Por Pedrão Abib
Sambista, compositor e pesquisador do samba
O samba é algo que mexe com a gente. Inexplicavelmente, nossos, pés, quadris ombros, cabeça e todo o corpo começam a remexer, mesmo sem a nossa permissão, quando soam uma viola bem tocada, um cavaquinho malandro, um pandeiro sagaz, um tamborim arisco ou um surdo retumbante que chega direto no nosso peito, soa no coração. É algo que a gente não compreende, apenas se sente e se deixa levar. É coisa ancestral, profunda, que vem de longe.
O samba rompe qualquer fronteira, chega onde a gente não imagina, emociona, faz estremecer, arrepia, alegra, traz nostalgia, cura feridas. O samba acolhe todo mundo, gente pobre e gente rica, homem, mulher, criança, doido varrido, todo tipo de sexualidade, preto, branco, crente e ateu.
Mas samba, antes de mais nada, é coisa de preto, sim senhor ! Preto pobre e marginalizado. Samba tem certidão de nascimento. Não pra dizer que nasceu aqui ou ali: Bahia, Rio de Janeiro, ou algum interior profundo do Brasil. Isso pouco importa pois o samba nasce mesmo onde quer que o negro escravizado tenha chegado trazendo, tambores, alegria, dança, religiosidade, musicalidade e sensualidade. Sem dúvida nenhuma, a identidade profunda do samba está ligada à experiência do povo negro no Brasil e sua luta por liberdade e por dignidade, que atravessa séculos e continua até hoje.
O samba tem um papel importantíssimo na construção da identidade nacional, aquilo que nos identifica lá fora como brasileiros, mas também na construção do nosso imaginário como povo sofrido e alegre, que tem a capacidade de lidar com suas dores e agruras da vida cantando, dançando e fazendo festa. Porém o samba sempre foi perseguido pelos donos do poder que tinham como projeto, no início da república, o embranquecimento da nação brasileira, o que implicaria em perseguir e reprimir violentamente toda e qualquer manifestação ou atividade que tivesse ligação com esse universo simbólico do negro africano que se buscava apagar.
Assim a capoeira, o candomblé, o samba e todas as demais manifestações negras do país, ou foram proibidas por lei (no caso da capoeira), ou foram perseguidas de forma contundente e de várias maneiras pelo poder estabelecido, durante várias décadas no Brasil. O sambista João da Baiana, ilustre integrante da galanteria do samba no início do século XX, contava que ele carregava um pandeiro pelas ruas do Rio de Janeiro que tinha a assinatura do delegado de polícia, pois senão se fosse pego, os policiais arrebentavam o pandeiro junto com o dono. Era assim a perseguição: qualquer símbolo da cultura negra ligava imediatamente seu portador ao universo do crime, da vadiagem, da desordem, da contravenção.
Porém, apesar de toda essa violência e perseguição, a sabedoria ancestral do povo negro sempre soube resistir à sua maneira, fazendo com que essas manifestações sobrevivessem e chegassem até os dias atuais como símbolos da nossa cultura. A capoeira está espalhada por mais de 160 países pelo mundo todo. O samba por onde chega encanta e leva a alegria do povo brasileiro para toda parte e o candomblé e demais religiões afro-brasileiras, são a marca da nossa religiosidade diversa e miscigenada presente em todos os segmentos da sociedade brasileira.
Mesmo perseguido e marginalizado o samba sempre resistiu. Sempre denunciou as injustiças sociais, as violências, o racismo, as mazelas da nossa sociedade, principalmente aquelas que mais atingem o povo simples e excluído do nosso país. Mas sempre soube falar de temas tão trágicos com uma leveza, ironia, bom humor e poesia admiráveis. E também sempre falou do amor, da amizade, dos costumes, das desilusões, da malandragem como forma de driblar a opressão, dos fatos e personagens históricos, enfim, o samba sempre foi a crônica inteligente, poética, perspicaz e bem humorada do nosso país.
Até nos momentos mais duros, o samba nunca se calou, como na ditadura militar, por exemplo, quando foi perseguido pela censura, fazendo com que muitos compositores fossem alvo da repressão do regime, através de ameaças, prisões, tortura e exílio. O samba também adquiriu uma roupagem comercial, através de uma estética apelativa que favorece o consumo fácil de letras vazias de sentido e poesia. Porém, apesar dessa mercadoria de fácil consumo que se tornou o samba, ele, por outro lado sempre soube resistir e permanece vivo e atuante, de maneira crítica e engajada, no morro, nas favelas, nas periferias das grandes cidades, nas zonas rurais que ainda cultivam suas ancestralidades, nos botequins, praças e becos por este Brasil afora. O grande sambista baiano Walmir Lima me disse uma vez num balcão de botequim, no bairro do Garcia: “Ouça o samba, pois ele tem todas as respostas!”