre outros aspectos, a corrupção não grassava entre os governantes. Hoje, sabemos, não foi bem assim; achados recentes de historiadores atestam que o período foi abundante em denúncias de ilegalidades envolvendo empresas e o Estado.
Passados quase 40 anos do fim do regime militar, é possível afirmar que a boa fama das Forças Armadas segue praticamente intacta. Pesquisa realizada pelo Datafolha em setembro do ano passado, com 2.016 eleitores, em 139 cidades brasileiras, apontou que a instituição é a que mais possui confiança da população comparada a outros nove setores, como Presidência da República, Congresso Nacional, Imprensa, grandes empresas brasileiras etc. Conforme o levantamento, 34% dos entrevistados disseram confiar muito nas Forças Armadas, enquanto 44% declararam confiar pouco e somente 21% disseram não confiar na instituição.
Isto em um cenário em que os escândalos de corrupção envolvendo militares aparentemente aumentaram. Dão mostras disso os casos recentes do general da ativa Eduardo Pazuello, que, no período em que foi ministro da saúde, causou R$ 122 milhões de danos ao erário, por gastos com medidas contra a Covid-19 sem eficácia científica; e do tenente-coronel Mauro César Cid, que, atuando como ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro, admitiu ter vendido ilegalmente joias recebidas pela Presidência em viagens oficiais.
Em seu livro, “Diários da Caserna – Dossiê Smart – A história que o Exército quer riscar”, o coronel de artilharia da reserva e advogado, Rubens Pierrotti Jr., relata mais um esquema de corrupção envolvendo as Forças Armadas do país. A obra, que gira em torno dos vícios e desmandos de oficiais de altas patentes do Exército Brasileiro no processo de desenvolvimento de um simulador de apoio de fogo de artilharia denominado Smart, que chega às livrarias como “ficção”, está mesma baseada em fatos. Há alguns anos, o Exército realmente se viu tendo que lidar com denúncias de corrupção relacionadas a seus oficiais envolvendo o desenvolvimento do Simulador de Apoio de Fogo (SAFO).
Interessante notar que, ao descrever os meandros do esquema de corrupção do Projeto Smart levado a cabo por oficiais de alta patente do Exército Brasileiro, em seu livro “Diários da Caserna – Dossiê Smart”, Pierrotti deixa claro que a corrupção, ainda mais em instituição tão bem protegida quanto as Forças Armadas, nem sempre acontece de maneira escandalosa, como dinheiro escondido em malas e cuecas. Às vezes para encontrá-la é preciso apenas ler com atenção e um pouco de conhecimento de causa no Diário Oficial.
Corruptos e incorruptíveis
A história de corrupção envolvendo o Smart, desde seu processo de licitação fraudulento, até o seu desenvolvimento sem respeitar as conformidades do projeto, passando por cima das reprovações dos responsáveis por sua supervisão é contada a partir de dois lados bem delineados: o dos corruptos e daqueles que buscam a todo custo não se contaminar com a corrupção e não se dobrar aos poderosos. O primeiro lado é representado pelos personagens general Aureliano e general Simão e por Papa Velasco, representante comercial da Lokitec, empresa espanhola de engenharia contratada pelo Exército Brasileiro para o desenvolvimento do simulador Smart.
Os generais Aureliano e Simão, em diferentes ocasiões, gerenciam o projeto de desenvolvimento do simulador de apoio de fogo de artilharia. O primeiro é também responsável por idealizar o projeto, tudo leva a crer, como forma de pagar um favor especial realizado por seu amigo de maçonaria Papa Velasco. O segundo, cuja descrição física lembra proeminente figura militar e política de tempos recentes, entre jantares e viagens patrocinadas pela Lokitec, esquece-se de que está no projeto para defender o Exército e logo se torna um porta-voz dos interesses da empresa espanhola de engenharia. Já Papa Velasco, conhecido “mercador da morte”, é das figuras mais insidiosas da trama, alternando ameaças veladas e tentativas de suborno para conseguir o que quer.
O lado dos incorruptíveis tem como sua figura maior Battaglia, o protagonista da trama. Tendo trabalhado durante anos como supervisor operacional do projeto, ele é voz de resistência apontando as inúmeras falhas cometidas no processo e se recusando a aprovar o simulador (repleto de defeitos e não conformidades) mesmo sofrendo pressões e ameaças para fazê-lo. Battaglia, aliás, é o ponto de partida da narrativa. A partir de sua entrevista ao jornal El País, que planeja fazer uma matéria investigativa sobre o Projeto Smart, baseado em dossiê vazado pela BrasilLeaks, plataforma online de denúncias anônimas, o leitor é apresentado passo a passo ao grande esquema de corrupção.
Ao final da trama, dando ainda mais mostras de que se trata de uma história real, em um país que, apesar dos avanços, ainda se caracteriza por deixar impunes seus criminosos, vemos os desfechos antagônicos, porém esperados, de seus personagens. Após sofrer assédio moral praticado por Simão e por outros oficiais para que fosse aprovado um simulador capenga, Battaglia vê seu casamento naufragar e sua saúde mental se deteriorar. Do outro lado, constatamos que a carreira de general Simão não sofreu grandes abalos. Além de conseguir o que desejava, a aprovação do simulador, mesmo ciente de seus defeitos e dos vícios de seu projeto, escapou de qualquer punição independentemente dos fortes indícios de que prevaricou e foi corrompido.
O desfecho se torna ainda mais amargo quando o autor relata que diversos oficiais que tiveram seu quinhão de responsabilidade no fiasco do Projeto Smart assumiram cargos de confiança no recém-empossado governo de um certo ex-capitão do Exército. Destaque para general Simão, que se torna vice-presidente da República. Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. A válvula de escape e a ponta de esperança de que a integridade e a honestidade são caminhos que valem a pena seguir ficam por conta das páginas finais da obra, quando ficamos sabendo que, já na reserva e recomposto como advogado, Battaglia decide escrever um livro relatando tudo que sabe sobre o Projeto Smart, sem medo de expor que as Forças Armadas do Brasil também apresentam vícios, que precisam ser urgentemente sanados.
Envolvente história de um esquema de corrupção que coloca em xeque a idoneidade de parcela dos oficiais de alta patente do Exército Brasileiro, “Diários da Caserna – Dossiê Smart – A história que o Exército quer riscar”, também se notabiliza por fornecer um retrato fidedigno das engrenagens do Exército e de como podem ser promíscuas suas relações. Dialoga com o momento atual da política brasileira, mostrando que a propalada incorruptibilidade das Forças Armadas não passa de um mito.
Ficha Técnica:
Título: Diários da Caserna – Dossiê Smart – A história que o Exército quer riscar
Autor: Rubens Pierrotti Jr.
ISBN: 978-65-5625-485-2
Formato: 16 x 25 x 23 cm
Páginas: 528
Preço de capa: R$ 69,90
Preço e-book: R$ 49,90
Editora: Labrador
Gênero: ficção brasileira