O encontro internacional ArquiMemória 6, o maior e mais importante fórum de debate sobre a preservação do patrimônio edificado no Brasil, acontecerá entre os dias 5 e 8 de novembro em Salvador. Nos dias 05, 06 e 07, as atividades ocorrerão no Senai/Cimatec, e no dia 08, na Faculdade de Arquitetura da UFBA pela manhã e na Reitoria da UFBA pela tarde. Palestrantes internacionais farão conferências e entre eles está Amra Hadžimuhamedović (Bósnia), que fala no dia 07.11, às 9h, sobre “Patrimônio em contextos de reconstrução pós-guerra: Bósnia, Kossovo, Palestina e Iraque”. Amra Hadžimuhamedović é uma das principais especialistas em patrimônio no processo de implementação do Anexo 8 do Acordo de Paz de Dayton para a Bósnia e Herzegovina. Com vasta experiência na gestão de projetos que integram o patrimônio cultural na recuperação pós-guerra em locais como Bósnia, Kosovo, Palestina e Iraque, ela também atuou como consultora para organizações como a UNESCO, ICCROM, Banco Mundial e ICOMOS. Ela responde sobre a importância desses processos que serão discutidos no ArqueMemória.
O que significa para uma população que passou por uma guerra devastadora reconstruir seu patrimônio edificado? O que mais é recuperado nesse processo?
A destruição do patrimônio cultural impacta diretamente as pessoas, sendo um agente poderoso de desumanização que interrompe a continuidade cultural e enfraquece os laços comunitários. A conservação do patrimônio em áreas afetadas por conflitos é significativa quando ajuda a curar traumas culturais e apoia a recuperação social por meio da conservação participativa.
Restaurar o patrimônio cultural destruído em guerras é um processo vital que busca reconstruir os valores compartilhados nos locais de pertencimento para as vítimas. Essa restauração reconecta os indivíduos com suas paisagens culturais familiares e promove um sentido de comunidade e continuidade. A conservação participativa, que recupera conhecimentos, habilidades e tradições locais, ajuda a restabelecer conexões sociais rompidas pela guerra, fomentando a resiliência comunitária e a confiança mútua, essenciais para o desenvolvimento social, econômico e cultural.
Em contextos como Palestina, Iémen e entre os Rohingyas, onde os conflitos são prolongados, a recuperação do patrimônio torna-se um meio crucial de sobrevivência. Ela atribui valor à vida humana e promove um senso de comunidade. Além disso, essa luta cultiva solidariedade global ao destacar os valores universais dos locais de patrimônio, transformando cada ato de violência destrutiva em uma ameaça compartilhada à existência coletiva da humanidade.
Quais são as dificuldades mais comuns ao estabelecer planos de recuperação desse tipo?
As dificuldades incluem priorização, capacidade humana e obstáculos políticos, financeiros e administrativos. Existem também riscos de dispositivos não detonados, colapsos estruturais e sabotagem por extremistas ou desenvolvedores. Outro desafio significativo é a preservação de fragmentos de locais de patrimônio que foram demolidos, mas ainda influenciam os mapas mentais das pessoas, semelhante ao conceito de “membro fantasma”. Além disso, envolve como conservar patrimônio em áreas que foram etnicamente limpas e agora estão vazias de pessoas que antes atribuíram valor a esses locais.
Para mim, um dos maiores desafios foi adaptar o papel dos especialistas para se concentrar nas pessoas afetadas, em vez de apenas nos locais de patrimônio. Isso se complicou ao tentar comunicar essa adaptação de forma clara para comunidades locais e globais de profissionais de patrimônio e acadêmicos, que muitas vezes estão confortavelmente dentro de estruturas de políticas de conservação que não abordam as necessidades específicas de regiões afetadas por conflitos.
Reconhecendo a importância de novas tecnologias, acredito que a preservação do patrimônio deve enfatizar a conexão entre pessoas e patrimônio. Isso envolve expor discursos de patrimônio autorizados que tendem a ser exclusivos e reforçam várias formas de poder. Um discurso inclusivo de patrimônio, como eu chamo, acolhe percepções e práticas participativas, transformando o patrimônio em uma força dinâmica que influencia ativamente os processos sociais e ambientais.
O que a humanidade perde com a destruição desses locais de patrimônio?
A cultura, manifestada em locais de patrimônio, práticas e expressões, é fluida e sem fronteiras, espalhando-se apesar de barreiras linguísticas, religiosas, geográficas e políticas. A definição convencional do patrimônio cultural, como estabelecido pela Convenção de Faro do Conselho da Europa, descreve-o como um conjunto de recursos herdados do passado, que as pessoas identificam como reflexo de seus valores, crenças e tradições em constante evolução.
Essa definição posiciona o patrimônio cultural como um reservatório do que as pessoas consideram impactante e significativo. O patrimônio comunica mensagens através de uma linguagem universal de valores e símbolos, moldando nossa compreensão do que significa ser humano. Quando um local de patrimônio é destruído — como os Budas de Bamiyan, o Velho Ponte em Mostar ou a Mesquita Al-Nouri em Mosul — a perda inicial gera um reconhecimento mais amplo do valor intrínseco que esses locais têm para a humanidade.
Não há melhor forma de encapsular essa ideia do que uma frase do preâmbulo da Convenção de Haia de 1954: “[…] o dano à propriedade cultural pertencente a qualquer povo significa dano ao patrimônio cultural de toda a humanidade”. Quando esses locais são perdidos, apagamos capítulos irrecuperáveis do passado e diminuímos nossa capacidade de compreensão, empatia e diálogo entre culturas.
Essa questão é particularmente relevante em meu trabalho com a Escola Internacional de Verão Juventude e Patrimônio, que lidero há 20 anos em uma região histórica da Bósnia devastada pela guerra de 1992 a 1996. Nossa plataforma educacional enfatiza técnicas de restauração participativa e práticas de conservação que atuam como agentes vitais na cura de traumas sociais. Nossos ex-alunos, mais de 1.000 profissionais emergentes de patrimônio de todos os continentes, promovem a responsabilidade universal de proteger locais de patrimônio ameaçados.
Em última análise, quando perdemos um local de patrimônio, perdemos parte do que nos torna humanos: nossas histórias compartilhadas, a diversidade cultural e nossa capacidade de aprender uns com os outros. As implicações dessa perda ressoam globalmente.
ArquiMemória 6 – Nesta sexta edição, o tema central é “Democracia, Diversidade e Reconstrução”. O ArquiMemória 6 é uma iniciativa conjunta do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), através do Departamento da Bahia (IAB-BA), e da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (FAUFBA), através do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPG-AU) e do Mestrado Profissional em Conservação e Restauração de Monumentos e Núcleos Históricos (MP-CECRE).
O ArquiMemória 6 é uma co-promoção do Centro Universitário SENAI CIMATEC e conta com o patrocínio do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR), Conselho de Arquitetura e Urbanismo da Bahia (CAU/BA). Caixa Econômica Federal, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC), Bahiagás e Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Emprego e Renda da Prefeitura Municipal de Salvador. Conta também com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (CAPES), da Embaixada Francesa no Brasil e da Rio Books.