Por Gina Marocci
Este ano, a Basílica do Senhor do Bonfim completa 270 anos marcados por testemunhos de milagres, alegrias, promessas e muita fé. Da minha varanda eu presencio todo o movimento em torno da devoção ao Senhor Bom Jesus do Bonfim, que tem 4 momentos fortes: a última sexta-feira do ano, carinhosamente chamada de Sexta-feira da Gratidão; a primeira sexta-feira do ano, conhecida como a Sexta-feira da Proteção para o novo ciclo que inicia; a Novena, que começa na primeira semana de janeiro; e a famosa quinta-feira da Lavagem do Bonfim.
É bonito ver o sobe e desce de pessoas, geralmente vestidas de branco, que vêm assistir as missas, agradecer ou pagar promessas. Lindo é ver o costume dos pais de apresentar o bebê recém-nascido ao Senhor do Bonfim, com os olhos agradecidos, mas também cheios de súplicas pela saúde, pela proteção da criança em seus braços. Do alto da cruz, Jesus tudo ouve, tudo vê, tudo observa, num silêncio de mil palavras, de coração para coração.
A festa religiosa é abrilhantada pelas belas vozes do Coral do Bonfim, acompanhadas de uma pequena orquestra, que entoam os cânticos elaborados exclusivamente para a Novena, obra do compositor baiano João Manoel Dantas no início do século XIX. A festa popular toma conta das ruas da cidade baixa, da Conceição da Praia até a Colina Sagrada, na segunda quinta-feira do ano, embelezando a cidade como um manto branco.
As baianas, com seus belos trajes engomados, colares e quartinhas com flores e água perfumada, seguem para o adro da Basílica, para a famosa lavagem. Mas a festa não acaba na quinta-feira. No domingo seguinte, após a missa de encerramento, os fiéis se reúnem para dar as três voltas em torno da igreja e tudo é coroado com, uma bela queima de fogos de artifício.
A devoção ao Senhor Bom Jesus do Bonfim nos veio de Portugal, da cidade de Setúbal, na região metropolitana de Lisboa. A devoção começou no século XVII e, pela tradição do povo do lugar, foi devido a um naufrágio ocorrido próximo à cidade onde se encontrou, entre os destroços da embarcação, uma imagem do Senhor crucificado. Logo os moradores da cidade, tanto os que trabalhavam no campo como os pescadores e marítimos, criaram um culto ao Senhor Bom Jesus do Bonfim, também chamado de Senhor da Boa Morte, caracterizado pelos ex-votos e pagamento de promessas.
A devoção ao Senhor do Bonfim chegou ao Brasil na primeira metade do século XVIII. Em Salvador, ela foi trazida em 1745 pelo Capitão Theodózio Rodrigues Faria, como ex-voto pela salvação milagrosa de um naufrágio próximo a Lisboa. Foi ele quem fundou a irmandade aqui em Salvador, que teve como primeiros devotos os moradores de Itapagipe, pessoas simples, como pequenos comerciantes, pescadores, navegantes e negros livres.
Antes da igreja da colina ser construída, os devotos reuniam-se na igreja de Nossa Senhora da Penha, onde a imagem vinda de Setúbal ficava exposta. Com o tempo, a devoção foi-se ampliando e pessoas vinham de todas as partes da cidade e do Recôncavo para agradecer e fazer promessas ao Senhor do Bonfim, e a pequena igreja da Penha não comportava receber os romeiros.
O local para a construção da Igreja do Bonfim foi escolhido pelo Capitão Theodozio, em terreno doado por Joanna Thereza de Oliveira, em 1752. No ano de 1754, quando veio a imagem do Senhor do Bonfim, apenas a capela-mor estava construída, mas já havia casas para romeiros. O arrabalde de Itapagipe era considerado uma região rural e, conforme a arquiteta e urbanista Mariely Santana (2009), que enfatiza a dificuldade dos romeiros em se deslocar da cidade até o Santuário de Nosso Senhor do Bonfim, precisava-se atravessar áreas alagadiças. Observa, também, que o melhor acesso era por meio de barcos e saveiros, que atracavam no Porto de Monte Serrat ou no Porto dos Pescadores, ao sopé da colina.
A partir desses portos, os devotos tinham acesso à colina por dois caminhos: o mais antigo, pela estrada de Monte Serrat, e o outro pela chamada ladeira da rampa do mar (Porto da Lenha). Ainda no século XVIII foram construídas pela Devoção duas novas ladeiras, a do Porto do Bonfim, hoje Ladeira dos Romeiros, e a Ladeira da Ponte da Pedra, atual Ladeira do Bonfim, que facilitava o acesso de quem vinha de Roma e da cidade (SANTANA, 2009). Entre 1792 e 1798, a Devoção construiu uma nova estrada até o porto de Roma, que logo ficou sendo chamada de Avenida dos Dendezeiros.
No início do século XIX, a Península já apresentava uma ocupação maior ao longo do percurso até a Colina do Senhor do Bonfim, onde começaram a se instalar, também, casas comerciais. A Devoção, então, comprou, em 1815, terrenos dos Mares até a Jequitaia, e construiu a Calçada do Bom-Fim (SANTANA, 2009), que promoveu várias benfeitorias para a região como drenagem de terrenos, calçamento de pedra e arborização de ruas, tudo isto para promover a festa e melhorar as condições de acesso à colina e à igreja. As festas que já ocorriam nesse tempo no mês de janeiro atraíam muitos romeiros vindos de várias cidades do Recôncavo, que aqui chegavam em embarcações que cruzavam a Baía de Todos os Santos.
O desenvolvimento urbano da Península de Itapagipe, anterior do período da instalação das fábricas (a partir segunda metade do século XIX), teve grande relação com a devoção ao Senhor do Bonfim e sua Irmandade. Para conhecer a fundo essa relação, recomendo a leitura do livro de Mariely Cabral de Santana, intitulado Alma e Festa de uma cidade: devoção e construção na Colina do Bonfim (EDUFBA, 2009).