Um recorte da cena de mulheres que fazem tatuagem por aqui
Por Matheus Spiller
Três perfis.
Três histórias.
Três olhares femininos sobre a tatuagem.
Três mulheres potentes, cheias de personalidade e talento, que fazem da arte de tatuar um meio de extravasar criatividade, beleza, filosofia e muito mais. Mulheres que marcam a pele e a alma. Mulheres que modificam para sempre. Mãos firmes e corações quentes chegando por aqui com suas perspectivas a respeito do fazer artístico a que se dedicam na capital da Bahia.
Com vocês, as tatuadoras: Aidil, Suiane e Tayane!
AIDIL
“Muitas histórias acabam mexendo comigo profundamente”
Aidil tem 32 anos, é soteropolitana, nascida e criada no bairro de São Caetano. Feminista, formada em direito e mãe de pet – uma cachorrinha chamada Lady. Ela pinta, desenha e há dois anos ingressou no mundo da tatuagem.
Aidil faz parte de um segmento forte, que ganha cada vez mais espaço e destaque em Salvador: o das tatuadoras. Mulheres que enfrentam barreiras e preconceitos arraigados no machismo nosso de todo os espaços e áreas de atuação, e se estabelecem no concorrido mercado da tatuagem. Elas fazem bonito e firmam posição em uma nova cena que chama atenção de quem curte artes ligadas à ornamentação corporal.
A formação de cenas ou grupos que representam comportamentos e maneiras de se comunicar com o mundo tem uma característica forte: o compartilhamento de experiências e interesses em comum. No caso das mulheres que fazem tatuagem isso é bem presente. As tatuadoras se fortalecem no dia a dia, trocam ideias e ajudam umas às outras a enfrentar desconfianças que insistem em se contrapor ao trabalho delas.
Algumas dessas impressões surgem inclusive de uma parte dos colegas tatuadores. “Eu recebo apoio dos meus amigos, obviamente, mas das mulheres eu sinto um apoio muito maior. Tatuador homem apoia, mas não tanto. Alguns vêm a gente como concorrência ou como se não fossemos dignas de fazer o mesmo trampo de que eles fazem”, conta Aidil.
A delicadeza no trato com os clientes é um diferencial destacado por ela como uma peculiaridade das mulheres que fazem tatuagem. “A gente tem mais empatia. Tem muita gente que chega e faz uma tatuagem e pronto, acabou. Mas tem gente que faz com significado, tipo ‘pô…eu perdi meu pai…’, e a gente tem uma delicadeza maior para tratar nessas situações”, afirma.
“Tem o lado ruim disso, que algumas pessoas se aproveitam da situação da gente ser empática e se passam. Tem cliente que acha que pode falar, fazer coisas, que pode te tocar…e isso não é legal. Já aconteceu de eu estar tatuando um cara e ele achar que eu ia dar a tatuagem dele. Não sei por que diabos ele achou isso. Talvez essa autoestima de homem, que é uma coisa invejável…ele achou que fosse ganhar a tatuagem e eu não fosse pagar meu boleto”, conta.
Momentos de emoção também marcaram a trajetória de Aidil na tatuagem. “Muitas histórias acabam mexendo comigo profundamente. Principalmente pessoas que são sobreviventes de tentativas de suicídio e fazem tatuagens em locais de automutilação…isso mexe muito comigo”, completa. Esses momentos de emoção são citados por ela como fator importante para seguir na batalha. “É difícil, você ganha pouco porque tem altos e baixos, mas é tão gratificante estar fazendo uma parada tão significativa na vida de uma pessoa, estar marcando isso…aí eu acho de fuder!”.
Como o nosso papo aqui é a cena de tatuadoras da capital baiana, chegou a hora de saber se Salvador é uma cidade que inspira a tatuagem. Para Aidil, sim. “As pessoas sentem orgulho mesmo de ser nordestinas! Tatuam a cidade, tatuam o farol…”, afirma Aidil. “Eu não achei que isso fosse possível antes de ser tatuadora, mas você vê a galera tatuando mesmo e botando pra fora”, completa.
O trampo de Aidil é bem variado. Mas o que ela curte fazer mesmo é coisa ligada a terror e horror. Só que segundo a tatuadora o público de Salvador não costuma requisitar muito esse tipo de arte. “Eu gosto muito de horror, mãos saindo por cabeça, por boca…mas parece que aqui em Salvador não tem muito público pra isso, ou, se tem, esse público tá meio escondido de mim… ”.
Hoje Aidil tatua no estúdio Galeria do Risco, que fica no Centro Empresarial Iguatemi. E os planos para o futuro incluem a aquisição de um estúdio próprio que, segundo ela, será mais do que um espaço para a tatuagem. “Vai ser uma galeria pra galera expor uma arte mais alternativa que eu acho que é mais a minha vibe”. Quem quiser conferir a arte de Aidil, pode recorrer à galeria virtual do instagram no @aidiltatoo.
Vale a pena conferir!
Dose de inspiração
A pedido da nossa reportagem, Aidil deixou indicações de artistas que inspiram o trabalho dela de diferentes maneiras e que merecem ser apreciados.
Vamos deixar por aqui os @s da galera no Instagram:
@cauink, @renatajardimtattoo, @chicomorbene, @vinicius.ibrahim e @igordeolho.
SUIANE
Colocar delicadeza nos corpos
Suiane é uma artista visual multifacetada de 25 anos. Faz ilustrações, pinturas e há três anos começou a traçar sua caminhada na tatuagem. O trampo dela equilibra força e delicadeza em figuras que encantam com elementos afrorreferenciados, que exaltam o poder do feminino, da natureza e da beleza negra.
A afetividade é a marca da tatuagem de Suiane que, que tem uma maneira muito especial de pensar neste conceito para trazê-lo à tona na pele das pessoas. “Uma coisa que me inspira muito é colocar afetividade, sentimento na tatuagem. Trazer as narrativas que eu gosto, do contato com a natureza, desses corpos pretos neste lugar de afetividade. Eu gosto de trazer esse ponto fora da curva da tatuagem, daquela tatuagem que assusta…eu gosto de trazer delicadeza”, conta.
Antes de ser tatuadora, Suiane era consumidora de tatuagem. Sempre gostou da arte. E foi observando o mercado e o dia a dia do segmento que logo identificou uma carência importante. Observou que faltavam espaços adequados para a abordagem que ela admira e propõe. “É o meu norte. Pensar em oferecer um lugar, tanto artístico quanto de atendimento, espaço físico e técnica, confortáveis para pessoas pretas”, conta Suiane. “Isso é um desafio, já que, no geral, a tatuagem é bem centralizada em pessoas brancas privilegiadas”, completa.
Para Suiane, a relação entre tatuadora e cliente tem que ser permeada por um sentimento de confiança. “Percebi que o meu trabalho é importante, porque existem pessoas que, assim como eu, podem estar à procura de um lugar confortável para se tatuar, uma pessoa confiável. Afinal a tatuagem é você entregar um pedaço do seu corpo para alguém que vai fazer uma mudança nele que vai ser eterna”, afirma.
Mas, nem tudo é beleza neste caminho. Suiane nos conta que o mercado ainda impõe alguma resistência. “Já rolou de eu estar nesses ambientes (da tatuagem) e ser alvo de olhares diferentes. Das pessoas não levarem a sério. Por eu ser uma tatuadora preta, por estar em outra lógica…eu sinto que as vezes isso se sobrepõe à técnica e à qualidade do trabalho”, conta Suiane.
Um outro desafio diante do qual a tatuadora se posiciona é o de questionar o mito que afirma que pessoas pretas não podem ter tatuagens delicadas, com traço fino. “Aí a gente entra na questão de técnica. Como fazer uma tatuagem que dê certo na pele preta…Não existe uma diferença enfática biológica sobre pessoas pretas não poderem ter certo tipo de tatuagem. É uma coisa que vem do treinamento do profissional e de como construir um desenho que encaixe nesse corpo”, defende.
A tatuagem realista, que é construída muito a partir de sombra, é um exemplo citado por ela como um ponto a ser pensado quando direcionada à pele preta. “Muitos tatuadores não pensam nisso pra fazer aí o resultado não fica tão legal e cria-se uma ideia de que pessoas pretas não podem ter tatuagens realistas. A mesma coisa com traço fino. Muita gente fala que ele vai ser engolido pela pele, vai sumir… mas é uma questão de como fazer esse traço ficar nessa pele! É saber fazer o trabalho se encaixar em outros tipos de pele que não aqueles que eu estou acostumado”, completa Suiane.
O olhar sensível de Suiane a respeito da estética e das relações humanas no universo da tatuagem nos leva também a uma reflexão sobre autoestima. “Autoestima é algo historicamente negado a pessoas pretas. Mas hoje a gente pode, em todos os ambientes da sociedade, ter autoestima, se autoafirmar, e a tatuagem é parte disso também”, afirma. “Têm surgido pessoas como eu e outras artistas. As coisas só caminham quando a gente se da conta e começa a agir…e tá acontecendo!”
Suiane conta também que sente muito apoio das colegas tatuadoras. Segundo ela, as mulheres se ajudam, compartilham experiências, aprendem umas com as outras, o que é fundamental para seguir firmes neste campo concorrido. “Isso é fundamental porque a gente se sente atravessada e encurralada por muitas outras questões, mas ali, juntas, todo mundo se ajuda”.
Como plano, a tatuadora quer seguir seu caminho de delicadeza e afetividade na tatuagem, mostrando que não há limites para quem deseja se expressar desta maneira. Afinal, afeto e delicadeza podem ir parar no coração via traço desenhado na pele. O trabalho de Suiane é a prova disso.
Quem quiser conhecer melhor o trampo dela é só dar uma chegada no Instagram da artista:
@suianetattoo. Ela tatua atualmente no estúdio @casasolofertil.
Dose de inspiração
Suiane deixou, a pedido da nossa reportagem, indicações de artistas que inspiram e nos quais vale a pena dar um saque. A gente deixa aqui os @s da galera no instagram:
@deusameduza @matrizb @bastostatto44 @fabiolopesttt
Tayane
Se reinventando para prosseguir
Tayane é soteropolitada, tem 36 anos, já trabalhou em escritório, em loja de roupa e, desde 2017 encontrou a tatuagem como meio de expressão para uma artisticidade aflorada desde sempre. Já na adolescência, ela colava nos eventos para vender camisas e bolsas com suas pinturas. “Eu sempre tive dons artísticos…desenhava, pintava…ia para os eventos e pendurava essas peças pelo Parque da Cidade, pelo Pelourinho, que era uma forma de eu ter também uma renda”, conta Tayane.
A tatuagem entrou na vida dela como uma alternativa de trabalho, uma vez que, após o diagnóstico de autismo do filho Rudá, ela se viu impossibilitada de cumprir uma jornada regular em um emprego mais “tradicional”, por assim dizer. Neste momento, Tayane contou com o apoio fundamental do amigo Rangel, que na tatuagem é Sr. Ventura. “Ele foi a pessoa que me deu essa luz da tatuagem. Falou sobre o meu trabalho com as bolsas e camisas, me incentivou…’estude que cê vai brocar’”, lembra.
E foi exatamente o que ela fez! Passou a estudar e se aprimorar na tatuagem. Com o tempo, tatuar se tornou uma fonte de renda que abria a possibilidade de lidar com a arte, que já era presente em sua vida e ao mesmo tempo se dedicar a cuidar com ainda mais atenção da criança.
A maternidade e a tatuagem se entrelaçam de maneira fundamental neste momento da história de Tayane. Um outro ponto importante para essa guinada na vida foi a participação em um comercial. “Foi uma trajetória bem difícil, bem complicada. Eu não tinha recurso nenhum pra investir. Então eu fui convidada para participar de um comercial da Nestlè para falar sobre a minha história de maternidade atípica e solo…e foi com a grana desse comercial que eu pude investir no material pra começar”, conta. O pontapé inicial da carreira de tatuadora exigiu também um desapego. Tayane teve que abrir mão de um violão que tinha em troca de uma máquina de tatuagem.
Com a máquina na mão, Tayane fez da tatuagem um exercício de liberdade artística. Isso é percebido no trabalho dela, que não gosta de colocar fronteiras que limitem os horizontes criativos. “Eu não gosto de me rotular nesses estilos que são pré definidos pela tatuagem. Mas, entre os estilos modernos que hoje existem, eu tenho mais afinidade com o blackwork, ornamentais, florais eu curto muito. E tenho também um pouco de inspiração no oldschool, que é aquele trampo mais antigo”, ressalta.
A negritude tem uma relevância central no trampo de Tayane: “Meu trabalho é muito voltado para o resgate da autoestima das pessoas de pele negra. Principalmente as pessoas de pele retinta. Todo o foco da minha pesquisa, dos meus estudos é baseado nisso. Justamente por eu ser também uma mulher negra e ter passado por essa experiência de não encontrar muitas alternativas de artes e desenhos. Então eu decidi focar nisso para trazer um trabalho diferenciado”, conta.
Salvador inspira a criatividade de Tayane justamente pela forte conexão espiritual com a África. Segundo ela, essa característica influencia na linha de transformação presente na tatuagem que ela cria. “Eu não gosto muito de fazer qualquer tipo de tatuagem, qualquer desenho. Eu procuro trazer para os meus clientes uma perspectiva baseada na questão ancestral, da tatuagem antes da colonização”, afirma. “Então Salvador para mim é tudo, já é uma inspiração em si…além do fato de aqui ter sido o lugar que começou a existir a tatuagem em pele negra”, completa.
As dificuldades de ser uma tatuadora negra, mãe atípica e solo são imensas. Tayane conta que muitas vezes sente resistência nos ambientes de trabalho. “Eu tive que me reinventar milhares de vezes para prosseguir, porque por mais portas que eu tenha conseguido arrombar, fazendo meu trabalho com o nível de profissionalismo que eu tenho, a minha maternidade sempre entra na pauta. Sempre é uma dificuldade para eu permanecer nos espaços, para as pessoas me acolherem, pra de fato eu estar inserida nesse mercado”, conta Tayane.
A tatuadora cita um outro problema enfrentado: a questão da credibilidade artística da mulher que faz tatuagem. “Muitas vezes quando a tatuagem fica pronta, as pessoas não acreditam que foi uma mulher que fez. Sempre tem essa coisa de não botar fé no trabalho da mulher”, lamenta.
“Eu acho que o mercado ainda não tá pronto pra receber as potências das mulheres, sem deixar de enxergá-las apenas como mães. Apenas esse ser que foi talhado para ser mãe. É como se o profissionalismo de mulheres como eu não fosse validado por conta da realidade que a gente vive. Mas enfim…recomeçando sempre! Acreditando que ser mãe de uma criança com deficiência não me incapacita de ser uma boa profissional”, conclui a artista.
Tayane hoje tatua em homestudio, onde pode trabalhar e dar atenção ao pequeno Rudá, e mostra toda sua criatividade, capacidade e potência no Instagram. Para conhecer o trabalho dela é só chegar no @tayruts.
Dose de inspiração
A pedido da nossa reportagem Tayane citou referências de uma galera que faz tatuagem e que, segundo ela, vale a pena dar uma olhada nos trampos.
Deixamos aqui os @s da galera no Instagram:
@nelytattoo @d.i.m.a.k @finhosoueu
Tatuadores que sigo e curto o trabalho:
Jackson (de Camaçari), Braba (Evelyn), Ingrid Artes, Dagata tattoo, Aziris, Mariart, Liv Mercês, Meduzart, Black Jackie, Hanna Carneiro, Fanny Cardhym e Bruna Dultra