Por Morgana Montalvão
O maestro Fred Dantas é músico, compositor, etnomusicólogo (estudioso da música de diversos grupos étnicos e comunidades culturais), escritor e uma das maiores referências quando o assunto é filarmônicas baianas, organizações musicais que são expressões seculares e legítimas da nossa cultura e que cumprem um importante papel social e cultural na formação de cidadãos. Trombonista, Dantas é idealizador do Festival de Música Instrumental da Bahia e mantém há 26 anos o Encontro de Filarmônicas no 2 de Julho, em Salvador. Nesta entrevista concedida ao site Doris Pinheiro, o maestro fala sobre a importância das bandas filarmônicas, sua história e sobre a polêmica na disputa pelo comando da Orquestra Sinfônica da Bahia (Osba). E nós fazemos a ele a pergunta: no meio dessa briga toda, como ficam as filarmônicas baianas?
SDP: Quantas filarmônicas há na Bahia?
MFD: Há cerca de 240 bandas ativas. Uma curiosidade, é que a filarmônica mais antiga do estado, sem nunca ter interrompido as suas atividades, é a Lira Siciliana de Cachoeira, com 165 anos de fundação. Temos mais de 50 filarmônicas na Bahia com mais de 100 anos de surgimento, acrescenta-se a isso, mais umas 25 que estão perto de completar o centenário de existência. A filarmónica mais antiga do país é a Banda Curica, em Pernambuco, surgida em setembro de 1848, com 174 anos.
SDP: Como as bandas filarmônicas no estado se mantêm?
MFD: As sociedades, em tese, são mantidas por um corpo de sócios contribuintes. A sociedade civil se une em torno da sociedade musical sem fins lucrativos e cada sócio contribui mensalmente. Esse dinheiro vai manter as necessidades básicas de uma banda filarmônica, que é a manutenção do prédio. Algumas bandas alugam a própria sede para auxiliar na manutenção da filarmônica, para o pagamento da água, energia elétrica, limpeza, a merenda dos meninos, a remuneração do mestre de banda e a gratificação de professores. O mestre sozinho não dá conta da formação e do fardamento. Bom, quem administra a banda pode fazer um balancete de tudo que se gasta. No Recôncavo Baiano há tantas bandas com imóveis bem estruturados. Por que? Lá é o triunfo da lavoura de cana de açúcar, o ciclo do fumo, da agricultura, da confecção e exportação de charutos. Então, tudo isso fez com que Cachoeira, Santo Amaro, Maragojipe tivessem uma coisa a mais. Mas há bandas que vivem na penúria sim.
SDP: Crê que os programas de apoios e incentivos governamentais para as filarmônicas são suficientes para valorizar essa tradição musical?
MFD: Havia a Casa das Filarmônicas, criada em 1999, era uma ONG que representava tanto o estado quanto as próprias filarmônicas. A instituição era mantida por um convênio assinado com a Secretaria da Cultura e Turismo, que fazia os repasses e delegava a organização a função de formular e executar a política cultural para as filarmônicas baianas. Infelizmente ela foi fechada em 2006.
Em se tratando de verba governamental, tudo mudou quando surgiu o Neojiba (Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia). O Governo da Bahia deslocou esse programa do âmbito da cultura e o hospedou na Secretaria de Justiça e Direitos Humanos. Com essa mudança, a Neojiba é beneficiada enormemente para a realização de suas atividades, enquanto o que resta de verba da cultura para as filarmônicas do estado é muito pouco. Durante a pandemia, houve um ou dois cursos de capacitação para elaboração de projetos, para ver se as filarmônicas conseguiam competir, isso tudo graças à Lei Aldir Blanc e a pressão das Filarmônicas Unidas na Bahia junto à Secult.
Pelo interior, quem teve apoio da prefeitura para se manter, como acontece em alguns municípios da Bahia, se apegou. Quem teve uma indústria, como em Jacobina, que tem empresas ligadas ao ouro e tal, que pudesse captar recursos, conseguiu dinheiro. Nas cidades de Belmonte e em Senhor do Bonfim, foram organizados sorteios, rifas e eventos solidários para comprar instrumentos musicais e pagar as contas. Assim, são maneiras muito dignas para quitar as despesas. Agora, do ponto de vista cultural, é uma vergonha, porque as bandas não conseguiram se instaurar sob o guarda-chuva das culturas identitárias, como acontece com os blocos afros, que resgatam a sua cultura, identidade e combate ao racismo. Já as filarmônicas não são reconhecidas como cultura de ponta, de que ela faz educação musical, preparando as pessoas para a vida, prepara músicos que podem ter emprego e renda através da música. Infelizmente isso não é reconhecido pelo sistema oficial. Uma coisa bacana que podia ter, era os mestres de banda serem incluídos como educadores musicais nas escolas, isso não aconteceu, porque eles poderiam ser incluídos como educadores com notório saber. A pessoa pode não ter o diploma de professor de música, mas ele sabe fazer o que ele faz, ensinar música.
As filarmônicas não são reconhecidas como cultura folclórica, como cultura popular, isso também precisa mudar. Há três anos, a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos, alarmada com os altos índices de jovens mortos por arma de fogo no Recôncavo da Bahia, resolveu gerir o programa Neojiba. Foi feita uma pesquisa e chegou-se à conclusão que é a região com o maior número de bandas filarmônicas por população, estão nas cidades do Recôncavo Baiano. Descobriu-se também que nenhum desses alunos de banda de música esteve nas estatísticas de violência. Nenhum dos adolescentes vitimados por arma de fogo tiveram algum tipo de passagem pelas bandas filarmônicas. Ou seja, àqueles que entram para as filarmônicas, estão distantes de entrar para o crime que vem crescendo nessas cidades. Então, além de ensinar música, nós também atuamos na assistência social e merecíamos um pedacinho da verba da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos pela inclusão do jovem adolescente e criança através do ensino musical. E isso não acontece.
SDP: Como vê o cancelamento do último edital da Orquestra Sinfônica da Bahia (Osba) pela Secult, a qual decidiu pela desclassificação das duas únicas organizações (Associação Amigos do Teatro Castro Alves e Instituto de Desenvolvimento Social pela Música) que participaram do processo seletivo?
MFD: Essa é uma briga de branco (sic), isso na minha opinião. Porque as filarmônicas institucionalmente, através da entidade Associação Filarmônicas Unidas na Bahia (Fub), que atualmente expressa o pensamento das bandas de música, se manteve à parte. O Governo do Estado da Bahia não tem nenhum olhar para elas. O que se tem da Osba em relação às filarmônicas foram algumas visitas de bandas convidadas para assistir concertos e também algumas expedições de quintetos, sextetos e até séries de filarmônicas. Muito mais grave, assim, foi a chegada do programa Neojiba, porque além do desequilíbrio de verbas destinadas a um e a outro – foi isso que motivou o nascimento das Filarmônicas Unidas na Bahia como associação – ainda colocou um dos seus braços o sentido de reeducar as filarmônicas. E isso não foi bom. Bem, e eu, maestro Fred Dantas, onde entro nessa história? Comecei a desenvolver o estudo ancestral em 1982, com as Filarmônicas da Bahia, com a Fundação da Oficina de Frevos e Dobrados. Quando mudou a gestão de Paulo Souto (DEM) para Jacques Wagner (PT), o governo petista decidiu acabar com a Casa das Filarmônicas e colocou no lugar coisa nenhuma. Nos 500 anos da Independência do Brasil eu estive em Porto Seguro com a Oficina de Frevos e Dobrados para tocar. Vi a situação ruim em que se encontravam e resolvi escrever um manifesto. Com esse documento, Wagner conseguiu injetar uma verba extra que foi entre R$ 25 e 30 mil reais para cada banda filarmônica, que atendeu emergencialmente. Quando se perguntava, por exemplo, ao ex-governador Rui Costa (PT), o que ele poderia fazer pelas filarmônicas, prontamente respondia: “procure o Neojiba”. De fato, o núcleo publicou algumas matérias em que todas as filarmônicas da Bahia que precisassem de algum tipo de auxílio ou de assistência material ou cultural, viessem até o Neojiba. Vejo esse núcleo estadual de orquestras como algo piramidal. É um programa de inspiração europeia, embora tenha vindo dos programas das orquestras populares da Venezuela, musicalmente é uma pregação da música europeia. Por que eu digo que é piramidal? Porque o esquema implica algo que é de cima para baixo, como algo imposto e autoritário e isso não é bom. Então a conquista do espaço da Neojiba por esta política governamental não teve nenhuma manifestação expressa, claramente nas bandas filarmônicas baianas. Elas sobrevivem dos seus próprios meios, banidas de todo qualquer planejamento oficial, adquirindo mecanismos próprios, ressuscitando alianças locais para conseguir continuar prestando seu serviço. É algo que o governo deve repensar para não deixar as filarmônicas baianas morrer, urgente.
BOX 1 -Maestro já tocou com Hermeto Pascoal e é conhecido internacionalmente por divulgar o Choro Brasileiro
Frederico Meireles Dantas nasceu em Salvador, no ano de 1959. É Doutor em Música pela Universidade Federal da Bahia (Ufba). É mestre em Música, Etnomusicologia e graduado em trombone e Composição e Regência pela mesma universidade.
Fred Dantas se iniciou em música em 1971, na Banda 21 de Abril, na cidade de Urandi, distante 489 km de Salvador. Ele já participou da Noite do Samba e colocou seu instrumento de sopro a serviço de toda uma geração de sambistas tradicionais da Bahia como Riachão, Batatinha, Nélson Babalaô, Myriam Theresa e Claudete Macedo. Dantas integrou a banda do saxofonista e maestro carioca Paulo Moura, com o qual esteve em temporada na França e posteriormente em gafieiras no Rio de Janeiro e, já tocou com Hermeto Paschoal, Altamiro Carrilho, Raul de Souza e Beth Carvalho.
O maestro é internacionalmente conhecido pelos seus trabalhos Choros from Brazil, com o grupo Os Ingênuos e, Choros from Bahia e Interethnical Landscape, gravado com seus filhos. O maestro também já gravou uma coletânea importante sobre o choro brasileiro nos CDs Clássicos e Gafieira e O Baú de Perfilino. Comanda desde 1982, a Oficina de Frevos e Dobrados, um grupo de pesquisa e execução da música das sociedades filarmônicas e enaltecedora dos seus mestres e compositores. Em 30 anos de atividade a oficina foi responsável por uma revolução renovadora em sua área, incluindo o ensino da música, a edição de publicações e gravação de áudios. Atualmente o maestro Fred Dantas está à frente da Orquestra Brasileira de São Salvador, um grupo jovem para o qual vem criando arranjos para música tradicional brasileira de concerto e gerando um repertório de vanguarda.