Por Vitor Rocha
“O público se renova, novas gerações vão curtindo Novos Baianos, porque novos artistas também vão curtindo Novos Baianos, vão colocando em seus trabalhos a referência que é e que foi “Novos Baianos”.
Em 2024 Paulinho Boca de Cantor celebra 60 anos de uma carreira brilhante, marcada por sua participação ativa no Carnaval e por sua contribuição para a música brasileira. O artista se apresenta no Carnaval de Salvador desde 1976, sempre inovando e atualizando suas performances, incluindo a evolução tecnológica da festa, sendo um dos responsáveis pelo som de voz no trio elétrico.
Como compositor e intérprete popular, sua colaboração para a musicalidade do Brasil é inegável, participando como membro fundador dos Novos Baianos, cujo álbum “Acabou Chorare” foi reconhecido pela revista Rolling Stone como o melhor disco já feito no país. Por carreira solo, seu álbum autoral de estreia, “Além da Boca”, lançado em 2022, angariou elogios da crítica e do público, solidificando seu status como uma das figuras mais importantes da música nacional. Paulinho Boca de Cantor tem sido uma força vital na efervescência da Bahia, influenciando e inspirando as estrelas baianas nas últimas décadas.
No carnaval deste ano, o músico nos brinda a população com uma interpretação de seu repertório, atravessando estilos da sua trajetória, além de evidenciar sua importância histórica, refletindo parte significativa da rica história da festa que ajudou a aprimorar. Nesta entrevista, o artista discute o legado de 60 anos de carreira, discorre sobre seu processo criativo e até mesmo a origem do seu apelido “Boca de Cantor”.
Vítor Rocha – Participando ativamente no Carnaval por tanto tempo, quais mudanças você percebe na festa ao longo dos anos?
Paulinho Boca de Cantor – Participando do Carnaval por tanto tempo, é claro que acompanhei todas as mudanças. Você imagina, quando comecei a pular o Carnaval, era apenas um bloco no chão. O trio elétrico era uma raridade, aparecia de vez em quando como um disco voador. Então, presenciei todas as transformações do Carnaval, não apenas presenciei, mas também ajudei a transformá-lo. Uma das contribuições dos Novos Baianos para o Carnaval foi a amplificação do som de voz, permitindo que grandes estrelas cantassem em cima do trio elétrico. Nós iniciamos isso, nós que colocamos o som de voz no trio elétrico. Pegamos o som de voz que costumávamos usar nos nossos shows antológicos na Concha Acústica todos os anos, trazendo-o do Rio de Janeiro ou de São Paulo, e o conectamos ao trio elétrico. Antes, o trio elétrico era apenas instrumental, e as vozes não eram amplificadas, nós amplificamos as vozes. Além disso, introduzimos outras leituras e músicas no Carnaval, que antes era só frevo e samba. Tocamos outros gêneros, incluindo rock and roll, algo que os Novos Baianos também trouxeram para o Carnaval. Portanto, participamos de todas as mudanças, inclusive do circuito. Antes, havia apenas o circuito do Campo Grande, e participamos dos primeiros shows e montagens do circuito Barra-Ondina. Enfim, estive muito envolvido em toda essa história do Carnaval. Desde criança, brinco o Carnaval, sempre gostei. O Carnaval nos clubes, de certa forma, acabou porque as ruas ficaram mais atrativas. Já éramos artistas famosos em todo o Brasil e fomos para as ruas cantar, fazer shows gratuitos para o povo, o que esvaziou os clubes. Temos certeza disso. Como disse Caetano Veloso: “Manda essa gente sem graça para o salão”.
Vítor Rocha – Há novos trabalhos em planejamento? O que tem feito?
Paulinho Boca de Cantor – A gente não para de se renovar, não para de pensar e sonhar com novos trabalhos. É assim o tempo todo, sempre foi. Afinal de contas, somos Novos Baianos. Isso não é apenas um nome, significa que estamos sempre prontos para a vida, sempre abertos a novas experiências, novas canções que surgem, novos artistas que aparecem. Estamos sempre nos aproximando do que há de mais novo, querendo entender o que está acontecendo a cada momento. Claro que há planejamento. Sempre estou fazendo meus discos, tenho composto canções. Lancei recentemente um disco, o “Além da boca”, que é autoral e está disponível em todas as plataformas, mas já tenho canções novas que dariam para fazer outro disco. É isso aí, estamos sempre planejando, porque sonhamos, e quem sonha sabe que é preciso buscar a realidade sempre. Assim tem sido nossa vida, nosso trabalho.
Vítor Rocha – Como é seu processo de renovação artística? A troca entre gerações de músicos auxilia nesse processo?
Paulinho Boca de Cantor – Primeira coisa que você tem que fazer é não sentir que passou, porque o público do show dos Novos Baianos e dos meus shows é um público jovem que não estava presente quando começamos, quando alcançamos sucesso nos anos 70. Isso nos dá um impulso para sempre pensarmos em renovação. Você precisa acompanhar o ritmo do que está acontecendo, e nós sempre fizemos isso. Sempre que as coisas ficam difíceis, estamos lá juntos. Os músicos que tocam comigo são todos jovens. Muitos poderiam ser meus netos e estão tocando comigo, trazendo suas novas experiências. Meu filho, Betão Aguiar, é quem me dirige. Confio plenamente nele porque ele entende minha vontade de sempre estar próximo do novo, de sempre acompanhar o que está acontecendo. Isso é renovação. Isso nos faz sentir cada vez mais jovens e faz com que o público que nos acompanha também seja jovem. O que aconteceu com os Novos Baianos em 2016 foi incrível. Noventa e nove por cento do público lotava os shows. Os ingressos esgotaram em meia hora, e era um público jovem e novo que tinha curiosidade sobre os Novos Baianos, sobre como vivemos, sobre a bela história de deixar nossa família para criar uma nova. Nosso trabalho perdura até hoje. Fomos premiados com um dos discos mais importantes da música popular brasileira, “Acabou Chorare”. Isso tudo atrai essa juventude para perto, essa curiosidade sobre o trabalho dos Novos Baianos.
Vítor Rocha – Qual foi a canção mais desafiadora de produzir ao longo da sua carreira? Como foi o processo criativo?
Paulinho Boca de Cantor – Bom, as canções mais desafiadoras geralmente não são apenas uma, são várias, não é mesmo? Houve desafios ao interpretar as músicas dos Novos Baianos, como “Mistério do planeta”, “Dê um rolê”, assim como ao fazer “Swing do Campo Grande”, onde as pessoas ficam sem entender o que significa “Eu não marco toca, eu viro toca, eu viro moita”. Querem saber? Aquilo ali são momentos vividos, as letras das músicas dos Novos Baianos traduzem a vida que compartilhamos. O poeta Luiz Galvão foi quem melhor soube traduzir isso. Então, todas as músicas surgiram das vivências, não são apenas criações aleatórias, eram músicas que fizemos porque vivenciamos aquilo. Portanto, todas foram desafiadoras, afinal, a vida é um grande desafio.
Vítor Rocha – Como você avalia o legado dos Novos Baianos?
Paulinho Boca de Cantor – Bom, quem tem que avaliar o legado dos Novos Baianos é o público. A gente percebe que as grandes estrelas, os grandes artistas que vieram depois de nós, sempre tiveram Novos Baianos como referência. Isso nos deixa muito felizes e faz com que nosso trabalho tenha essa longevidade. O público se renova, novas gerações vão curtindo Novos Baianos, porque novos artistas também vão curtindo Novos Baianos, vão colocando em seus trabalhos a referência que é e que foi Novos Baianos. Então, isso é importante, porque sabemos que é isso que faz o trabalho durar. Por isso que ainda somos novos e baianos até hoje, porque foi um trabalho árduo, um trabalho que foi feito com muita verdade. Nós abandonamos nossa vida normal, nos juntamos, fomos morar juntos, criamos uma nova família, e o que criamos é o que vivemos. Era a nossa vivência traduzida pelo grande poeta Luiz Galvão, pelas composições de Moraes Moreira, pela vida de cada um de nós, não é mesmo? Porque quando a canção era feita lá nos Novos Baianos, era uma criação coletiva de certa forma, porque já sabíamos que eu era quem ia cantar “Mistério do Planeta”, quando ficou pronto, todo mundo viu que era eu quem tinha que cantar, assim como “Dê um Rolê” também, e ajudei a compor outras músicas como “Swing do Campo Grande”, “Caia na estrada e perigas ver” e várias outras. Portanto, é isso aí, Novos Baianos é uma história de vida, de música, que até hoje desperta muita curiosidade nas gerações que estão chegando, e esperamos que sempre permaneça assim.
Vítor Rocha – Como surgiu o apelido “Boca de Cantor”? Quem foi responsável por atribuí-lo à você?
Paulinho Boca de Cantor – Bom, esse apelido de “Boca de Cantor”, ele vem comigo, me acompanha desde antes dos Novos Baianos. Ou seja, eu sou boca de cantor antes dos Novos Baianos, certo? Eu era Crooner de Orquestra, animando bailes aqui na capital, no interior, baile de debutante, baile de formaturas, casamentos. Então, eu cantava em orquestra e comecei a cantar exatamente em 1963, por isso estou comemorando 60 anos de cantoria, de música e também de carnaval, porque sempre participei do carnaval, embaixo e depois subindo no trio elétrico para animar o carnaval. E é claro que eu tinha que colocar a voz no trio elétrico, porque eu não toco guitarra baiana, né? Então, eu e a Baby somos responsáveis por colocar o som de voz amplificado no trio elétrico. Mas o apelido “Boca de Cantor” foi assim: durante um intervalo de ensaio na orquestra, nós estávamos descansando, aquela tarde baiana gostosa, relaxando embaixo de uma mangueira. Em frente ao local onde ensaiávamos, tinha um cachorro que nos acompanhava, não é? O King, que era o cachorro da casa do maestro Perinho Albuquerque, de Moacyr Albuquerque, dois músicos da orquestra. Na orquestra também tinha Zé de Abreu, Tutti Moreno, Valmir Andrade, entre outros músicos que depois também fizeram carreira. Então, estávamos descansando ali, o cachorro estava ao meu lado, abriu a boca, e passou um cara que também tinha apelido, chamado André Picardia. Ele passou e viu o cachorro abrindo a boca, e disse: “King boca de Pantera”, era um cachorro vira-lata pequeno. Ele olhou, disse: “está ao lado de Paulinho Boca de Cantor”, e aí pegou, todo mundo riu, e sabe como é, né? Quem não tem apelido na Bahia não é baiano, poderia ser também boca de provar moqueca, mas ficou o Paulinho Boca de Cantor. Um grande abraço. Estamos juntos, espero vocês todos aí no Carnaval para comemorarmos esses 60 anos de estrada com muita música.