Por Matheus Spiller

No aniversário de 90 anos da matriarca de uma família, os seis filhos se reúnem para celebrar, depois de muitos anos distantes. Mas, no dia marcado para a festa, 04 de dezembro, dia de Santa Bárbara, a matriarca morre. O encontro, que seria uma festa, se transforma num velório. A morte da matriarca, ressuscita segredos que são revelados durante o seu velório. O que pode mudar o destino de todos os filhos.
Acima temos uma pista do que nos traz o longa-metragem A Matriarca. Uma história densa e envolvente, que leva a reflexões sobre a natureza humana e traz a Bahia profunda e ancestral para a tela. Nesta entrevista, o cineasta Lula Oliveira, conta como foi a realização do filme do filme dirigido por ele.
Matheus Spiller – O filme traz, através desse momento de perda da matriarca da família, discussões sobre temas que podem evocar situações vividas por quem está vendo o filme. É uma intenção causar essa reflexão no espectador?
Lula Oliveira – Sim, é uma intenção causar essa reflexão do espectador, porque você como autor de um processo artístico, no caso do cinema, constrói uma narrativa. E por trás dessa narrativa tem um discurso. Um discurso que move você como realizador a construir algo que intermedie uma relação de comunicação e chegue nas pessoas com as subjetividades de cada um ao receber uma mesma informação. Então é uma fruição de uma obra para muitas pessoas. E cada uma delas tem uma compreensão desse mesmo ponto de partida sobre a sua subjetividade. É o que se espera. O que eu espero do filme é que ele se comunique e leve reflexões sim para o espectador em cima das questões que ele traz nessa construção familiar que a história aborda.
MS – Uma das marcas do filme me parece que é propor uma reflexão também sobre diálogos necessários e difíceis. A gente vive em um mundo em que isso está cada vez mais delicado de se estabelecer. As pessoas falam de si mesmas, mas muito dificilmente estão dispostas a ouvir. O encontro dessa família em uma situação tão peculiar estende um olhar para isso também?
LO – É, o encontro dessa família é em uma situação tão peculiar estende com certeza um olhar pra o que a gente vive hoje no mundo que é essa relação de comunicabilidade né mas o filme vai além. O filme eu acho que reflete sobre também a questão do silêncio, né? Do silenciar-se diante de questões que precisam ser abordadas na vida das pessoas pra que as verdades guiem seus destinos, né? Quando esse destino está traçado por um silêncio, por uma mentira, por algo que não é dito, você prende corpos, prende espíritos, prende vidas e existências pra que sigam seus caminhos. O que a gente está vivendo hoje no mundo é uma existência dialógica fragmentada pelas mídias, pelos celulares, pelas redes sociais, pelas fragmentações de notícias, de relações familiares que se estabeleceram em outro modo de operar, né? É claro que o filme também versa sobre isso de alguma forma trata essas questões do silêncio e dos diálogos pra que as situações possam se resolver.
MS – Onde foram as filmagens? Que desafios você destacaria no processo de filmagem?
LO – As filmagens foram realizadas em Valença, no antigo casarão colonial chamado Estância Azul, que é um casarão onde boa parte foi filmada: o velório, entre outras cenas da trama. Também filmamos na cidade de Cairu, onde fizemos as cenas com o zabiapunga, manifestações culturais da região, filmamos no mangue, no rio. As cenas externas também, ali na região da do Convento de Santo Antônio, aqueles casarões coloniais ali de Cairu.
Foram muitos desafios…se fosse relatar todos seria quase um texto sobre isso. Mas o desafio maior de estar ainda dentro de um processo pandêmico, tomando as vacinas com protocolos de produção. Trazer isso pra dentro de um desenho de produção do filme pra que não houvesse nenhum problema maior, como não houve…saímos de quatro semanas de filmagem sem ter nenhum caso de Covid na equipe no elenco, e todos muito bem cuidados e cuidando da saúde… Já era um tempo em que existiam protocolos para que pudessem ser filmados os trabalhos que estavam em processo de produção que tinham parado por causa da pandemia. Então acho que esse foi o maior desafio. Levar uma produção para o interior da Bahia, com um processo de construção dessa produção com essas questões sanitárias para que tudo desse muito certo nesse tempo de filmagem.
MS – O cinema tem o poder de mostrar aspectos culturais dos locais em que ele é realizado. A estória contada no filme traz esses aspectos locais? O filme apresenta, digamos assim, aquela região para o espectador?
LO – Nossa, o filme é totalmente pensado num plano estético com as imagens da região. O que nós temos para contar essa história é o Rio Una e seus manguezais, a igreja colonial do convento de Santo Antônio em Cairu, a Estância Azul, casarão antigo do século dezoito que é um museu, digamos assim, vivo ali em Valência, o cais de Valença, as embarcações, o povo da região, o zabiapunga como manifestação cultural, o congado também como manifestação cultural participando, dando o plano estético do filme pra que a dramaturgia surgisse. Então estão completamente dentro do filme os aspectos culturais, regionais e singulares na história que é contada.
MS – O elenco é formado por atrizes e atores baianos em sua maioria. Quão emblemático é fazer uma produção com elenco daqui?
LO -É muito emblemático ter um elenco formado por atores, atrizes daqui da Bahia, que é um celeiro e um berço, digamos assim, do surgimento de atores que marcaram a história do teatro, da dramaturgia, da teledramaturgia, do cinema brasileiro ao longo da história do audiovisual em todas essas dimensões. E esse é um ativo muito caro do filme. É a gente ter essa consciência do desafio de trabalhar com atores baianos dentro de uma construção de uma narrativa cinematográfica. Muitos já vinham de experiências cinematográficas, de novelas, para outros ainda era sua primeira experiência, atores do interior de Valença… Também fizeram parte atores do sul da Bahia, Eva Lima, Alba veio também fazer parte desse projeto com a gente ali no filme. Pessoal lá do sul da Bahia. Então nós tínhamos uma consciência muito grande da importância de ter atores baianos protagonizando esse filme coral. E o desafio de todos nós, produção, direção, elenco, participar e construir esse trabalho foi muito gratificante e acho que é muito importante pro que a gente tá construindo no audiovisual baiano.
MS – Como tem sido a receptividade ao filme desde que foi lançado? Já teve participação em festivais?
LO – Não tem sido muito fácil, não. Porque existe uma demanda reprimida de filmes que não foram exibidos ao longo do tempo da pandemia. E isso, de alguma forma, fez com que muitos filmes tivessem parado o seu processo e agora voltou com uma demanda muito maior do que os festivais tão dando conta. Então tá muito competitivo. Eu sinto que não tem sido fácil pra muitos filmes no Brasil e aqui na Bahia também, mas nós conseguimos participar de dois festivais muito interessantes, que foram o Festival de Cinema Brasileiro de Los Angeles, que foi uma experiência incrível. É o filme se comunicando com o público americano e com o público brasileiro que também mora nos Estados Unidos. Ter essa sensação de que há um valor assim construído em torno da história do cinema, que o filme agrega, e ter o reconhecimento de um prêmio também nesse festival foi muito importante. Depois fomos pro Violeta Film que é um festival da Colômbia, que tá começando a sua vida e nós achamos importante também estarmos presentes em movimentos de visibilização do cinema não tão famosos, mas que tenham uma linha curatorial e de um pensamento progressista, dentro de uma ideia de parcerias, intercâmbios cinematográficos latino-americanos que vale a pena participar. Isso pode abrir outras portas na Colômbia. Mas eu desejo que o filme circule mais, se comunique mais, porque eu acho que ele traz algo muito contemporâneo na sua nas suas reflexões.
MS – A gente não pode deixar de falar sobre o lado mais burocrático, que, no fim das contas, é aquele que possibilita a realização de projetos como A Matriarca. Qual é o papel do governo, por exemplo, e do empresariado na construção de um cinema viável, uma estrutura que sustente essas produções?
LO -O papel do Governo é fundamental. É historicamente fundamental dentro da construção do cinema brasileiro. E atualmente, dentro de uma perspectiva de permitir que a produção se descentralize por todas as regiões do Brasil, como vem acontecendo já há alguns anos dentro dessa constituição política, histórica pensada dentro do governo de Lula, de Dilma e retomando agora no governo de Lula. O que a gente quer, deseja e acredita é que essa política de descentralização continue potente e forte porque ela permitiu que um filme como A Matriarca e muitos outros filmes de diversas regiões do país pudessem ter sido realizados. Então é muito importante que essa relação de governo se amplie também pra uma construção de uma perspectiva de investimento empresarial de mercado. Porque o produto audiovisual, o produto cinema tem uma penetração muito forte nas mentes das pessoas que acessam os filmes. Como a publicidade na TV você tem aquela rápida imersão e vende um produto, digamos assim. No mercado, o cinema tem uma potência de vender o simbólico, de vender uma civilização, de vender um lugar, vender pessoas, vender o país, né? Então o empresariado, ao enxergar isso, entende que o cinema tem uma construção de negócios, ou seja, é um investimento que se chegar na ponta, se chegar no espectador, traz retorno porque agrega valor à imagem dentro dessa relação. E aí os retornos vem com turismo, com amplitude de conhecimento e abertura de perspectiva de negócios. Tem muitas coisas dentro de uma subjetividade que podem ser construídas num pensamento empresarial também investindo na sétima arte.
MS – O cinema tem tido suporte satisfatório desses entes aqui na Bahia?
LO – Na Bahia é uma é uma luta sem trégua pra fazer com que o estado e o município entendam a importância. Mas é mais do que entender…porque já entendem… mas é uma luta de fazer que essa compreensão se transforme em ações concretas. Pra que esse desenvolvimento continue se consolidando. Então existe um diálogo político, mas existem muitas questões que precisam ser melhor conduzidas entre o ente público, a sociedade civil organizada, pra que haja uma harmonia nesse pensamento político entre o que se pensa e o que se pode realizar dentro de uma coerência, de uma racionalidade, que faça com que o cinema tenha realmente uma perspectiva de geração de emprego, de renda e de agregar valor simbólico, que é o grande investidor desse processo. E o município também.
MS – Pra encerrar, que impressões e ensinamentos você destaca em toda a trajetória de A Matriarca? O que mais te marcou na feitura do filme? O que esse trabalho deixou de mais profundo na tua construção como homem do cinema?
LO – Pergunta mais difícil de responder, porque é um processo que ainda não terminou na minha cabeça. Precisa concluir com a etapa da distribuição. Fazer com que o filme chegue na sala de cinema e depois nas plataformas de streaming, que tenha interesse nessa direção. Porque esse é o ciclo que precisa ser finalizado. Enquanto isso, eu vou pensando em tudo que aconteceu. Que não foram poucos os desafios. E grandes as conquistas pra que chegasse ao final dessa etapa do processo, ou seja, do filme estar pronto pra esse processo da distribuição. Pra que ele conclua a sua trajetória e se liberte, digamos assim, no seu lugar na história, no mundo do cinema e eu possa também partir pra outros caminhos, outros voos. É que essa construção do cinema é um voo de Exu, é aquele voo que você vai, mas ao mesmo tempo você já tá voltando enquanto vai. E nesse vai e nesse volta você já tá fazendo o filme, pensando outro e percebendo, e construindo as trajetórias deles todas ao mesmo tempo. É um pássaro que vai e, ao ir, já está voltando. Esse é o cinema, é o Exu do cinema, né? E quando ele estiver votando ele já está indo de novo. São aprendizados que estão bem fervilhantes ainda na cabeça e acredito que, ao vencer essa etapa, tudo será sistematizado num numa cartografia de conhecimentos sobre esse processo. E que sirva pra próximas gerações de reflexões, estudos. Fica aí uma troca dialógica de uma experiência cinematográfica. Essa é a ideia.


