Por Vitor Rocha
Gonçalo Júnior: “quem fala que quadrinhos não é uma arte é um estupido, é um ignorante,
tende a ser racista, tende a ser homofóbico, tende a ser um idiota completo”
Os quadrinhos surgiram no final do século XIX como uma prática essencialmente humorística e infantilizada. Com o tempo, essa linguagem foi amadurecendo a ponto de gerar diversas discussões. Quadrinhos é arte? Quadrinhos é literatura? O escritor e pesquisador de histórias em quadrinhos, Gonçalo Silva Júnior, não tem dúvida e acha que a resistência vem do preconceito. Autor de cerca de 40 livros, o escritor baiano ganhou 4 prêmios HQ mix, o maior da área de quadrinhos no Brasil, entre eles, o de melhor livro teórico sobre quadrinhos no ano de 2005, com a obra “A Guerra dos Gibis – a formação do mercado editorial brasileiro e a censura aos quadrinhos, 1933-1964”. Em 2017, Gonçalo Júnior foi um dos fundadores da editora Noir, onde se dedica a publicar biografias de quadrinhos. Nesta entrevista, ele analisa o mercado editorial de quadrinhos no Brasil e destaca a importância dos quadrinhos para a leitura, discutindo a subvalorização e a percepção dos quadrinhos como forma de arte.
Como anda o mercado editorial de quadrinhos atualmente?
O mercado de quadrinhos aparentemente está aquecido, mas você tem alguns poréns complicados. Um exemplo é o desaparecimento das bancas de jornais. Em São Paulo, nos últimos doze anos, desapareceram dois terços das bancas e muitas delas hoje só vendem material de celular, balas, doces, refrigerantes, água e jornal para cachorro fazer cocô em cima. Um outro problema do mercado é que, como ele migrou para as livrarias, têm-se feito muitas obras de altíssimo valor final, edições de capa dura que estabelecem um limite de consumo. Então, eu acredito que adolescentes jovens até estudantes universitários têm grandes dificuldades de adquirir esses álbuns luxuosíssimos que chegam a custar R$ 400, R$ 500, R$ 600 até R$ 1400, e a maioria custa mais de R$ 200. Então, eu acredito que é uma sobrecarga. Nesse perfil de consumidor que não deve ser grande, acredito que não passe de cinco mil pessoas que ainda conseguem comprar essas edições luxuosas, você tem um problema caso não seja aberta uma brecha para renovação. Essas pessoas vão morrer, elas vão se cansar, parar de comprar, vão assumir compromissos, se casar, ter filhos, ter que pagar escola, então é preciso uma renovação. Hoje a gente tem Maurício de Souza para as crianças e mangás para adolescentes, mas eu não acredito que o público de mangá vá migrar para quadrinhos adultos ou de super-heróis, acredito que eles tendem a ler só aquilo mesmo. É isso, acho que o mercado está bem complicado quanto ao futuro, digamos assim. No momento Ok, vende-se muitos álbuns e tal, mas o papel aumentou muito também. Esse preço descontrolado vai minando o mercado, tem álbuns que custam quase um salário mínimo, a caixa de Conan [Quadrinho criado por Robert E. Howard] que a Panini lançou ano passado estava custando R$ 1500. Então é muita coisa para poucas pessoas que ainda têm dinheiro comprarem tudo.
Como renovar e rejuvenescer esse público restrito?
Essa é uma questão bem complicada porque o ponto de vendas – que eram as bancas de jornais – desapareceram. Então é preciso que se faça revistas mais simples, com menos páginas e mais acessível para crianças e estudantes que compram quadrinhos com mesadas. O perigo está nas editoras continuarem fazendo apenas edições muito caras, faça a edição cara mas fragmente ela e venda com preço mais em conta. Acredito que esse é o caminho. Você faz uma edição de 500 reais com 40 revistas, fragmenta em dez partes e venda cada volume por 30 reais, de modo que se forme leitores até que essa faixa de público tenha um poder aquisitivo maior para comprar essas edições caras.
Você vê os quadrinhos como uma importante porta de entrada para a leitura? De que forma os quadrinhos têm contribuído para a formação de novos leitores?
Sim, sem dúvida os quadrinhos são uma porta de entrada para a leitura. Isso acontece há pelo menos cem anos, mas a gente está vivendo aquele momento de encruzilhada, com muita coisa de fácil acesso e coisas que não precisam de leitura como vídeos, games, fofocas, brincadeiras. Por isso eu chamo essa geração de tecno-bárbaros. São pessoas que dominam tecnologias completamente sofisticadas, mas têm dificuldade em articular uma frase por escrito, não conseguem estabelecer um raciocínio, entender questões, não sabem somar, subtrair, muito menos multiplicar ou dividir. Acho que os pais são fundamentais nesse processo, nessa crise da educação que a gente está vivendo hoje. Por causa da evolução digital tem um bando de burros por aí que não sabem falar o português direito, imagina escrever! Então se os pais, que certamente leram quadrinhos, apresentar para eles, desde cedo incentivar a leitura, levar para a livraria, ouvir histórias, eu acho que ainda resta esperança, mesmo que use formatos digitais para ler. É importante que os pais façam sua parte porque há um certo descontrole nesse aspecto e os pais são os culpados porque largam os filhos, acham que está tudo bem o filho estar com celular, computador quando não está, ali a coisa só piora, desestimula e os riscos são imensos.
Ainda existe o debate se quadrinhos são ou não literatura? Qual a sua opinião?
Existe sim, desde os anos 20, quando artistas tentaram adaptar obras literárias para os quadrinhos um discurso se estabeleceu nessa área, mas era um debate muito mais sobre linguagens, os artistas não conseguiam levar literatura para os quadrinhos, eles praticamente ilustravam fragmentos de textos. Na verdade os quadrinhos tem várias fases, em 1895 quando surgem os primeiros personagens da indústria norte-americana, que muita gente considera o marco inicial, até o começo da década de 30, os quadrinhos eram essencialmente de humor. No finalzinho da década de 20 surgem personagens infantis como Mickey, Gato Félix, mas mesmo assim com uma pegada de humor. Nos anos 30 você tem a era dos heróis, fantasiados, de aventura, policiais, interplanetários, Flash Gordon, Tarzan, que vem da literatura para os quadrinhos, no final da década surge o Super-Homem, que é o primeiro super-herói, depois vem Batman que não é super-herói é herói. A partir dos anos 50 surgiram os quadrinhos de terror e quadrinhos para meninas, os Young Romances. Nos anos 60, Stan Lee reinventou os quadrinhos de heróis para adolescentes porque os primeiros super-heróis eram para crianças de 5 a 7 anos. Eles nasceram para isso e Stan Lee reinventa colocando conflitos existenciais nos super-heróis, principalmente no adolescente Homem-Aranha. Os quadrinhos começam a ficar maduros, começam a crescer, na Europa você tem a revolução erótica, sensual de Valentina, Barbarella, os quadrinhos começam a ser estudados nas universidades. Guido Crepax com Valentina e Jean-Claude Forest com Barbarella começam a levar uma série de elementos literários e cinematográficos para os quadrinhos que começam a dar um ar de seriedade. Nos anos 70 surgem as graphic novels, principalmente com Will Eisner, e nos anos 80 amadurecem com graphic novels altamente sofisticadas que estão no mesmo patamar da literatura ou mais, está no patamar de arte própria, quadrinhos são uma arte e as graphic novels não deixam mais dúvida quanto a isso. Essa discussão só não foi superada por mero preconceito, as pessoas continuam achando que quadrinhos são para criança, para preguiçoso, para retardado, para pessoas que não tiveram instrução. A ignorância leva ao preconceito, estupidez e quem fala que quadrinhos não é uma arte é um estúpido, é um ignorante, tende a ser racista, tende a ser homofóbico, tende a ser um idiota completo.
Então existe uma subvalorização dos quadrinhos como arte em relação à literatura?
Sim, uma subvalorização dos ignorantes que nunca leram nem leem quadrinhos, alguém que lê Asterix vai dizer que não é arte, que Tintin não é arte, Watchmen, Cavaleiro das trevas. Agora é triste na Bahia, a Bahia está mil anos atrás nesse sentido. Para você ter uma ideia, na Faculdade de Comunicação da UFBA tem uma disciplina desde a década de 70 que não foi ensinada nunca, esses caras da Facom nunca levaram a sério quadrinhos, eles dão risada, não tratam quadrinhos como arte, não tem disciplina de quadrinhos na Facom. Se os comunicólogos não levam a sério, você vai fazer o quê? Na própria Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo o quadrinho é um foco de resistência. Infelizmente, é isso, ignorância de gente burra, preconceituosa, então fica difícil você discutir com essas pessoas.
Fora o mercado, você vê alguma crescente na área de estudo sobre quadrinhos?
Sim, sem dúvidas, várias universidades, na Paraíba, por exemplo, é muito forte o estudo de quadrinhos graças ao professor Henrique Magalhães que há 40 anos batalha por isso, como eu disse na Bahia, se alguém puder indicar porque honestamente não vejo nada, no Mato Grosso tem um núcleo de estudo de quadrinhos muito atuante com o professor Nathaniel, a Universidade de Brasília que foi pioneira no estudo de quadrinhos, tanto vem crescendo que o prêmio HQ mix, que é o mais importante da área, já tem muitos anos que premia teses e dissertações, tanto doutorado como mestrado. Então, as pesquisas têm uma força dentro da acadêmia sim. Agora não vira muito livro ainda, podia virar.