Por Matheus Spiller
Três mulheres com origens, trajetórias e vivências diferentes, mas que compartilham a mesma atividade: elas são djs em Salvador. Aqui, as djs DMT, Kioma e Mai contam um pouco de suas histórias, falam sobre o que fazem, o que pensam sobre a cena e suas projeções para o futuro. Três olhares sobre como é ser protagonista em uma atividade artística noturna, em ambientes que podem ser hostis, repletos de obstáculos – especialmente para mulheres, na mesma medida em que representam realização profissional e espaço para expressão artística. Os desafios, as dificuldades e as maravilhas do cotidiano de três mulheres djs em Salvador.
DJ DMT
Música que desperta e conecta
DJ DMT é o nome artístico de Deméter Gramacho. Aos 29 anos, a artista, natural de Nazaré das Farinhas, traz na bagagem influências fundamentais da cultura hip-hop, que ela mesma considera ter sido a porta de entrada para o mundo da música. A chama acendeu quando cursava Ciências Sociais na UFBA e passou a acompanhar a cena. “Ingressar na Universidade fez com que eu tivesse vivências também fora dela. Aí eu conheci o hip-hop…e, de tanto ver aquela cena acontecendo, pessoas que não são ‘padrão’ de estar nos espaços de palco, eu comecei a me interessar e pensar que aquilo talvez pudesse ser um caminho pra mim”, conta.
Deméter passou a estudar mais a fundo e pensar no trampo de DJ de maneira profissional depois de morar um tempo em São Paulo e perceber, através da observação e da convivência com pessoas que já trabalhavam na atividade, que ali havia uma trilha a ser desbravada. Um canal para dar voz à criatividade musical aflorada desde a infância.
Aí foi estudar e correr atrás: “Eu precisei dedicar tempo e recursos…investir! É uma atividade que exige que você, às vezes, tenha outro trabalho para poder seguir. E é muita pesquisa, muito dinheiro que a pessoa precisa investir”, afirma. “Muita gente acha que o trabalho de DJ é só aquilo ali…montar uma playlist e tocar…mas até chegar num ponto de montar um repertório pra fazer um show de duas horas, tem técnicas e pesquisas que demandam dedicação e tempo”, completa.
Hoje DJ DMT descreve sua identidade musical como uma mistura de influências assentadas na baianidade. Trabalha bastante em cima de gêneros como pagode e afrobeat. “Eu costumo trazer uma pegada afrobeat para músicas que estão fazendo sucesso em outros estilos…por aí entra a minha curadoria, o público vai se abrindo um pouco pra esse estilo e eu vou soltando outras coisas”, conta.
Quanto ao mercado, ela ressalta que há uma disparidade de oportunidades entre homens e mulheres no segmento. “Recentemente a gente passou pelo carnaval e a diferença de quantidade entre DJs
homens e mulheres, em palcos que tocam Djs, é uma coisa gritante. E não é proporcional! Quando eu comecei não tinha muitas mulheres, mas já tinha. Depois que eu entrei, já tem muito mais”,afirma. O machismo é um entrave para mulheres que trabalham na área. “A permanência no mercado não ocorre pela questão de as oportunidades não serem iguais. Muitas meninas tem pesquisa, tem técnica, tem equipamento, mas acabam indo trabalhar com outra coisa”, conta DMT.
Ela já sofreu pessoalmente com o olhar de desconfiança: “Já cheguei pra tocar, com meus equipamentos, e as pessoas que estão montando som me ignorarem, e depois é tipo… ‘você é a DJ? É você que vai tocar?’…nunca esperam que seja uma mulher…é estranho…isso mina as oportunidades da gente”, lamenta.
O assédio é outra questão delicada à qual as Djs estão expostas. Dj DMT fala que conta nos dedos as vezes em que foi trabalhar e não sofreu algum tipo de assédio. “Recentemente eu fui tocar em uma festa que tinha um artista importante no cenário nacional e um dos produtores desse cara, que já estava alcoolizado, começou a me elogiar…até aí tudo bem…mas ele passou do ponto e começou a passar a mão em mim…os amigos dele tiveram que intervir, puxar ele…uma situação constrangedora”, relata. “Eu sou muito apaixonada pelo que eu faço, mas esse tipo de coisa coloca uma capa de negatividade em algo que não deveria ter. A maioria das festas vem acompanhadas de algum homem, principalmente homem, tentando te assediar ou te constranger de alguma forma”, diz. “Felizmente, nas casas de show que eu toco, eu já conheço as pessoas, seguranças, funcionários…que já estão atentos”, completa.
Para fazer um contrapondo a esse tipo de problema, as Djs formam uma cadeia de apoio. De acordo com DMT, a solidariedade é maior do que a competitividade entre elas: “Eu percebo que existe muito mais uma rede que garante que a gente toque em mais lugares. Uma vai tocar e indica a outra, por exemplo. Quando a produtora da festa é mulher, dá um jeito de encaixar uma mulher para tocar”, ressalta.
O que a Dj DMT destaca de mais positivo no trabalho é o prazer de pesquisar a música afrodiaspórica. “A pesquisa se concentra aqui, na Nigéria, na Jamaica e eu tento trazer essas semelhanças. É uma pesquisa quase antropológica. Isso gera também uma rede de pessoas, eu acabo conhecendo artistas, djs de vários lugares do mundo com a música conectando a gente”, conta.
A discotecagem chama atenção também das crianças. DMT comemora o potencial educativo que a atividade carrega. “Na minha interação com o hip-hop, quando eu faço atividades comunitárias, eu sinto que atrai muito as crianças. Chegar com arte educação em lugares onde as pessoas não tiveram isso e ver que elas se interessam é uma coisa impagável. Não tem dinheiro que pague esse despertar de uma pessoa para a possibilidade de fazer algo diferente! Ou até uma própria identificação com você. Por estar vendo você no palco que é um lugar legal, um lugar de prestígio”, completa.
Para o futuro os planos da Dj DMT são a formatura em Artes pela UFBA e, logo na sequência, expandir o alcance do trabalho como Dj pelo Brasil. Dar um giro por outros picos e mostrar, com muito som, que música boa bate onda!
Se liga na cena:
A pedido da nossa reportagem, Dj DMT indicou 3 Djs que vale a pena dar um saque:
DJ Belle, Bruxa Braba e Nai Kiese
DJ Kioma
Criatividade na Bass Music
“A música é transformadora! Tem o poder de mudar o dia das pessoas!”. A frase é de Stella Mares Marques Inácio, ou Dj Kioma, como é conhecida no meio artístico. Aos 12 anos ela veio morar em Salvador, vinda da cidade natal Aparecida de Goiânia, Goiás. Hoje, aos 31, é casada com Lucas Brasil, com quem divide as delícias e obrigações de criar a filhinha Aimê, de 2 aninhos. Trabalha como auxiliar administrativa, mas o que ela curte mesmo é animar as pistas de dança e afins da noite da capital baiana com muita música de diversas vertentes.
Quanto ao estilo de som, atualmente DJ Kioma investe na mistura do open format que, como o próprio termo sugere, é um set com amplas possibilidades de encaixe de estilos e ritmos. “Eu costumo tocar sons que estão englobados na bass music: a black music, o trap, funk, afrobeat…eu faço uma mistura eletrônica, até porque eu toco em lugares de público diverso, então tem esse desafio de trazer um pouco do underground e um pouco do pop”, conta.
Existe no trabalho das DJs e dos DJs, de modo geral, uma faceta que talvez não seja muito observada pelo público que é o trampo de apresentar novidades da música para quem está curtindo as performances. “O DJ acaba sendo um educador musical também. A gente apresenta coisas que a pessoa não conhece ou apresenta aquilo de uma maneira que ela nunca imaginou…junta duas coisas e acaba dando uma terceira que surpreende. Receber o feedback positivo do público nesses momentos é muito legal”, completa Kioma.
Kioma conta que há um avanço gradativo de espaço para as mulheres no mercado de Djs. Destaca porém, que o sexismo ainda é um obstáculo para a cena. Os festivais, por exemplo, tem a maior parte dos lineups formada por homens. “A gente tem conquistas, mas é pouco! Até em termos de cachê. Tem casos em que o cachê para mulheres chega a ser metade do que é pago para os homens. Com a mesma proposta, o mesmo tempo, pra fazer a mesma coisa ou até melhor…então é só por ser mulher. Tem uma questão de gênero aí, sim!”, conclui.
Dessa questão de gênero, vem uma falsa impressão que remete a uma questão delicada: a de que falta mulher fazendo esse trabalho. De acordo com Kioma isso não procede. Ela cita um exemplo prático: “…existem muitas meninas do trap, do rap, com um flow muito melhor…e ano passado teve um festival de trap e: só homem! A gente fala, protesta…esse ano vai ter outro e…o lineup é só homem! Então é um pouco frustrante”, lamenta.
O problema se estende a um nível ainda mais absurdo. A DJ conta que já teve técnico de som querendo participar da apresentação “sem ser convidado”, digamos assim: “Subestimam a nossa capacidade. Já teve técnico querendo meter a mão no equipamento, querendo ensinar o que fazer…”, afirma Kioma.
Ainda no bojo dos perrengues, como é de se imaginar – e nunca é demais bater nessa tecla, Kioma conta que as Djs sofrem com assédio e com as importunações da galera que bebe um pouco além do razoável. Com Dj Kioma não é diferente, mas ela ressalta que atualmente as casas contam com aparato de segurança para coibir esse tipo de situação. O que não tem muito como lidar é com o inconveniente do cara que aparece para pedir música. Sim! Se você é um desses, saiba que isso pode ser bem desagradável. “A real é: DJ nenhum gosta! (risos)…se eu tiver a música e a pessoa me pedir na boa, na educação, eu toco. Mas não é uma coisa muito agradável…”, confirma.
Mas nem só de driblar esses problemas vive uma DJ. O lado positivo de trabalhar com isso, segundo Dj Kioma é a resposta das pessoas. “Eu gosto muito de música e tenho prazer em misturar e inventar coisas novas. Apresentar na pista e ver que deu certo, que eu fiz aquela noite ser especial pra alguém é muito gratificante. Gera muitas boas lembranças, alegrias compartilhadas, muita vivência boa…”, conclui.
Daqui pra frente, DJ Kioma quer aprofundar os conhecimentos através dos estudos sobre produção e conquistar cada vez mais espaço dentro da arte. Para um futuro próximo, estão na trilha de Kioma o lançamento de um EP mostrando a produção própria, participações em festivais e festas em Salvador e roles em pistas de fora também! E que ninguém duvide da mãe de Aimê!
Se liga na cena:
A pedido da nossa reportagem, Dj KIOMA indicou 3 Djs que vale a pena dar um saque:
Nai Kiese, DJ Belle e Laize Hage
DJ Mai
Summer Eletrohits? Tem! Pagodão? Claro!
A soteropolitana Maiara Russel é DJ desde 2018. Começou por pura brincadeira e pegou gosto pela atividade. Foi frequentando as festas que esse universo se apresentou para ela através da ideia da amiga Brenda, que instigou e ajudou nos primeiros passos. Hoje, aos 31 anos, Maiara se apresenta como Dj Mai e bota todo mundo pra dançar.
A variedade dá o tom do set da Dj Mai. “Geralmente eu toco mais o que tá no auge, como pagode, funk, música pop brasileira…mas hoje em dia eu gosto mesmo da música dos anos 80 aos anos 2000. Principalmente por influência do meu pai que escutava muito Michael Jackson, Madonna, Duran Duran…também gosto daquele eletrônico tipo Summer Eletrohits, anos 2000, gosto bastante de música internacional também, do rock ao pop”, conta.
A receptividade ao som da Dj Mai tem sido muito positiva justamente pelo diferencial nas apresentações. “Tem sempre aquela galera que curte muito esse estilo e que geralmente não vê com frequência, então é uma experiência muito boa!”, comemora. “Mas também tem o pessoal que curte a coisa mais voltada para a música baiana em si, do pagodão, do funk. É muito bom ver a galera lá na frente dançando, fazendo a coreografia”, completa.
Uma Dj open format, como é o caso da Dj Mai precisa ter uma atenção constante ao que está em alta na música. É uma característica fundamental para quem faz o trabalho que ela desenvolve. “A gente tem que procurar mesmo qual é a música que tá mais no topo. Saber o que a galera tá curtindo e o que a galera não curte tanto” conta. Mas ela também gosta de surpreender. “Às vezes você sabe que o público tá ali pelo funk, ou pagodão, mas quando toca a música pop acaba tendo uma receptividade muito boa e isso me impressiona”. Aí rola de Black Eyed Peas a Corona numa boa e todo mundo dança!
A desigualdade de oportunidades entre Djs homens e mulheres é citada por Dj Mai como um dos fatores dificultadores para o crescimento da atividade entre elas. “Eu fico às vezes muito frustrada de ver em várias festas essa diferença de ter uma dj mulher pra uns nove djs homens, por exemplo”, lamenta. E aqui ela nos faz uma provocação que dá uma outra dimensão a essa diferença entre homens e mulheres. Até mesmo no mainstream isso fica evidente. “A maioria dos que fazem sucesso são homens: Calvin Harris, David Guetta, Alok…e, se eu for dizer uma mulher que faz sucesso nesse nível eu citaria Peggy Gou…então são vários homens e, de mulher, a gente cita uma”, conta.
Para além da desigualdade, o problema do assédio também é relatado por DJ Mai como um dos lados negativos vividos por mulheres djs. Ela já passou por situações complicadas. “Tem ocasiões de assédio moral, que é a pessoa que chega pra pedir música de forma grosseira, achando que eu tenho obrigação de botar a música que ela quer…Tem situação de assédio sexual também, que é gente que chega pegando, por eu estar ali tocando acham que podem dar em cima de mim. É bem complicado, mas a gente tem que saber se impor!
Ainda assim, as mulheres estão se interessando pela arte. Dj Mai conta que já colheu declaração de uma colega que se inspirou no trabalho dela e se identificou inclusive com a representatividade estética. “Eu sou uma mulher de cabelo curto, uso óculos, o que não é muito comum. A gente vê mais mulheres de cabelão e tal… e essa amiga me disse que por ter as mesmas características, se sentiu inspirada”.
E o que inspira Dj Mai a seguir é o poder revolucionário da música. A capacidade que a música possui de afetar as pessoas positivamente. “Foi uma coisa que apareceu pra mim como um hobby e hoje é uma paixão que eu preciso e quero desenvolver cada vez mais. É um trabalho que me abriu muitas portas. Me colocou em lugares que eu jamais imaginei. Então eu fico muito feliz pelo reconhecimento”, conclui.
E vem coisa boa por aí. Dj Mai tem planos que incluem upgrades no equipamento para melhorar cada vez mais a performance. Ela pretende também se unir ao namorido Igor, que também é músico, num projeto musical novo que vai misturar as influências dos dois. Por enquanto é aguardar, com a certeza de que o som vai chegar pesadão, pra dançar muito e não deixar ninguém parado!
Se liga na cena:
A pedido da nossa reportagem, Dj Mai indicou 3 Djs que vale a pena dar um saque:
DJ Lua Leal, Gabi da Oxe e Bruxa Braba