Por Gerson Brasil
Momento raro nesses tempos de extravio, quando não há nada a quem solicitar, nem mesmo, ‘agradeço a ter recebido’; parada estava, parada permaneceu, os carros passavam, muita gente transitava, descia o passeio, subia novamente a calçada, acordava em não mexer nos bolsos à procura do dinheiro que já trocara de destino, lamentar seria inútil, infligir insultos, ou procurar uma compensação só aumentaria a angústia. O frio chegava nas mãos de Hortência com a incumbência de a certificar da necessidade de seguir em frente, procurar alcançar algumas palavras, quem sabe uma frase, algo que retirasse do caminho o tempo que estava parada.
Quando os carros param há a certeza de novamente encontrá-los em movimento, mesmo que a distância a percorrer seja curta, bem conhecida, são duas quadras, o asfalto carece de afeto, ontem o rebobinaram, ficou espantado, mas permaneceu caltivo de si, autoconsciente, tinha despistados buracos, lombadas, irregularidades na eminência de causar um acidente, se alguém não segura o volante do carro com as duas mãos e a pista o inclina para um dos lados da rua, ocasionando batida no carro em velocidade trafegando no sentido oposto ou as rodas indo de encontro ao meio fio e o capotamento habitando a notícia que não para de reger a curiosidade do leitor hipócrita, na suspeição de poder dar uma ideia mais viva, melhor estabelecida, de melhor veracidade ao acontecimento.
Hortência continuava parada, o assassino também estava parado, afinava cálculos, media a distância, por onde fugir, antes traçara a estratégia, estava convencido que faria uma boa colheita, afinal tratava-se de um bairro elegante, rapazes, homens, mulheres e chicas sustentavam a reputação da Via Tornabuoni, na extensão da Ponte Santa Trinità até a Piazza Antinori, na razão do luxo e a tradição do desperdício dos domicílios devidamente numerados, para evitar o esquecimento e consequentemente não receber o ato purgatório, libertador de todas as infâmias até então produzidas e aquelas não existentes, mas na certeza que um dia vão se fazer presente, porque assim é e sempre será.
Hortência não conhecia o assassino ou aquele que se tornaria, afinal, num assalto, os acontecimentos estão fora de lugar, não se pode emprestar uma aparência, um objeto, nomeando-o na singularidade para poder aprisioná-lo ou traduzir com uma palavra, mesmo fora do dicionário. Depois do ônibus, atrás vinha uma Mercedes, Hortência acendeu um cigarro, mexeu o corpo, mas continuava fixo na calçada, olhou em direção ao assassino de casaco e gola alta, estaria de volta de um teste nos estúdios da Pietá?
“Não passou e agora a decepção era enorme, por isso se plantara na esquina, enquanto os carros passavam e as luzes se exibiam sem precisar de palco ou expectadores, membros da irmandade ou samaritanos d’occasion”. A fatalidade exercera seu justo direito de iluminar a rua, as fachadas das casas, dos palácios e emprestava uma nitidez mais do que o esperado nos rostos, fazendo de Hortência uma mulher bela, de casaco azul, boina sépia e sem destino que a pudesse ameaçar.
“Coitado, a vida lhe dera uma facada, acontece e acontece com qualquer um, ninguém escolhe ser assassino; e não será porque pouco gim vai bem com o Martini e a pera emprestará uma volta a mais e a distração se perdeu na moça rindo, naquele exato momento. Não se aprende, não se conta, a matemática se torna um estorvo, e nem haveria de se fazer como as costureiras finalizando as bainhas das calças”. Estava acordado que a desgraça não haveria de atravessar o caminho de Hortência, mesmo porque o demônio não ri, não há tempo, as confabulações são mais importantes, e os perseguidores são insistentes e implacáveis, como os piratas, e na infelicidade, hoje o demônio não tem ações em Wall Street.
“Os assaltantes, por um acaso, depois convertidos em assassinos, saem de casa nu, com faca ou revólver? Como os operários, igualmente as prostitutas, eunucos, Césares, acordam, às vezes aborrecidos, há de comer, tomar banho, vestir a camisa, a calça, o sapato, ou o tênis, escolher o lugar do assalto, há concorrência na área? Até a noite se apresentar ocorre uma grande ansiedade, se for preso, se morrer o que acontecerá com a família, com a namorada? Será que vão resistir à decepção? Poderá ouvir Noche de Ronda na cadeia, na voz de Agostin Lara”?
Hortência exibiu o cigarro entre os dedos forrados de luva e pequenos círculos de fumaça, olhou para os sapatos, estavam comportados, não lhe doíam os calos. Imaginou que há coisas piores, dor de dente, a inveja provocada pelos brincos da vizinha, cometer suicídio, ir ao encontro do namorado, que se tornou insuportável; “se parece com um assassino, não é caricatural, como nos filmes e nos HQ, mas dói terrivelmente, como vou me perdoar por essa imensa burrice? Ainda bem que posso recorrer à consciência, reconhecer o erro e me perdoar, mas se isso não der certo? Sobrará angústia? Gostaria de saber se o IA tomasse o meu lugar e também naufragasse, não desse certo, alguém seria responsabilizado? Haveria um exame de consciência? Ficaria tão aflita quanto eu? Melhor mexer com o diabo, está em descrédito e precisa monetizar o conhecimento, outros lhe roubaram a ousadia, vendem água a destronar Perrier, a do batismo, a que chega no chuveiro, aquelas odiosas, das chuvas, quando não solicitadas, dá um soco até no absinto”.
Em quanto o pulmão educava a fumaça, descascando os grossos rolos, abrasivos, tornando-os aquarelas sapientes, Hortência moveu a cabeça para a direita, piscou, e se debruçou na dúvida de “quantos assassinatos e quantos amores não foram cometidos nos últimos cinco anos? Uma estatística reversa seria um instrumento importante para guia e avaliação da vida, a história também ocorre quando não há acontecimentos catalogados? Não assassinou a tia porque a vergonha o impediu, não passou no exame de medicina, se passasse hoje não seria jogador de poker a acumular uma fortuna incontida em dólar; deixou a namorada esperando e se divertiu com a amante, depois casou e heppy end; não disse aos pais que perdera o ano na escola e a família se divertiu no final de semana, uma ternura ensurdecedora”.
Hortência pensou em ensaiar um aceno para o assassino, se convenceu que um dia inglório traz sérias consequências, até digestiva. “Ser samaritano é uma boa ação e as estatísticas estão aí para relatar os casos de bom comportamento a inspirar a semelhança de deus. Mas também traz riscos, André, Claudia e Maria, juntos, me devem 1.500 dólares e a última conversa ocorreu há três anos.
Sou casada, o marido me trai com o batom errado da vagabunda, me inclino ao namoro, gostaria de matá-los, mas vou deslocar-me para a galeria, um café, um licor, mais um cigarro, espero que o assassino me agradeça por tê-lo cancelado. Sei que está frustrado, mas durma bem, querido, você faz parte da história, graças a minha contribuição. Don’t cry, não chore; não consegue encontrar o caminho de casa”?
Anita Malfatti – A Estudante, 1915-16, MASP