Com 10 canções inéditas, “Onde eu cheguei, está chegado” conta com gravações nunca antes usadas da voz do sambista baiano
Quinto título da discografia de Riachão, “Onde eu cheguei, está chegado” estará no mundo no dia 24 de janeiro, disponível nas plataformas de streaming. A obra se tornou póstuma após o mestre do samba falecer aos 98 anos, em 30 de março de 2020, apenas quatro meses depois do festejado anúncio da seleção do seu projeto de produção de um novo álbum solo no edital Natura Musical. O conteúdo permanece o mesmo, com 10 canções inéditas escritas pelo artista, que já tinha gravado algumas vozes, recuperadas e agora utilizadas em quatro feats com nomes de peso: Criolo e Martinho da Vila cantam com ele, Beto Barreto se junta com sua guitarra elétrica e o neto Taian traz a carga afetiva familiar. Completando o time de ouro da música brasileira na interpretação das demais faixas, estão Teresa Cristina, Pedro Miranda Roberto Mendes, Josyara, Enio Bernardes, Juliana Ribeiro, Fred Dantas, Nega Duda e Clarindo Silva, tudo sob a produção musical de Caê Rolfsen e Paulinho Timor.
As músicas “Sou da Bahia”, “Tintin”, “Uma vez na janela”, “Sua vaidade vai ter fim”, “Saudade”, “Sonho do Mar”, “Samba quente”, “Oh, Lua”, “Morro do Garcia” e “Homenagem a Claudete Macedo” também reúnem outros 20 musicistas que tocam instrumentos de cordas, percussão e sopro, além do coro presente em quase todas as faixas.
Animado com a vida como sempre, Riachão havia escolhido o título do álbum, que seria “Se Deus Quiser Eu Vou Chegar aos 100” – o que infelizmente não aconteceu. A morte do autor de clássicos como “Cada Macaco no Seu Galho” e “Vá Morar com o Diabo” parecia impedir o seguimento do trabalho que tanto o mobilizou e alegrou até o fim. Seria possível dar novo sentido ao que ele tinha planejado? Uma reviravolta se deu, a reformulação aconteceu, os trâmites técnico-jurídicos procederam longamente e a Giro Planejamento Cultural, empresa realizadora do projeto desde sua inscrição, tornou tudo uma justa homenagem à eternidade do pioneiro e mais longevo sambista da Bahia, com patrocínio de Natura Musical e do Governo da Bahia, através do Fazcultura, Secretaria de Cultura e Secretaria da Fazenda.
“Este projeto resulta de um senso de compromisso cultural com a Bahia e o Brasil no que diz respeito ao fortalecimento e prolongamento das criações musicais deste grande cantor e compositor”, diz Joana Giron, da Giro Planejamento Cultural, que contextualiza como ele havia voltado a compor após anos sem atividade: “Quando ele morreu, estava extremamente animado com o projeto e o disco estava em processo de escolha de repertório. A readequação de tudo não foi simples, mas, quase cinco anos depois, cremos que estamos prestando a homenagem mais à altura de Riachão possível”, completa.
O produtor musical Paulinho Timor, em quem Riachão tanto confiava, comemora: “Ele estará presente no disco, mesmo após a sua partida. A gente queria o Malandro cantando, e felizmente conseguimos: a voz imortal de Riachão, que é sempre o seu melhor intérprete”. É neste contexto que unir artistas que valorizassem devidamente o repertório foi primordial. Riachão volta grandioso, cantado e tocado por quem reverencia e fará ecoar o seu legado.
Junto com o disco, entra no ar um site, em www.riachaosambista.com.br, que abrigará um amplo acervo de fotografias, reportagens, discos, fonogramas e documentos audiovisuais que apresentam a vida e a obra do sambista ao longo de mais de seis décadas, com pesquisa e textos do jornalista André Carvalho. Lá, ainda serão disponibilizados três minidocumentários, dirigidos por Claudia Chávez, da Apus Produtora de Conteúdo, sobre o processo de realização deste projeto peculiar.
Ainda criança, Riachão, segundo ele próprio, cantava samba chula e samba de roda como os seus antepassados escravizados cantavam na senzala. Deixou mais de 500 composições, muitas delas nunca gravadas, de samba autêntico e de tradição oral, algumas interpretadas por artistas como Jackson do Pandeiro, Jamelão, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Dona Ivone Lara, Beth Carvalho, Cássia Eller, Zélia Duncan e muitos outros. Dizia ele: “Não me dá ideia de escrever nada, o samba está dentro da minha cabeça, de acordo com o que acontece ao meu redor”. Patrimônio baiano e brasileiro, de alegria e sorriso sempre estampados, foi parceiro de irmãos de samba como Batatinha, Edil Pacheco, Walmir Lima, Panela e tantos outros que fizeram da boa música baiana profissão de fé.
Riachão foi selecionado pelo edital Natura Musical ao lado de Alto da Maravilha, Cabokaji, Coletivo Afrobapho, Feira Noise Festival, Jadsa, Mateus Aleluia e Tá Batenu – Culto Afrofuturista. No estado, a plataforma já ofereceu recursos para mais de 80 projetos de música até 2022, em diferentes formatos e estágios de carreira, como Margareth Menezes, Luedji Luna, Mahal Pita e Casa do Hip Hop da Bahia.
“Onde eu cheguei, está chegado”, por Lucas Nobile*
*Jornalista, pesquisador, escritor, autor de “Dona Ivone Lara: a primeira dama do samba” e de “Raphael Rabello: o violão em erupção”
“Sempre fui um cara de viração. E meu apelido vem justamente disso: ninguém me aguentava numa briga e, por uma tradição baiana, um sujeito difícil de dobrar se chama Riachão. Rio pequeno, meu amigo, a gente atravessa até dançando, não é? Com os rios grandes, é preciso ter mais cuidado. Pois é, eu sou assim”.
Ícone do samba baiano, Clementino Rodrigues, o popular Riachão, também deixou uma obra que é rio caudaloso. A nascente brotou em Salvador e, desde a década de 1970, vem desaguando por todos os cantos do Brasil.
Ao mercado fonográfico, suas composições já haviam chegado desde os anos 1950, girando em 78 rotações de intérpretes como Jackson do Pandeiro, Moreno e Moreninho e Tonico e Tinoco. Os gêneros musicais eram os mais variados: das toadas aos maxixes, dobrados, marchas, sambas-canção e boleros. Mas foi no samba mesmo que ele imprimiu sua inconfundível assinatura.
E o fato de Riachão não tocar nenhum instrumento de harmonia nunca foi obstáculo para sua criatividade. Sujeito entranhado de música, para ele as melodias jorravam como a fluência das águas. Embora tenha trabalhado como alfaiate e como contínuo no Banco de Desenvolvimento do Estado da Bahia, sua vocação, seu ofício, sua missão era a de compositor. “Nas minhas horas vagas, estou sempre solfejando uma música, cumprindo com as obrigações, mas sempre cantando”.
Como intérprete de suas próprias composições, foi insuperável em matéria de divisão, de carisma e de malandragem. No palco, outras marcas de Riachão eram o carisma e a jovialidade.
Vitalidade latente e expressa naquele que seria o título original do próximo álbum de Riachão: “Se Deus Quiser Eu Vou Chegar aos 100”. Quis o destino que ele cantasse para subir um pouco antes do combinado, partindo aos 98 anos.
O que não interrompeu os planos dos produtores Caê Rolfsen e Paulinho Timor – colaboradores íntimos de Riachão –, que nos presenteiam ao honrar o legado do compositor, dando continuidade ao disco começado pelo próprio autor, mas agora com o título “Onde eu cheguei, está chegado”, com verso oportunamente extraído da conhecida “Camisa molhada”, lançada em 1979.
Tudo feito da maneira como Riachão gostaria, a começar pela seleção do repertório, iniciada pelo criador em parceria com os produtores. Na ausência do compositor, grandes artistas de diferentes gerações jogam luz sobre suas canções inéditas.
De Martinho da Vila (“Sonho do mar”) ao neto de Riachão, Taian (“Tintin”), passando por Teresa Cristina (“Uma vez na janela”), Criolo (“Saudade”), Nega Duda (“Homenagem a Claudete Macedo”) e Pedro Miranda (“Sua vaidade vai ter fim”), a estética, a estilística e a inventividade de Riachão se provam mais vivas do que se poderia sonhar. Tão vivas, que em algumas faixas a voz-guia de Riacho – forma afetuosa com que os produtores o chamam – foi mantida no álbum, reafirmando ainda mais a presença do mestre do Morro do Garcia.
Em termos de sonoridade, duas faixas trazem coloridos bem distintos em relação ao restante do álbum: “Samba quente”, gravada por Roberto Mendes (e produzida por seu filho Léo Mendes, no ano de 2021, em tempos de pandemia e isolamento), e “Oh, Lua”, iluminada pelo talento singular da voz e, sobretudo, do violão de Josyara.
É disco rico em detalhes e de natureza acintosamente popular. É samba da Bahia mais bonita que pode haver. Lá do alto – ao lado de seus pares Batatinha, Panela, Alcyvando Luz, Assis Valente, João Gilberto e Caymmi –, Riachão pode descansar com sua inseparável toalhinha pendurada no pescoço e abrir seu largo sorriso, pois seu legado, com este álbum, há de perdurar por mais de 100.