Todo dia ele faz tudo sempre igual.
Em determinado momento de “Dias Perfeitos”, novo trabalho de Wim Wenders e que está disponível na plataforma Mubi, esqueci que estava vendo um filme, tamanha a naturalidade e imersão na vida de Hirayama (Koji Yakusho, espetacular vencedor do prêmio de melhor ator em Cannes 2023), um senhor que passa os dias num emprego que consiste em higienizar os banheiros públicos pela cidade de Tokio, atividade que ele faz com determinação estoica.
Essa rotina é a essência do filme, é o que faz a história se movimentar, mesmo que pareça que ela não está indo para lugar algum e, realmente parece. Porém, a beleza está nos detalhes que vão se apresentando ao longo da jornada, através de pequenas pistas e participações. Essa escolha do diretor, sabiamente, nos coloca como um observador não tão próximo, já que temos que tirar nossas conclusões apenas analisando as ações diárias do protagonista. Jamais sabemos facilmente o que se passa pela sua cabeça.
Wim Wenders é conhecido por filmes intimistas (Asas do desejo e Paris, Texas) e aqui ele vai fundo nesse estilo, ao criar o dia a dia simples desse homem e sua personalidade tranquila e (muito) silenciosa. A edição do filme é suave, com poucos cortes, câmera parada e cenas longas. A fotografia iluminada mostra a Tokio do protagonista: Calma, acolhedora, simples e sem pressa. A trilha sonora é quase toda diegética, a gente ouve o que Hirayama ouve e ele faz isso como parte da sua rotina, ao entrar no seu furgão e dar o play na fita cassete (sim, ele não precisa de mais do que isso). E que trilha sonora! Velvet Underground, Van Morrison, Lou Reed (representado aqui pela dilacerante “Perfect Day”, não à toa, o nome do filme).
A grande experiência aqui é buscar as sutilezas, receber as perguntas e não se incomodar em não ter respostas. Porque esse homem é tão entregue a essa rotina? Ele limpa os banheiros com perseverança, como se o destino do mundo dependesse daquilo. Ele contempla as árvores, lê os seus livros, tira suas fotos (e as revela), almoça sempre no mesmo lugar, com calma. Fala pouquíssimo e, apesar de aparentemente satisfeito com tudo, parece carregar uma pesada melancolia dentro de si. Será que ele está preso à rotina ou essa foi a forma que ele encontrou para sobreviver?
E quem é, na verdade, o prisioneiro? Aquele que vive numa busca desenfreada por dinheiro e bens materiais, nunca satisfeito, ou quem é feliz numa vida simples, que consegue enxergar beleza nos pequenos milagres da natureza, banalizados pela maioria apenas por serem comuns? O que foi necessário acontecer para ser possível enxergar esse “poder”? Aparentemente ele está nesse emprego por opção e não por necessidade, mostrando mais ainda o apego a esse estilho de vida.
Essa rotina perfeita é abalada ao longo da história e ver a reação dele com essas interrupções é importante para compreender a complexidade desse personagem. A visita da irmã e, principalmente, da sobrinha nos mostra um pouco dessa história e das escolhas.
Os símbolos estão por toda parte. As árvores contempladas como uma metáfora da existência, finitude e beleza. O jogo da velha, como um desejo de interação, mesmo que anônima. As músicas e os livros, um prazer solitário que ajuda a definir o clima e a forma de ver esse caminho. Na passagem do tempo, tudo pode acontecer, e o nosso protagonista busca o controle das ações para usufruir essa rotina, numa progressão tranquila, contemplativa e solitária. E tentar entender o porquê é a nossa jornada.