Por que a leitura profunda é uma das maiores conquistas da humanidade — e o que está em risco na era digital
Enquanto você lê esta matéria, seu cérebro está realizando um feito extraordinário: ativar, de forma coordenada, diversas áreas responsáveis por visão, linguagem, memória, emoção e raciocínio. Ler é uma das atividades mais sofisticadas da mente humana — mas também uma das mais ameaçadas pelo ritmo acelerado e fragmentado da vida digital.
A cientista cognitiva Maryanne Wolf, professora da Universidade da Califórnia em Los Angeles e autora do livro O Cérebro Leitor (Editora Contexto), tem uma mensagem clara: a leitura não é uma habilidade inata, mas uma invenção cultural que moldou o cérebro humano ao longo de milênios — e que pode ser perdida.
“Pensamos na linguagem como algo natural, e assumimos que a leitura também seja. Mas ela não é. A leitura é um circuito que o cérebro humano precisou construir”, explica Wolf à BBC News Brasil. “E quanto mais lemos, mais esse sistema se desenvolve, se aprofunda, e nos transforma.”
A seguir, entenda como a leitura alterou o cérebro humano — e o que está em jogo hoje.
A invenção que moldou a mente
A escrita surgiu há cerca de 6 mil anos, com povos como os sumérios, no atual território do Iraque, e os egípcios. A partir de símbolos gravados em argila ou pedra, o ser humano passou a representar sons, ideias e sentimentos de forma visual. Isso exigiu uma verdadeira reconfiguração do cérebro: reciclar circuitos usados para reconhecer objetos e aplicá-los na decodificação simbólica da linguagem escrita.
Pesquisas mostram que, ao olhar para palavras com sentido, o cérebro ativa áreas mais extensas e específicas do que quando encara símbolos aleatórios. Um simples termo como “bug” (inseto, em inglês) pode acionar diversas associações mentais: o inseto, uma falha de software, um carro modelo Fusca. Esse tipo de associação demonstra o poder semântico e emocional da linguagem escrita.
Idiomas que esculpem o cérebro
Ler e escrever em diferentes idiomas também molda o cérebro de formas distintas. No caso do chinês, por exemplo — um sistema logográfico em que cada caractere representa um conceito —, o aprendizado ativa regiões cerebrais ligadas à memória e à associação visual, mais do que as ativadas por idiomas alfabéticos como o português ou o inglês.
Estudos de neurociência e casos clínicos, como o de um homem bilíngue que perdeu a capacidade de ler chinês após um derrame, mas manteve intacta a leitura do inglês, reforçam a ideia de que o cérebro adapta seus circuitos conforme a demanda linguística de cada idioma.
A leitura começa antes das letras
Mesmo antes da alfabetização formal, ouvir histórias ou folhear livros com imagens já impacta o cérebro infantil. Segundo Wolf, essa exposição precoce estimula a empatia, a imaginação e a construção de repertório emocional e linguístico.
Por outro lado, a ausência desses estímulos na infância pode afetar profundamente o desenvolvimento cognitivo. Um estudo clássico de 1995 apontou que crianças de lares menos favorecidos ouviram, até os três anos, 30 milhões de palavras a menos do que aquelas de famílias com acesso à leitura. Embora parte desses dados seja contestada atualmente, o alerta permanece: sem leitura, o ponto de partida já é desigual.
O risco da leitura superficial
Em um mundo dominado pelas telas, a leitura profunda está em declínio. Segundo Wolf, “passar os olhos” rapidamente por textos online, entre notificações e distrações constantes, prejudica a capacidade de concentração, interpretação e reflexão crítica.
“Quando você só escaneia um texto, absorve uma amostra muito limitada do conteúdo. E perde também a beleza da linguagem, a intenção do autor, a profundidade das ideias”, alerta a cientista.
A falta de leitura de lazer e a exposição precoce a dispositivos digitais também preocupam. Estudos mostram que crianças que usam celulares desde cedo têm maior risco de apresentar dificuldades de atenção e rendimento escolar inferior.
Leitura e saúde mental: uma relação vital
Ler não apenas estimula o cérebro, mas também protege a saúde mental. Veja os principais benefícios da prática:
- Fortalece conexões neurais: leitura ativa múltiplas áreas do cérebro ao mesmo tempo, fortalecendo sinapses e promovendo plasticidade cerebral.
- Aumenta o vocabulário e a comunicação: ler amplia o repertório linguístico e melhora a expressão oral e escrita.
- Melhora memória e concentração: acompanhar narrativas ou argumentações complexas treina a atenção e a retenção de informações.
- Desenvolve pensamento crítico: interpretação de textos estimula o raciocínio, a análise e o questionamento.
- Reduz o estresse: poucos minutos de leitura prazerosa são suficientes para diminuir a ansiedade e induzir o relaxamento.
- Previne o declínio cognitivo: leitura constante está associada à preservação das funções cognitivas na velhice.
Dislexia: um desafio que pede acolhimento
A leitura, no entanto, não é um processo fácil para todos. A dislexia, que afeta até 10% da população mundial, é uma condição que dificulta a decodificação de palavras e a distinção entre sons e letras.
Maryanne Wolf, que tem um filho disléxico, lembra que muitas crianças com dislexia são erroneamente vistas como preguiçosas ou pouco inteligentes, quando, na verdade, seus cérebros funcionam de modo diferente. “O problema está nos tempos do processo de leitura, não na inteligência da criança.”
Alguns estudos sugerem que gênios como Leonardo da Vinci e Albert Einstein possam ter tido dislexia. E, hoje, há recursos pedagógicos capazes de adaptar o ensino e despertar o prazer da leitura mesmo nesses casos.
O antídoto: cultivar o hábito
Diante da crise de leitura apontada por Wolf, a solução é clara — e possível: criar uma cultura leitora desde a infância, com pais, professores e cuidadores como modelos.
“Precisamos ajudar as crianças a entender que a leitura pode ser um santuário. Um lugar de liberdade intelectual, imaginação e pensamento próprio”, afirma.
Em tempos de hiperconexão e estímulos incessantes, abrir um livro pode parecer simples demais. Mas é, justamente, essa simplicidade que contém um dos maiores superpoderes da humanidade.
Ler é mais do que juntar letras.
É ativar o cérebro, alimentar o espírito e preservar aquilo que nos torna humanos.
Leitura recomendada:
- O Cérebro Leitor, de Maryanne Wolf (Editora Contexto)
- Proust e o Lular Reader (em inglês), de Maryanne Wolf
- Como aprendemos a ler, de Stanislas Dehaene (Companhia das Letras)















