Por Maria do Carmo Baltar Esnaty de Almeida
No início de janeiro, e depois de 10 anos fechado, foi aberto à visitação o subsolo do Mercado Modelo, espaço que sempre despertou a curiosidade de estudiosos e da população, seja por suas características construtivas, seja pelas interpretações fantasiosas de sua ocupação e uso, e que passa agora a abrigar uma galeria de arte. Esta ação fez parte de um conjunto de obras de requalificação do antigo edifício da Alfândega onde, desde 1971, funciona o Mercado Modelo, maior centro de artesanato da cidade.
A requalificação deste edifício, tombado pelo IPHAN, e do seu entorno, para além das questões sobre formas e técnicas de intervenção no patrimônio construído, permite um olhar para a presença da linguagem neoclássica na arquitetura da cidade, da qual a Alfândega Nova (na verdade, a terceira construída na cidade) é um dos seus exemplares mais significativos.
A Alfândega, cuja construção foi iniciada em 1843, é o segundo edifício público inteiramente concebido em linhas neoclássicas, em Salvador (o primeiro foi a Associação Comercial, com projeto de 1812), e aponta a adoção desta linguagem arquitetônica como oficial, empregada posteriormente em outros edifícios. Vale salientar, contudo, que, na Cidade Baixa, as reformas ornamentais de algumas igrejas, assim como os arranjos espaciais dos projetos de ordenamento e expansão urbana, desde o século anterior, já indicavam as novas tendências estéticas.
De planta quadrangular e simétrica, a Alfândega Nova possui dois pavimentos, mais um subsolo (originalmente concebido para ser uma cave de vinhos) e a ábside (parte semicircular que se projeta para fora do corpo do edifício), e foi edificado em trecho dos novos aterros feitos ao mar. Construída em alvenaria de pedra, traz a fachada principal coroada por frontão triangular e aberturas guardadas por grades de ferro em xadrez. Formava com o então antigo edifício da aduana um só conjunto, separados por um pátio com gradil. Sua construção se estendeu até 1863 por problemas diversos, inclusive com o afastamento do seu autor da supervisão dos trabalhos.
O autor do projeto é o Engenheiro Andre Przewodowski. Apesar de não ser completamente ignorada pela historiografia tradicional da arquitetura, sua obra e a influência desta na produção local, ainda não foi investigada com maior aprofundamento. Segundo trabalhos sobre a imigração polonesa para o Brasil, Przewodowski nasceu numa família ilustre em Varsóvia, Polônia, em 1799, e chegou ao Brasil em 1839, procurando refúgio após participar da Revolução de 1831, contra o jugo moscovita. Ainda que não se tenham dados precisos sobre a sua formação, sabe-se que se formou como engenheiro militar. Como tantos profissionais estrangeiros de origens diversas que trabalharam durante os meados do século XIX em muitas cidades brasileiras, Przewodowski possuía uma formação classicista, o que se refletiu em seus trabalhos e contribuiu para a difusão da linguagem neoclássica no país. Estabeleceu-se em Salvador, na Bahia, aceitando o convite do Governo para executar obras de engenharia, numa época na qual as principais cidades do país procuravam criar uma maior estruturação dos serviços técnicos. Na cidade, naturalizou-se brasileiro, constituiu família e desenvolveu notável atuação profissional no campo da arquitetura, engenharia e geologia, vindo a falecer em 1879, aos 80 anos de idade.
“Polaco”, “o engenheiro estrangeiro” e “engenheiro Przewodowski” são alguns dos termos empregados pelos inúmeros governantes da província da Bahia, a partir dos anos de 1840, para identificar em seus relatórios de obras, a autoria da diversificada produção deste técnico. As referências mais significativas da sua obra concentram-se nos projetos realizados em Salvador a partir da década de 1840; entretanto, a maior parte da produção que lhe é atribuída, até o momento, esteve voltada aos serviços de infraestrutura da província.
Em 1841, o Presidente da Província da Bahia, Paulo Azevedo e Britto, relata tê-lo incumbido de avaliar a viabilidade de uma estrada para carros movidos a vapor para a Vila de São Francisco. No ano seguinte, encontramos informações de que explorava o Rio Grande de Belmonte, levantava planta e fazia seu orçamento com o intuito de ligá-lo até a Cachoeira do Salto Grande, para que a província retomasse o comércio com Minas Gerais, comprometido após a Revolta de 1837.
No Governo de Soares d’Andrea, período de intensas obras de modernização da cidade de Salvador, o corpo técnico da província recebeu inúmeras atribuições, e o engenheiro Przewodowski ficou responsável por um dos mais importantes projetos de infraestrutura realizados em na cidade durante o século XIX: a “ladeira projectada […] para segurar a montanha desde a Sé até Agoa de Meninos”, aquela que, com ajustes posteriores ao seu traçado, ficou conhecida como Ladeira da Montanha. No mesmo período, executou uma série de trabalhos de infraestrutura na região do Recôncavo baiano: pontes, estradas, conserto da Casa de Câmara e Cadeia de Santo Amaro, e estudos sobre o Rio Paraguaçu com o intuito de executar melhoramentos para minorar os estragos das enchentes na cidade de Cachoeira. Em 1848, realizou estudos para a implantação da estrada de ferro entre Salvador e a Vila de Juazeiro. Em 1852, elaborou e supervisionou as obras da Estrada da Boa Viagem, projetando a rua, uma praça e o seu prolongamento até o mar, junto a Monte Serrat. Neste ano, junto com o engenheiro Francisco Lavigne, conduziu as obras do adro da Igreja da Conceição da Praia, não sendo possível afirmar que o projeto seja de sua autoria. Em 1857, elaborou o projeto da ponte metálica sobre o rio Paraguaçu, em Cachoeira, a ponte D. Pedro II.
O Engenheiro Andre Przewodowski também publicou alguns dos seus estudos realizados para a execução de obras na província da Bahia. Em 1842, escreveu o Plan d’une partie de Rio-Grande de Belmonte ou Jequitinhonha pour servir á sa canalisation. A Communicação entre a cidade da Bahia e a villa de Joazeiro, escrita em francês em 1848, foi traduzida e impressa posteriormente, e também publicada na Revista do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro. Pioneiro nos estudos sobre geologia na Bahia publicou na mesma revista, Duas palavras sobre os terrenos entre a cidade da Bahia e o Joazeiro. Ainda de 1848 é o trabalho Maison centrale de detention, escrita provavelmente em virtude da grande discussão em torno do projeto e obra da Casa de Correição, texto infelizmente, ainda não encontrado. Sua leitura poderia permitir o cotejamento de suas opiniões às demais propostas de edifícios prisionais executados no mesmo período no país, geralmente em linhas neoclássicas, e esclarecer os motivos que levaram à alteração do projeto, apenas citada nas falas dos presidentes de Província.
Dos projetos atribuídos a Andre Przewodowski, além daquele já citado para a Ladeira da Montanha, que ligava a Cidade Alta à Baixa, e do edifício para a nova Alfândega, construído nos novos aterros que haviam sido feitos ao mar, podem se destacar as propostas para a remodelação da zona portuária da cidade de Salvador.
Inúmeros são os projetos que, desde 1854, pretendem um redesenho do Bairro Comercial e do seu porto. A criação de uma legislação específica sobre as chamadas “terras de marinha”, atribuiu ao Estado a propriedade das terras públicas, e, concomitantemente, passou a admitir a sua exploração por empresários, nacionais ou estrangeiros, desde que associados a grupos locais.
Przewodowski foi o autor de dois destes projetos para o porto de Salvador. O primeiro deles, em 1854, foi elaborado para o próspero comerciante João Gonçalves Ferreira, que apresentou ao Governo uma proposta de ampliação do Bairro da Praia, através de aterros: um, diante do trecho compreendido entre a Alfândega e a Praça do Comércio, chegando até o Forte de São Marcelo, o outro, paralelo ao litoral da Praça do Comércio até Água de Meninos. O projeto propunha a ampliação da área de atracação e a construção de quarteirões de casas e praças à beira-mar e a realocação do edifício da Alfândega. O plano ficou conhecido como o de “João dos Cocos”, por causa da alcunha do proponente, e, apesar de ambicioso, não foi aprovado.
Em 1857, para um novo cliente, provavelmente o comerciante Joaquim Pereira Marinho, Andre Przewodowski elabora um “projeto para alargar e endireitar a Cidade Baixa da Bahia”, cuja proposta se destaca dentre as muitas apresentadas ao longo dos anos para a ampliação territorial da Cidade Baixa por propor um significativo aterro no sentido sul, entre o arsenal da Marinha e o Unhão, alinhado com a Alfândega e estruturado em quarteirões de casas, interrompidos por uma área de atracação, o porto da Jaqueira, ao longo de um cais arborizado.
O reordenamento da paisagem, a partir de um novo desenho da borda marinha, desconsiderando a forma e as construções pré-existentes, estruturando as áreas aterradas a partir de um conjunto uniforme de quarteirões dispostos em ruas largas e retilíneas, intercalados por praças, além de um claro zoneamento das atividades, evidenciam a formação classicista do autor. Revelam ainda uma série de idealizações sobre a cidade, elaboradas por este e por outros sujeitos, que de forma sistemática, construíram um saber técnico sobre a cidade, desde o século XIX.
Investigar a obra do Engenheiro Andre Przewodowski é revelar mais uma faceta dos processos de modernização urbana, além de contribuir para a revisão de uma historiografia da arquitetura que ainda desconhece muitas obras e autores.