Por Morgana Montalvão
Meio século de vida não são 50 dias. O ‘Mais Belo dos Belos’, o Ilê Aiyê, vai à avenida para celebrar os seus 50 anos de existência no Carnaval de 2024. Ilê Aiyê, que na expressão da língua iorubá, significa ‘nossa casa’ ou ‘nossa terra’, surgiu em 1º de novembro de 1974, no Curuzu, no bairro da Liberdade.
Para Antônio Carlos dos Santos, conhecido como o lendário ‘Vovô do Ilê, e um dos criadores da agremiação, o cinquentenário do bloco representa o resultado de uma caminhada de resistência contra o racismo. “Cinquenta anos de existência é algo muito importante, né? Considero uma vitória, pois dois jovens negros do Curuzu, na década de 70, criaram um bloco afro para o seu povo. A teimosia nos deu resistência em enfrentar e combater o racismo. Nós sempre vamos carregar essa bandeira. Nós nunca desistimos do nosso objetivo. E isso, com certeza, é gratificante”, diz.
Vovô do Ilê criou o bloco Ilê Aiyê juntamente com Apolônio e Jesus, o ‘Popó’, seu irmão. Neste ano de 2024, o bloco afro faz uma reverência aos seus fundadores com o tema: “Vovô e Popó, com as bençãos de Mãe Hilda Jitolu. A invenção do Bloco Afro. Ah se não fosse o Ilê”. A celebração dos 50 anos do Ilê é também um enaltecimento à vida de todos os blocos afro do país, e especialmente à Ialorixá Mãe Hilda Jitolu, mãe de Vovô e Popó.
A ialorixá possui uma grande importância na história do Ilê Aiyê, pois abençoou, protegeu e atuou como conselheira espiritual da instituição, deixando um legado valioso enquanto incentivadora da educação e da conscientização da comunidade negra e periférica do Curuzu.
Valorização da comunidade negra
O bloco afro Ilê Aiyê foi criado para trazer representatividade e o empoderamento para a população negra de Salvador, que não possuía nenhum referencial identitário. Mais do que um bloco afro, o Ilê orgulha-se de ser uma entidade com relevância social e cultural para o povo negro de Salvador, que atualmente, possui mais de um terço de sua população se autodeclarando preta com 825.509 mil habitantes, correspondendo a 34,4% da população, de acordo o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Ibge), realizado em 2022. Recentemente, também foi divulgado pelo Ibge que houve um aumento na parcela da população brasileira que se autodeclara de cor ou raça preta – de 14,5 milhões no Censo populacional de 2010, para 20,7 milhões em 2022 – um crescimento de 42,3%.
“ Realmente, aumentou o número de pessoas que se declaram [de cor ou raça preta]. Mas ainda tem gente que se declara parda, né? No início do Ilê Aiyê a gente combateu muito isso. A gente veio para permitir que as pessoas se declarassem pretas, até porque somos um bloco afro feito para o povo preto. A gente mantém os nossos princípios de aceitar somente negros. Não é racismo reverso, até porque isso não existe. Somos fiel ao nosso perfil identitário negro”, enfatiza.
Uma memória inesquecível
Escolher um único acontecimento marcante em um legado que faz meio século de história é complicado. No entanto, para Vovô do Ilê, o momento ‘ímpar’ é o primeiro Carnaval do Ilê Aiyê, em 1975, um ano após a sua fundação. “Bom, para mim um momento muito especial, é o nosso primeiro ano no carnaval, no ano de 1975. Nós subimos a Ladeira do Curuzu, com poucos instrumentos e com o número de aproximadamente 100 pessoas, que tiveram, como eu digo, a ‘black atitude’ e a coragem de desfilar em um bloco afro em um momento de alta repressão da ditadura militar e perseguição policial pesada, nós saímos. Enfrentamos. É algo para ficar na memória e na história da gente. Foi com esse nosso primeiro desfile, com aqueles carrões de 1975 que mostramos a potência do Ilê”, enfatiza.
Amor ao Ilê passa de pais para filhos
O Ilê Aiyê possui muitos fãs que veem no bloco uma representatividade do povo negro e um legado que vai passando de pais para filhos, como é o caso da jornalista e funcionária pública Ilana Campos, 41 anos, que já perdeu as contas de quantas vezes já saiu no carnaval com o ‘Charme da Liberdade’. Ela, que é uma admiradora do Ilê, vê na agremiação, um espaço que é uma “ode à causa negra”. “O Ilê Aiyê é o único espaço do Carnaval de Salvador que eu entendo que é para mim. Quando estou lá eu penso: estou entre os meus. Comecei a desfilar ainda criança e esse amor, que era dos meus pais, passou para mim, e eu carrego até hoje. Perdi as contas de quantas vezes já saí com a fantasia do bloco. Tenho certeza que grande parte de minha vida, estive nesse bloco pioneiro. E, se depender de mim, essa relação está longe de acabar”, diz.
Programação de Carnaval
O início dos festejos começam no dia (08), quinta-feira, abertura oficial do Carnaval de Salvador. A data também marca o início do reinado de Larissa Valéria Sá Sacramento, moradora do Curuzu e eleita a Deusa do Ébano 2024 durante a 43ª edição da Noite da Beleza Negra. Ao seu lado, também estreiam as princesas Lorena Xavier Silveira Bispo e Caroline Xavier de Almeida.
Este ano, o Ilê faz uma participação especial na abertura do carnaval, na Praça Castro Alves, às 20h, juntando-se com grandes nomes da música baiana, como Ivete Sangalo, Carlinhos Brown e BaianaSystem.
No sábado (10), é quando acontece a tradicional cerimônia de saída do bloco no Curuzu. O ritual tem à frente a Ialorixá do Terreiro Ilê Axé Jitolu, Hildelice Benta dos Santos, que também é filha de Mãe Hilda Jitolu. A celebração tem cânticos para os orixás e a percussão dos tambores. As bacias de milho, pipoca e pó de pemba são obrigatórias para pedir boas energias e um grande Carnaval a Oxalá e Obaluaê. As tradicionais pombas brancas são uma beleza à parte, também dedicadas a Oxalá.
A saída do bloco
Após o ritual da saída do bloco na Ladeira do Curuzu, o trio do Ilê Aiyê segue em festa para o Plano Inclinado da Liberdade. Neste local, os associados fazem uma pausa até se encontrarem novamente horas depois no Corredor da Vitória, onde o bloco afro inicia o seu primeiro desfile em circuito oficial, o Osmar, às 2h do domingo, em direção à Praça da Piedade.
Na segunda-feira (12), às 18h, haverá a Concentração no Corredor da Vitória, onde o desfile inicia às 19h no Circuito Osmar, no Campo Grande. Comandada pela pela Band’Aiyê, o bloco sai acompanhado de um cortejo comemorativo ao tema do cinquentenário.
No seu seu terceiro e último desfile carnavalesco, a ser realizado na terça-feira (13), o bloco tem concentração às 18h no Corredor da Vitória, e desfile previsto para iniciar às 19h no Circuito Osmar.
As fantasias do bloco Ilê Aiyê podem ser adquiridas na Senzala do Barro Preto (Curuzu). A entrega para os associados começa dia 7 de fevereiro, às 15h. O Carnaval do Ilê Aiyê 2024 conta com o apoio da Secretaria de Cultura e Turismo da Prefeitura de Salvador, e do Governo do Estado da Bahia através do Programa Ouro Negro, da Secretaria de Cultura, e Secretaria de Promoção da Igualdade Racial. Para saber mais sobre o carnaval do Ilê Aiyê e a comemoração sobre o seu cinquentenário acesse o perfil no Instagram: @blocileaiye.
Curiosidades sobre o Ilê Aiyê
– O Ilê Aiyê é o primeiro bloco afro do Brasil.
– O bloco ficou sediado por 20 anos no terreiro Ilê Axé Jitolu, localizado na ladeira do Curuzu, no bairro da Liberdade. Atualmente a sua sede é a Senzala do Barro Preto, localizada na Rua Direta do Curuzu, 228.
– O nome do bloco vem do idioma iorubá, utilizado durante séculos em diversos países do continente africano, como Nigéria, Benim, Togo e Serra Leoa.
– “Povo Negro” iria ser seu nome. No entanto, diante do forte racismo que havia na década de 70, Vovô do Ilê consultou Mãe Hilda, que desaconselhou o uso desse nome.
– Mãe Hilda Jitolu era ialorixá, isto é, sacerdotisa líder em iorubá, do terreiro Ilê Axé Jitolu, e foi a principal apoiadora de Vovô do Ilê, atuando não só como conselheira, mas também como líder espiritual do bloco.
– O Ilê desfilou pela primeira vez no ano de 1975, com aproximadamente 100 foliões.
– No ano de 1978, o artista Jota Cunha criou a identidade visual do bloco: uma máscara.
– O logo é uma máscara africana com quatro búzios abertos na testa e que formam uma cruz batizada de perfil azeviche.
-Suas cores também carregam diversos significados. O azeviche é um tipo de mineral negro que é associado ao barro preto das terras de Liberdade e, ao mesmo tempo, à pele negra.
-Os traços brancos simbolizam a paz; o amarelo faz referência à beleza e riqueza cultural e o por fim, o vermelho lembra o sangue do povo negro que foi derramado durante as lutas por libertação.
-Em 1979, surge a ‘Noite da Beleza Negra’, concurso que enfatiza e exalta a beleza da mulher negra brasileira. O evento, que costuma ser realizado cerca de 15 dias antes do Carnaval, escolhe a ‘Deusa do Ébano – a Rainha do Ilê’, que ocupa lugar de destaque durante o desfile anual do bloco afro.
-O primeiro disco foi gravado em 1984 e recebeu o nome de Canto Negro I. Nesse disco, as músicas “Que bloco é esse?”, “Mãe Preta” e “Depois que o Ilê passar” são alguns dos destaques.
– Em 1992, a cantora Daniela Mercury lançou o disco ‘O Canto da Cidade’. Uma das faixas do disco, a música “O Mais Belo dos Belos”, é resultado da união entre duas canções do Ilê Aiyê: “A Verdade do Ilê” e “O Charme da Liberdade”.