Parte 1
Ordenar, sistematizar, dominar, três ações interligadas e constantes no desenvolvimento dos projetos de fortificações. O tratadista seiscentista Serrão Pimentel dedica uma parte do seu Methodo Lusitanico para tratar das partes interiores da Fortaleza, Cidade, ou Villa fortificada, para definir algumas diretrizes gerais, pois um engenheiro militar devia procurar sempre adequar o projeto à situação encontrada, principalmente quando se tratava de inserção de fortificações em áreas com ocupação humana consolidada. Devia-se procurar a regularidade possível, dentro de um raciocínio lógico em que o principal paradigma era a adaptabilidade, que pode ser analisada sob dois aspectos: o do desígnio, ou seja, ao que se destina a obra; e do desenho, escrita que deve refletir o desígnio (CÔRTE-REAL, 2001). Prioritariamente deveriam ser construídas praças fortes, defensáveis, com a necessária racionalização do espaço construído, pois, como observa Beatriz Bueno (2003), “qualquer que fosse a situação, devia-se sempre chegar à maior regularidade possível.” Para isso, algumas orientações são dadas nos tratados. Serrão Pimentel sugere algumas medidas, extraídas de outros tratadistas, para a praça central e para as vias de circulação de cidades, vilas e áreas fortificadas.
Dimensões para as praças e vias de circulação segundo Serrão Pimentel | |||
Logradouro | Praça central | Praças menores | Praças diante do baluarte |
Medidas em palmos | 120/200/250 de lado | 80/100 de lado | 150/200 de lado |
Logradouro | Ruas principais | Ruas secundárias | Estradas à volta das cortinas |
Medidas em palmos | 30/35 | 25/30 | 20/30/36 |
Palmo português = 0,22 m |
Em todos os autores portugueses, um bom sítio para implantar cidades, vilas e lugares deveria ser um lugar sadio, com boas águas, com espaço para pomares e criação de animais. Isto aparece em Matheus do Couto e Serrão Pimentel, autores do século XVII, e Azevedo Fortes e Diogo Vellozo, ambos do século XVIII. Esses autores atuaram para atender as prioridades da coroa portuguesa em diferentes momentos. Matheus do Couto atuou no período da unificação das coroas portuguesa e espanhola, e se voltou mais aos problemas do território metropolitano, ou seja, de Portugal. Serrão Pimentel foi o primeiro grande nome da engenharia militar portuguesa no período da Restauração (separação entre as coroas portuguesa e espanhola). Além da defesa do território metropolitano, a defesa dos territórios coloniais, a melhoria dos conhecimentos técnicos e a intervenção em áreas urbanizadas fortificadas foram prioridades para ele (MAROCCI, 2011).
Diogo Vellozo, engenheiro militar português que atuou em Pernambuco, em seu tratado Architetura militar ou fortificação moderna “trata das qualidades dos sítios e quais são os melhores para se haverem de fortificar”, e identifica seis possibilidades de assentamento de praças fortificadas: “sobre a montanha, ou rochedo, campanha raza enxuta ou alagadiça, dentro de alguma ilha, ou peninsula.” (VELLOZO, 2005) A partir dessa distinção, Vellozo analisa caso a caso, os prós e os contras de cada situação. Finalmente, elege o que considera a melhor situação para implantação de uma praça fortificada: “he melhor hum sitio moderadamente elevado sobre a campanha raza, e tanto melhor se algum rio lhe passe junto pelo qual se possão com menos despeza conduzir as monições, e tudo o mais de que necessita hu’a praça de armas, como Viena de Áustria na Ungria.” No caso de fundações ex-nihilo (do zero), além de tratar da necessidade de buscar sítios com bons ares e com abundância das águas, Vellozo (2005) acrescenta a importância de que o terreno em torno da praça seja fértil e propício ao desenvolvimento do sítio, que não haja outeiro vizinho que possa permitir o ataque do inimigo pela artilharia e, caso tenha porto, que ele possa ser bem defendido.
A urbanização do Brasil, até o século XVII, centrou-se na fundação de cidades para funcionarem como capitais regionais, cujos principais exemplos são Belém e São Luís, e na criação de uma rede de vilas e povoados com traçado que denotava uma escolha pela maior regularidade possível, portanto, dentro do espírito da flexibilidade e da adaptabilidade (MAROCCI, 2011). Na construção dessa rede nem sempre se contava com engenheiros militares para projetar e executar as obras das novas vilas e povoados; na falta deles, outros funcionários régios assumiram esse papel. Ouvidores, governadores de capitanias e altos funcionários eram responsáveis pela escolha do local e pelo primeiro traçado, orientados pelas determinações contidas nas Cartas Régias, que ordenavam a criação de novas vilas ao longo do século XVIII. Contudo, a concepção de cidade nos escritos de Serrão Pimentel e de Vellozo se constitui, ainda, numa concepção de praça fortificada, elemento de defesa de um território. Para a pesquisadora Renata Araújo (1998), a rede de núcleos urbanos construída no Brasil setecentista apresenta um conjunto de princípios racionais para além da intenção de defesa, pois o objetivo era a demarcação de domínio do território, de aplicação de leis que visavam à legitimação de um poder sobre tudo e sobre todos.
As cidades, vilas e povoados, enquanto espaços edificados, fizeram parte de um projeto maior que sua extensão territorial e cultural, foram dotadas de princípios estéticos que não se esgotaram como elementos indutores da forma, mas tornaram-se, também, elementos fomentadores da ordem, do domínio e do controle do território e das gentes, um marco civilizador. A forma desses núcleos se constituía numa fórmula de complexa racionalidade, que tinha como base os princípios da simetria e da harmonia como promotores da comodidade pública e do prazer estético proporcionado pela uniformidade das fachadas voltadas para a rua ou eixo principal (MAROCCI, 2011). Pode-se perceber a aplicação desses princípios em ações efetuadas desde o reinado de D. João V nos projetos elaborados para trechos de Lisboa, no reinado de D. José I, na implantação da Vila Real de Santo Antônio, bem como em vilas construídas no Brasil.
Para a historiadora e pesquisadora Maria Helena Flexor (2004), a Carta Régia de 3 de março de 1755, que cria a Capitania de São José do Rio Negro, é um documento fundamental para o entendimento dos parâmetros urbanísticos adotados no Brasil. Nela estão definidos tanto a opção pelo traçado regular (para que as ruas fiquem largas e direitas) quanto a uniformidade nas fachadas (para maior formosura do lugar). As novas fundações no Brasil, a partir do século XVIII, não foram orientadas pelo modelo cidade-fortaleza, principalmente nas vilas originárias de aldeias missioneiras. Flexor observa que a relação cidade-fortaleza se manteve apenas em regiões estratégicas onde a definição dos limites com as colônias espanholas assim exigia. A questão é que o foco foi mudado. Não era mais a defesa da cidade e, sim, o território que tinha de ser defendido com assentamentos estrategicamente locados e formulados com parâmetros urbanísticos marcadamente definidores do universo ao qual pertenciam.
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, R. M. de. As cidades da Amazônia no século XVIII: Belém, Macapá e Mazagão. Porto: Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, 1998.
CÔRTE-REAL, E. O Triunfo da Virtude. As origens do desenho arquitectónico. Lisboa: Livros Horizonte/Universidade Técnica de Lisboa, 2001.
VELLOZO, D. da S. Architectura militar ou fortificação moderna. Organização e comentários de Mário Mendonça de Oliveira. Salvador: Edufba, 2005.
MAROCCI, G. V. P. O Iluminismo e a urbanística portuguesa: as transformações em Lisboa, Porto e Salvador no século XVIII. 2011. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.
FLEXOR, M. H. O. A rede urbana setecentista. A afirmação da vila regular. In: TEIXEIRA, M. C. (Org.). A Construção da Cidade Brasileira. Lisboa: Livros Horizonte, 2004.