A Arte de Núbia Espinheira tem a força do Afro
A artista Núbia Espinheira carrega no seu sobrenome uma grife das artes baianas que é o seu saudoso pai Itamar Espinheira que faleceu em 2010, aos 88 anos de idade. Foi neste ambiente de arte que ela passou a sua infância no bairro da Pituba, numa casa com amplo quintal no meio de mais sete irmãos. Nesta época a Pituba tinha sido uma fazenda de Juventino Silva e que rapidamente foi se urbanizando, e hoje é um dos bairros mais conhecidos da classe média de Salvador-Ba. Ela é normalmente uma pessoa reservada e me recebeu em seu ateliê no apartamento onde mora no Horto Florestal, em Salvador. Organizada já tinha separado os quadros que pintou, inclusive os mais recentes e todos os catálogos, recortes de jornais e revistas onde estão publicados artigos sobre sua trajetória artística. Confesso que fiquei surpreso positivamente com a força e a criatividade de Núbia Espinheira que procura exercitar a sua arte com disciplina buscando experimentar novos materiais para que possa depois utilizá-los em suas obras. Vi dispostos numa parede vários pequenos trabalhos feitos em grafite e pastel seco em seus exercícios diários buscando aprimorar sua técnica e o desenho.
O ato de pintar precisa ser exercitado com muita frequência para aumentar a habilidade e criatividade do profissional. Aquele que deseja ser artista tem esta obrigação de sempre estar buscando aprimorar e utilizar novas ferramentas. Núbia normalmente trabalha com acrílica sobre tela utilizando pincéis e espátulas. Lembrei que seu pai era um mestre na arte de pintar utilizando as espátulas aquelas com cabos de madeira e das pontas finas. Já a Núbia utiliza espátulas mais largas, sem cabo e isto lhe permite trabalhar em grandes telas preenchendo espaços mais generosos com sua paleta de cores. Estou falando do pai o Itamar Espinheira porque ela teve uma convivência muito próxima e profícua com ele e seu gosto pela arte passa por esta sua relação, inclusive chegaram até a expor juntos. Sabemos que é muito difícil para os filhos de pessoas que se destacaram em uma área do conhecimento, da cultura ou do mundo empresarial se sobressair. Porém, alguns conseguem tranquilamente como é o caso de Núbia Espinheira que tem uma produção totalmente diferenciada da deixada por seu pai.
Fez seu curso primário na Escola Nossa Senhora da Luz, no bairro da Pituba, e depois o ginásio e o colegial no Colégio Estadual Manoel Devoto, que é um colégio público localizado no bairro do Rio Vermelho, em Salvador-Ba. Em 1974 prestou o vestibular para a Escola de Belas Artes, da Universidade Federal da Bahia. Foi uma escolha natural já que seu pai havia lhe inspirado a seguir esta carreira. Lembra que o pai não tinha outra atividade a não ser a pintura. Vivia de pintar enfrentando dificuldades, é claro, porque tinha de sustentar oito filhos . Era disciplinado e diariamente pintava e fazia suas próprias telas, até mesmo o chassis e umas travas que costumava colocar atrás das telas para melhor esticar o pano. Ela observava todo este ritual do pai e talvez por isto é também disciplinada em sua arte. Em alguns momentos que independeram da sua vontade teve que interromper sua produção, principalmente quando enfrentou um problema de saúde e em seguida o pai adoeceu e ela foi cuidar dele. Mas, logo depois já estava diante do cavalete desenhando, pintando e prosseguindo construindo a sua trajetória artística.
Fez um curso de pós graduação em audiovisual com uns especialistas canadenses que vieram ensinar no Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia – IRDEB onde ela trabalhava fazendo ilustrações e outros serviços audiovisuais onde permaneceu por mais de três anos. Casada com o economista e escritor Armando Avena viajaram para o Chile onde ele foi passar uma temporada estudando na Comissão Econômica para a América Latina e Caribe – CEPAL, depois elaborou um projeto que foi premiado. Mesmo estando em outro país ela não largou a sua pintura, e chegou a fazer uma exposição de suas obras em Santiago, no Chile. Ao retornar trabalhou na ilustração de livros, diagramação e até teve uma rápida passagem pela propaganda. Em 1993 foi convidada pelo artista Francisco Liberato e integrar a equipe que estava trabalhando no desenho animado de longa metragem Boi Aruá. Diariamente ia para o set de filmagens que ficava na Estrada Velha de Ipitanga, em Salvador-Ba desenhando, filetando e fazendo os contornos das cenas. Levou uns dois anos até o término do filme. Interessante saber que o filme Boi Aruá, de Chico Liberato é baseado numa obra de Luís Jardim O Boi Aruá que conta a história de um fazendeiro de nome Tibúrcio cujo poder é desafiado sete vezes pela aparição do Boi Aruá. Era grande o seu desejo de capturar o boi preto e misterioso que se apresentava metafórmico sendo ora um simples boi e ora uma espécie de Exu, depois como uma constelação e até incorporava o próprio fazendeiro/vaqueiro. Já no filme finalmente, o boi se revela ao vaqueiro Tibúrcio. Tem músicas do maestro Ernst Widmer e de Elomar. A estética do O Boi Aruá é baseado nas xilogravuras do cordel.
SUA ARTE
A arte produzida por Núbia Espinheira tem uma linguagem própria. Ela se utiliza da cultura local e mistura cores e traços criando uma atmosfera que perpassa o expressionismo com alguns sinais do figurativo a caminho do abstracionismo. É uma pintura que nos encanta e dá prazer em ver, em buscar em cada detalhe algo que se identifique com a nossa Bahia cheia de cores, sons e encantos. Me disse que sua busca visa realizar um trabalho autoral a cada quadro que pinta deixando ali sua marca do aprendizado que acumulou através das vivências e do tempo que passou e passa diante de uma tela nua que lhe desafia a deixar ali a sua passagem, as suas pegadas, a sua criatividade, as suas emoções e experiências.
Tive o prazer de ser colega de sala no Curso de Ciências Sociais na então Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal da Bahia, que funcionava na Avenida Joana Angélica, do seu primo Gey Espinheira. E agora me deparei com um texto escrito por ele para a exposição de pinturas que Núbia fez intitulada Os Segredos de Ifá onde está escrito: “A pintura jamais é passiva, ela fala com o espectador, questiona e responde: conversa. -Você sempre soube disto, não Núbia? Esses quadros, esses temas… Uma atmosfera encantada. São seres extraordinários em nossa vida cotidiana. Os odus, os filhos de Orumilá. Eles estão em toda parte, eles nos leem, eles revelam a nossa sorte. Os odus conhecem os segredos: “Um fala de nascimento, outro da morte, /Um fala dos negócios, outro da fortuna, / Um fala das guerras, outro das perdas, / Um fala da amizade, outro da traição, / Um fala da família, outro da amizade, /Um fala do destino, outro da sorte.” O texto do Gey Espinheira continua falando dos odus com seus segredos distintos, e a artista traz em suas telas imagens de suas ferramentas e de seus símbolos que tanto aprendemos a apreciar e a respeitar.
Quando da exposição que Núbia Espinheira fez na NR Galeria de Arte, em 2001, da minha saudosa amiga Julieta Isensée, a July, a grande colunista social da Bahia por muitos anos, o professor e pintor Fernando Freitas Pinto escreveu um texto. Vejamos um trecho: “São vinte e um trabalhos em acrílica sobre tela, com colorido intenso, integrando formas e cores, nas manifestações do nosso carnaval e do candomblé. Os quadros de Núbia Espinheira primam pela espontaneidade, pelo ritmo e pela variedade das cores. O amadurecimento do traço e a figuração cada vez mais abstraída são algumas das características dessa nova fase da artista”.
Núbia Espinheira continua pesquisando e aprimorando seu desenho e sua arte de pintar. Vemos que mesmo inspirada na cultura baiana e nas manifestações populares e religiosas ela com seu jogo de formas e cores tem uma tendência natural a abstrair as figuras para que não fique uma coisa chapada como acontece com muitas obras que estamos acostumados a ver por aí. O espectador de suas amplas telas é presenteado com um colorido forte e alegre , com traços e outros elementos geométricos que se misturam e se cruzam onde a figura humana muitas vezes aparece timidamente. Sua pintura tem a sensualidade desta gente vinda do continente africano com suas danças e seus cânticos e o colorido forte das suas vestes. Tudo isto está presente na obra de Núbia Espinheira numa forma muito bem resolvida, que nos dá um prazer inexplicável de ir passando os olhos nos imensos espaços espatulados com maestria.
Numa reportagem publicada na Relíquia tem um pequeno trecho de um texto de Jorge Amado que aqui reproduzo porque mostra um pouco deste fazer da Núbia Espinheira. Vejamos: “Nessa terra tudo é misturado – anjos e exus, o barroco e o agreste, o branco e o negro, o mulato e o caboclo, o candomblé e a igreja, os orixás e os santos, a opulência e a miséria, tudo misturado. Os sentimentos e os ritmos, os mistérios também”.
EXPOSIÇÕES
Fez sua primeira exposição em 1976 na Galeria Cañizares, e em 2004 expôs nos Estados Unidos na Móbile Art Gallery, em Boston, no estado de Massachusetts. Exposições Individuais: 1992- na Frente Verso Galeria de Arte, Salvador-Ba; 1995 expôs na ADA Galeria de Arte, Salvador-Ba; 1998 na Galeria ACBEU – Associação Cultural Brasil Estados Unidos, Salvador-Ba; 2001 na NR Galeria de Arte com o título de Mítica e Magia, Salvador-Ba. Exposições Coletivas; 1976- Galeria Cañizares, Salvador – Ba; 1977 – Semana de Arte, Escola de Belas Artes da UFBA, Salvador-Ba; 1978 – Atelier Los Naranjos, Santiago do Chile, Chile; 1980- Panorama Galeria de Arte, Salvador-Ba; 1986 – Exposição na Câmara dos Vereadores, Salvador-Ba; 1988 – no Foyer do Teatro Castro Alves, A Criança na Visão do Adulto, Salvador-|Ba; 1988 – Fundação Cultural Gileno D’ Velírio , Cruz da Alma, Bahia ; 1988 – Arte Nata Galeria de Arte, Salvador-Ba;1989 – Galeria Beco da Arte, Salvador-Ba; 1990 – Centro de Memória das Águas, Salvador-Ba; 1992 – Eco 92, no Rio de Janeiro, RJ; 1994 Shopping Barra – Artistas Contemporâneos, Salvador-B|a;1995 – ADA Galeria de Arte, Coletiva de Maio , Salvador-Ba;1997 – Barcelona Espaço Cultural, Salvador-Ba;1998 – Galeria Cores do Brasil – São Paulo,SP;2000- Shopping Lapa – Mostra Touromaquia, Salvador-Ba e 2005 – Espaço Cultural do Ateliê, Acervo jornal Tribuna da Bahia, Salvador-Ba.