Por Gina Marocci
Após o terremoto de 1755, a cidade baixa de Lisboa foi reconstruída com base no projeto dos profissionais da casa do Risco, sob a chefia de Manuel da Maia. A Baixa Pombalina seguiu critérios que visavam à interligação entre as áreas adjacentes, a boa circulação dos carros, das pessoas, bem como para melhorar a ventilação, os ares. Logo, a rua tornou-se um elemento de ordenamento do espaço e se constituíram vias principais e secundárias, hierarquia que ficou marcada no desenho da malha urbana e no desenho das fachadas (MAROCCI, 2011). Do mesmo modo, a preocupação com o todo da cidade, principalmente com a sua infraestrutura: escoamento de água de chuva, canalização de águas servidas e esgotos, canalizações instaladas pelo traçado da via pública (subterrâneas) formando um sistema geral de instalação de fontes e chafarizes nos bairros. Mas, será que esses critérios foram seguidos no Brasil? Alguns, sim, mas o Brasil foi um espaço de experimentação também, e a prática de adaptar os projetos de vilas e cidades a cada sítio, tão comum aos portugueses, gerou um grande número de soluções.
Em relação ao Brasil, manteve-se uma sistemática para a escolha do lugar de fundação das vilas e cidades: a escolha de um lugar saudável, conforme os preceitos difundidos em todos os tratados; para a marcação das ruas, o início do traçado pela praça principal, optando-se por ruas alinhadas e retas; a uniformidade nos aspectos exteriores das casas e o estabelecimento de uma regra de crescimento do núcleo a partir da definição do rossio. Enfim, falava-se da vila ou cidade como um núcleo habitado, com necessidades concretas para além do compromisso com a defesa do território. Estamos falando de um período específico, meados do século XVIII, em que o Marquês de Pombal, após expulsar os jesuítas do Brasil, refundou as antigas aldeias missionárias e as transformou em vilas subjugadas a administradores do Diretório dos Índios, com traçados e ordenamento dos espaços determinados em cartas, que deveriam ser seguidas pelos governantes. A ordem se impõe como elemento disciplinador de uma sociedade, como elemento portador de beleza, de civilidade.
Deve-se ter em mente que a cidade era vista como virtude no ideário iluminista do século XVIII. Esta virtude deve ser entendida como prova de uma sociedade civilizada, ficando para os monarcas o papel de civilizador dos bárbaros. Desse modo, as cidades e vilas fundadas no Novo Mundo representam o grande cadinho dessas ideias. Beatriz Bueno (2003) considera que as vilas setecentistas brasileiras, além do controle do território tinham um papel civilizador muito claro, concretizado pelos princípios norteadores de sua forma e pelo desenho final, fruto de análise minuciosa do sítio.
Apesar de existir um conjunto de princípios urbanísticos nos principais tratados portugueses, no Brasil, a presença ou a ausência de profissionais gabaritados como os engenheiros militares influenciou no resultado final dos núcleos, no que tange à adoção de princípios mais eruditos, ou seja, mais fiéis às dimensões e características estéticas, ou vernaculares. Paulo F. Santos (1968) analisa o termo de demarcação da Vila de Montemór-o-Novo na América (atual cidade de Baturité, Ceará), organizado conforme determina Manuel de Azevedo Fortes (engenheiro militar e autor de vários tratados), e aparecem, também, as medidas para as ruas, hierarquicamente definidas como travessas e principal. As moradas de casas reguladas pelo mesmo alinhamento deveriam ter suas fachadas uniformes, porém os seus lotes variavam.
Maria Helena Flexor (2004), ao estudar as vilas erguidas e reinstaladas na segunda metade do século XVIII, analisa a Vila Viçosa, Comarca de Porto Seguro. A povoação primitiva foi criada em 1720 e sua medição e demarcação foi definida, em 1768, pelo Ouvidor José Xavier Machado Monteiro, segundo os modelos ditados pelo Diretório dos Índios. Sua planta foi riscada pelo próprio Ouvidor, com ruas direitas e travessas mais estreitas. Duas praças, uma maior, onde se instalou a Igreja de Nossa Senhora da Conceição e a outra, menor e quadrada, onde foi construída a Casa de Câmara e Cadeia. Quanto aos lotes, poderiam ter testadas diferentes e profundidade entre 70 e 80 palmos.
No norte, Macapá, segundo Renata Araújo (1998) o primeiro investimento urbano da administração de Mendonça Furtado (primo de Pombal), foi elevada à categoria de vila em 1758 e sua fundação coincide com a chegada do Sargento-mor Tomás Rodrigues da Costa engenheiro militar responsável pelo comando da vila e das obras. Em carta ao bispo do Pará, datada de 8 de fevereiro de 1758, Mendonça Furtado recomendava ao sargento-mor: cuidado com o projeto da igreja paroquial; que as novas casas tivessem a mesma feição; que as ruas seguissem a mesma feição sem alteração do traçado. As plantas desenhadas por Tomás Rodrigues da Costa datam do período de 1759 a 1760 e se referem às casas novas construídas na Vila de São José de Macapá, e à Igreja de São José de Macapá.
Outras vilas erguidas no Mato Grosso, como a Vila de São José das Marabitenas do Rio Negro (1767), projeto do engenheiro militar Filipe Sturm, foi desenhada com a praça medindo 280 palmos de largura, as ruas, ortogonais entre si, com 35 palmos de largura, e os lotes com 70 palmos de largura por 140 palmos de comprimento. Com o intuito de obter subsídios para análise foram elaborados os dois quadros seguintes com as informações recolhidas dos tratadistas portugueses para que sejam verificados os possíveis parâmetros que nortearam ações urbanísticas no Brasil e em Portugal.
Levantamento das dimensões para praças e vias conforme vários autores (medidas em palmos)
Logradouro | S.P. | M.M. | BR.1 | BR.2 | BR.3 |
Praça central (largura) | 120 200 250 | – | 450 | 300 | 280 |
Praças menores (largura) | 80 100 | – | – | 200 | – |
Ruas principais (largura) | 30 35 | 60 (40 para carruagens) | 85 | 280 370 | 35 |
Ruas secundárias (largura) | 25 30 | 40 (20 para carruagens) | 40 | 300 | 35 |
M.M. = Manuel da Maia (Dissertações/Plano de 12 de junho de 1758)
BR.1 = Vila de Montemór-o-Novo BR.2 = Vila Viçosa BR.3 = S. José das Marabitenas
1 palmo português = 0,22m 1 braça = 10 palmos
Em relação aos exemplos analisados observa-se que, tomando como base as indicações de Serrão Pimentel, as dimensões aplicadas no Brasil superam aquelas aplicadas em Portugal, ou sugeridas pelos tratadistas. Quando a análise se volta às dimensões para as ruas verifica-se que não há uma diferença significativa nas dimensões sugeridas e aplicadas, ficando próximas, inclusive, das recomendações de Serrão Pimentel. Observa-se, entretanto, que apenas na Vila de S. José das Marabitenas não houve diferenciação entre ruas principais e secundárias, pelo menos na largura (MAROCCI, 2011). A opção pelo traçado regular se reforça ao longo do século XVIII, permitindo, porém, as mais diversas soluções de relação entre praças maiores e menores (quadradas ou retangulares), de ruas principais e transversais (com a implantação ou não de passeios). Desse modo, ressalta-se a grande riqueza de resultados de três princípios norteadores, ou sejam, a regularidade máxima possível, a hierarquia das vias e a uniformidade das fachadas, que poderiam inicialmente ser elementos limitadores, mas que, percebe-se, proporcionaram a possibilidade da flexibilidade de várias soluções.
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, R. M. de. As cidades da Amazônia no século XVIII: Belém, Macapá e Mazagão. Porto: Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, 1998.
FLEXOR, M. H. O. A rede urbana setecentista. A afirmação da vila regular. In: TEIXEIRA, M. C. (Org.). A Construção da Cidade Brasileira. Lisboa: Livros Horizonte, 2004.
MAROCCI, G. V. P. O Iluminismo e a urbanística portuguesa: as transformações em Lisboa, Porto e Salvador no século XVIII. 2011. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.
SANTOS, P. F. Formação de cidades no Brasil colonial. Coimbra: V Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, 1968.