Por Reynivaldo Brito
Leonel Mattos com autorretrato que expôs na galeria do Acbeu na mostra Gaveta de Memória, em 1998.
Vamos conhecer mais um pouco a partir de agora um dos artistas mais talentosos, inquietos, criativos e produtivos que já conheci e talvez o que mais tive oportunidade de acompanhar sua trajetória artística. Seu nome é Leonel Rocha Mattos ou simplesmente Leonel Mattos que demonstra nos primeiros instantes da nossa conversa uma disposição em contar sua história sem rodeios ou restrições a ponto de querer com a espontaneidade característica de sua formação e personalidade conduzir a entrevista.
Foi graças a este seu jeito de ser que vem superando problemas e tragédias que surgiram e surgem em sua vida. Conhecedor do personagem e sendo um velho jornalista propositadamente marquei a entrevista fora do seu ambiente de trabalho e fomos conversar em minha casa para que assim pudesse entrevistá-lo com mais tranquilidade. O Leonel Mattos com seu temperamento impulsivo é também um dos artistas baianos mais presentes nas redes sociais onde sempre está postando as visitas ao seu novo ateliê no bairro da Saúde, em Salvador, suas andanças por exposições, e eventos que promoveu como o Circuitos de Arte e Moda no Shopping Salvador com várias edições e o Circuito Cultural Carmo e Santo Antônio, em 2014, suas idas às praias, restaurantes e outros eventos que comparece. Às vezes alguns acham exagerada esta exposição, mas tudo isto é fruto de um impulso quase incontrolável desta criatura que está sempre disposto a ajudar os colegas, a imaginar formas de enaltecer o trabalho de alguém ou mesmo acolher como fez com o Jayme Fygura que pintou por um bom tempo em seus ateliês nos bairros do Carmo, Amaralina e depois na Saúde, usando suas tintas e pincéis, e ainda conseguiu a venda de um lote de obras para um galerista em São Paulo que o possibilitou a comprar e mobiliar uma casa no bairro de Castelo Branco, em Salvador. Infelizmente o Jayme veio a falecer de um enfarte quase fulminante. Quando Leonel Mattos me ligou para falar desta triste ocorrência passei a me preocupar com ele, porque estava inconsolável e corria até mesmo risco de enfartar. É sempre fácil, e ao mesmo tempo ruim julgar e criticar as pessoas por seus atos externos e aparentes. É preciso conhecer melhor a pessoas e verá sempre coisas muito positivas que estão por trás de cada indivíduo, de cada artista.
Leonel Mattos é um artista que vem evoluindo e melhorando a cada dia sua pintura, tem uma produção contínua e de qualidade, com personalidade pictórica conhecida aqui e em outros estados. Já ganhou vários prêmios e fez várias exposições individuais e coletivas, participou de salões na Bahia e no sul do país. Fez muitas intervenções em Salvador e até mesmo em Feira de Santana sozinho e com outros colegas. Está sempre atento ao que ocorre não só no Brasil como no exterior. Sua mãe cunhou a frase que resume o seu jeito de ser: “o Leonel chega saindo”. Ele mesmo conta que às vezes sente até dificuldade de parar a si próprio. Nasceu na cidadezinha de Coaraci, no sul da Bahia, em 4 de fevereiro de 1955 onde seu pai era funcionário da Petrobras e dono do primeiro cinema da cidade, além de radioamador. Como saiu de lá muito criança não conhece bem sua terra natal. Sempre teve uma curiosidade pela arte e gostava de desenhar em seus cadernos de escola e onde encontrasse espaço. Não era afeito aos estudos, fez o primário na Escola Nossa Senhora da Guia, no bairro da Boa Viagem. Conviveu com um colega de escola que só lembra do apelido como o chamavam por Serginho, que era filho de um coronel da Polícia Militar da Bahia. Moram muitos militares naquela região porque ali fica o principal quartel da PM, em Salvador. Juntamente com o colega ficavam desenhando animais e tudo que surgia de interessante. Fez seu primeiro ateliê ainda criança num apartamento onde morava na Rua Pirai, no bairro do Bonfim.
Suas Histórias
Disse que nasceu em casa e quem fez o parto foi seu padrinho Gilson e que no momento do parto entraram alguns bois na sua casa causando um reboliço. Lembro que era comum nas cidades do interior animais soltos nas ruas. Em Ribeira do Pombal na minha infância muitos animais ficavam soltos comendo nas ruas especialmente nos lixões que se espalhavam pelos fundos das casas. Eram jumentos, cavalos, bois, ovelhas, porcos e galinhas. Certa ocasião o prefeito mandou recolher os porcos e como não obedeceram a ordem que era fruto de uma recomendação sanitária do médico local o alcaide resolveu mandar atirar nos porcos que estivessem soltos. Deu uma confusão danada! Certa vez um jegue no cio entrou perseguindo uma jega na missa que o padre Hildebrando estava celebrando na igreja de Santa Tereza. Foi um Deus nos acuda!
Voltando ao Leonel Mattos ele contou ainda que quando sua mãe estava grávida tomou um choque muito forte no microfone do sistema de rádioamador de seu pai e ela costumava brincar que ele “não foi parido, foi chocado”, e avisava brincando aos amigos e conhecidos que não prometessem nada ao Leonel porque ele sempre vai cobrar.
Em 1956 seus pais resolveram vir morar em Salvador e assim foram estabelecer residência numa casa na Baixa do Fiscal. Tempos depois se transferiram para a Rua Arco Iris, no bairro da Boa Viagem, aí sua infância foi dividida entre os banhos de mar, babas e passeios de bicicleta pelas ruas próximas à sua casa. Teve, portanto, uma infância normal como a maioria das crianças. Depois foram morar na Rua J. Carlos Ferreira, também na Boa Viagem. Foi neste período que conheceu o Serginho e passaram a desenhar e mudou novamente desta vez para a Rua Piraí, no bairro do Bonfim, foi aí que improvisou um ateliê no quarto e decidiu criar alguns pintos. Talvez isto tenha influenciado a desenvolver estes elementos estilizados que alguns confundem com galos. Ele nega peremptoriamente que algum dia tenha pintado alguma galinha ou galo. Passaram alguns anos nesta rua quando foi estudar em 1964 no Colégio São Jerônimo, que funcionava defronte a famosa fábrica de refrigerantes Fratelli Vita, no bairro da Calçada. Foi nesta época que a Polícia Federal bateu em sua casa e levou alguns livros e outros objetos pertencentes ao seu pai João Mattos que era da Petrobras e atuava politicamente contra a ditadura militar. Ele era do MDB e se candidatou a deputado estadual e não foi eleito, e em 1968 morreu de um enfarto fulminante no Hospital São Jorge.
O Primeiro Quadro
Pintou seu primeiro quadro em 1971 após visitar uma afilhada de sua mãe chamada Sônia Sinval, que residia na Ladeira da Fonte Nova. Viu vários quadros pintados por ela nas paredes e aquilo lhe encantou, especialmente um deles que tinha uma casinha, solitária, num local alagadiço. Logo depois a tia Dalva Mattos lhe presenteou com umas tintas, pincéis e telas e começou a pintar o que vinha à cabeça. Lembra que um dia foi para a Rua Rio Almada, no bairro da Boa Viagem, onde tinha um casarão abandonado e da janela avistava o mar. Foi quando resolveu pintar este quadro que está aí que foi o primeiro feito em tela. Lembrou da casinha que a Sônia Sinval havia retratado e desenhou e pintou assim a casinha no quadro. Neste período conheceu o desenhista e pintor Edmundo Simas, o Super Boy, que era um exímio desenhista que lhe deu muitas dicas importantes.
Já adolescente disse a minha mãe que iria passar uns dias na ilha de Itaparica na casa de um parente e na realidade foi para o Rio de Janeiro de carona com um colega que tinha família que morava lá. Só o irmão mais moço o Fernando Antônio Mattos, j á falecido, sabia da aventura. Foram de caminhão até Feira de Santana e ao chegar à noitinha pretendiam dormir num posto de gasolina foi quando o dono do posto os ameaçou: “se estes hippies tentarem dormir aqui vou colocar gasolina e tocar fogo”. Neste interim apareceram dois carros para abastecer e diante da ameaça foram pedir carona. Para sorte eram pai e filho que estavam dirigindo cada um dos carros. Foi o filho que lhes deu carona até Brasília. Ele ainda os acolheu em sua casa e de lá foram de trem para Belo Horizonte, sempre pedindo ajuda e carona para viajar. O destino era o Rio de Janeiro e assim conseguiram chegar. Lá chegando os viajantes se desentenderam e o Leonel ficou sozinho. Conseguiu naquela noite dormir na cozinha de uma pequena pousada, e quando estava dormindo “veio um gay fritar ovos e quase pisa em mim,” conta Leonel Mattos rindo. O jovem deu um grito e ele tentou acalmar preocupado que o dono da pousada lhe descobrisse e o expulsasse. Pediu que ficasse calado, e saiu ao amanhecer do dia. Já na noite seguinte teve que dormir na praia de Copacabana. Eram outros tempos… Confessa ter passado muitas dificuldades e fome. “Resolvi voltar para casa. Fui até a Rodoviária do Rio e passei a pedir ajuda para vir para Salvador.
Teve um dos passageiros na Rodoviária que se aborreceu dizendo que era a segunda vez que ele pedia ajuda. Geralmente davam de um a dois cruzeiros. Foi então que aborrecido o passageiro lhe deu dez cruzeiros e completou o valor da passagem. Sentou-se junto de uma senhora que durante o trajeto estava chupando laranjas e comendo outras guloseimas e ele olhando, até que ela ofereceu e a partir daí dividia os lanches com ele.
Resolveu retornar aos estudos e foi para o Colégio São Jerônimo, no bairro da Calçada, estudar Contabilidade, mas na realidade seu interesse era desenhar e pintar. Veio outra mudança e foram morar na Rua Rio Itapicuru, perto do Forte de Monte Serrat. Continuou pintando e entalhando e em 1971 participou de uma coletiva na Galeria O Candeeiro. Com o apoio da tia Dalva Mattos que trabalhava na Receita Federal conseguiu realizar em 1974 fiz a primeira individual na Galeria da ESAF, no hall do prédio do Ministério da Fazenda, no Comércio, em Salvador e teve a apresentação de José Dirson.
Não foi de pintura e sim de entalhes que aprendeu com os entalhadores Paulo Bahia e Hugo Rios, que residiam no bairro de Roma, em Salvador. Em 1980 fez outra exposição desta vez na Galeria Panorama, no Jardim Brasil, no bairro da Barra, em Salvador e eram pinturas primitivas inspiradas na obra do pintor naif Faróleo. Este artista nos anos 70 vivia no Centro Histórico, em Salvador, e chamava-se Josaphat Honorário de Santa Cecília, era já um senhor, natural de Sergipe. Faleceu em 1987 num hospital público em Aracaju vítima de uma úlcera. Lembro que divulguei na coluna uma exposição coletiva em 1975 , na Galeria Sereia, no Pelourinho, eram cerca de trinta artistas, e um deles era o Faróleo, com obras tendo como tema as sereias. Nesta época o Leonel Mattos vendia seus entalhes e muitos outros artistas, inclusive o Faróleo mostravam sua arte numa feira que existia no Terreiro de Jesus e que numa dessas intromissões da administração municipal, resolveu “organizar” a feira e terminou foi acabando. Ali muitos artistas moradores de área do Centro Histórico mostravam e viviam da venda de suas obras e objetos de artesanato aos turistas.
Foi nesta época em 1974 que decidiu casar-se com a hoje artista Rogéria Mattos. Comprou uma toalha rendada e uma sandália de couro na feira do Terreiro de Jesus. Da toalha fez uma bata, colocou uma pena de pavão num chapéu e assim se apresentou para casar-se na igrejinha da Ponta de Humaitá. Os noivos chegaram numa carroça puxada por um burro e o celebrante foi o padre Hugo, pároco da igreja. A recepção foi feita com dois quilos de balas jogadas no estilo galinha gorda. A noiva estava vestida de cigana e deste casamento nasceu sua filha Rebeca que mora em São Paulo.
Nesta época Leonel Mattos também fazia impressões em camisas que eram vendidas a um barraqueiro do Mercado Modelo chamado Bernadino Machado com motivos da Bahia como capoeira, o casario, puxada de rede e outros desenhos inspirados na cultura popular. Foram morar em Umburanas, na ilha de Itaparica e lá fez muitos entalhes das placas indicativas do Hotel Mediterranée que foi um grande sucesso este resort que recebia turistas de todo o mundo. Com esta encomenda conseguiu construir uma pequena casa em Mar Grande, na Fonte da Prata defronte para o mar. Decidiu fazer um mural no terminal das lanchas em Mar Grande e pintou muitos quadros inspirados nas coisas e gente da ilha e contou com a ajuda do prefeito de Vera Cruz Aginoel Aquilino dos Santos . Depois fez um mural no terminal de Bom Despacho no desembarque tendo como suporte placas de Eucatex com 4m x 3m que ficou muito tempo e foi retirado durante uma reforma e não mais o recolocaram no lugar. Ele não sabe o paradeiro da obra.
São Paulo e Rio de Janeiro
Decidiram ir morar em São Paulo em 1985 e ficaram durante uns quinze dias numa pousada procurando uma casa para alugar no bairro do Sumaré. E foi através de d. Helena, que era russa e amiga de sua tia Dalva Mattos que conseguiu alugar uma pequena casa na Rua Desembargador do Vale e partiram para procurar galerias que pudessem aceitar o seu trabalho. Algumas nem os recebiam até que o Paulo Prado, conhecido galerista da Galeria Prado, que sempre apoiou jovens artistas os recebeu e expôs suas obras. O primeiro prêmio na carreira do Leonel Mattos foi em 1977 no Festival de Arte de Itapuã recebido das mãos do saudoso Sante Scaldaferri. Os artistas Leonel e Rogéria Mattos se inscreveram em vários salões inclusive no Salão de Pintura Jovem da Pirelli que teve uma participação de cerca de três mil artistas de todo o Brasil, e tanto Rogéria quanto o Leonel foram premiados e a exposição foi realizada no Museu de Arte de São Paulo -MASP, sendo que Rogéria ficou entre os três melhores, segundo o júri especializado. Neste mesmo ano foi premiado no Prêmio Chandon Arte e Vinho, no Paço das Artes e no VII Salão de Arte de Presidente Prudente, ambos em São Paulo; em 1986 foi premiado na I Bienal Arteoeste de Presidente Prudente, em São Paulo, com o Prêmio de Aquisição; em 1995 premiado na III Bienal do Recôncavo Baiano, realizado em São Félix/Cachoeira, com o Prêmio de Aquisição e em 2004 com o prêmio Braskem de Cultura e Arte com a Caixa Preta, que expôs no MAMB.
Ficou cinco anos e meio em São Paulo, se separou e foi para Rio de Janeiro. Quando chegou ficou provisoriamente num apartamento do artista Jadir Freire, que foi para a Alemanha e lhe cedeu por um tempo. O Jadir também era baiano e já faleceu. Continuou fazendo suas exposições na Galeria Anna Maria Niemeyer, no Rio de Janeiro; no Museu de Arte Moderna, no Paraná; no MAMB, e na Galeria O Cavalete, ambos em Salvador; em 1987 cria o projeto Extremo juntamente com Dina Oliveira, que é paraense; Ricardo Aprígio, de Pernambuco e Brito Velho, do Rio Grande do Sul, que foi uma exposição itinerante que percorreu dez estados brasileiros, inclusive teve uma exposição aqui no Museu de Arte Moderna da Bahia. Logo depois foi convidado pelo crítico de arte Jacob Klintowitz para participar da 1ª Seleção Helena Rubinstein no MASP, em São Paulo, e as obras foram mostradas em Paris e em Bordeaux, na França. Voltou para Salvador e conheceu Indaiara e daí nasceu seu filho Leonel Rocha Mattos Filho, o Leo, já falecido, do qual eu era o padrinho.
Grande revés e superação
Em 2000 sua vida sofreu um revés quando foi preso permanecendo 3,5 anos de reclusão, mas o Leonel Mattos não parou. Três meses depois que foi preso e sentenciado já dava a volta por cima e passou a pintar inclusive as portas das celas e a ensinar alguns presos a trabalhar com tintas e pincéis. Quando faltava tinta improvisava com pó de café e continuavam pintando. Passou a escrever muitas cartas em qualquer papel que encontrasse, inclusive tenho algumas delas guardadas, onde mostrava toda sua revolta e sua ansiedade e o desejo de voltar a ser livre. Sou testemunha do empenho e da tenacidade de Isa Oliveira, com quem viveu 28 anos, sua ex-mulher, que teve um papel fundamental juntamente com seu irmão mais velho o João Mattos, que sempre procuravam as pessoas, inclusive a mim, que trabalhava no jornal A Tarde, e na época o veículo tinha um grande prestígio na sociedade baiana, e assim conseguiram que algumas reivindicações fossem atendidas. Ele é grato também ao André, da Bigraf, que fornecia os papéis para desenhar, e quem intermediava tudo isto era ela e o irmão João. Mesmo preso sua esposa à época conseguiu por exemplo, vender 173 telas para o Hotel Plaza de Camaçari e isto deu um certo alívio financeiro.
Atualmente está no seu quarto relacionamento desta vez com Alba Trindade, que também pinta. É um artista diferenciado, reconhecido aqui e em outros estados brasileiros, inclusive com apreciação dos principais críticos de arte brasileiros como Geraldo Edson de Andrade, Olívio Tavares de Araújo, Olney Kruse e Theon Spanudis além dos críticos locais. Já participou de dezenas de salões, exposições coletivas e mais de vinte individuais em Salvador; Goiânia em Goiás; Porto Alegre; Brasília; Olinda em Pernambuco; Belém, no Pará; Recife, em Pernambuco; São Paulo, Capital; Santos, Ribeirão Preto, Presidente Prudente e Campinas, em São Paulo; Belo Horizonte, em Minas Gerais; Curitiba, no Paraná, e no Rio de Janeiro. Estas exposições foram anotadas até 2004, deste período para cá tiveram outras que ele deixou de computar. Com a sua capacidade de criar coisas novas e de pintar com entusiasmo de um iniciante Leonel Mattos continuará nos brindando com sua arte singular hoje disputada por colecionadores e galeristas. E tem ainda muita estrada pela frente e coisas a realizar.