E fala de coração aberto com a gente
Em 1986, uma moça loira de 18 anos com olhos verdes, bombava nas rádios com uma música que pedia para as pessoas “abrir a roda”. Seu nome é Sarajane Mendonça de Tude, ou melhor, Sarajane, cantora e compositora soteropolitana considerada uma das pioneiras da Axé Music, ritmo que transformou o Carnaval de Salvador.
A cantora, que em 2024 completa 45 anos de carreira e 40 de Carnaval, começou sua carreira em 1980, aos 12 anos de idade, cantando jingles’s, contratada pelo famoso WR Estúdios, gravadora responsável por dar projeção nacional aos artistas da Axé Music. Aos 14 anos ela já participava do carnaval como vocalista do trio elétrico ‘Novos Bárbaros’, embora sua estreia tenha acontecido no Rio de Janeiro no ‘Trio Tapajós’.
A visita do apresentador Chacrinha à cidade de Nazaré das Farinhas, no Recôncavo Baiano, mudou definitivamente a vida da baiana. Encantado com o seu talento, o ‘Velho Guerreiro’ passou a convidá-la para se apresentar no ‘Programa do Chacrinha’, na TV Globo. O destino lhe sorriu e assim Sarajane fez sucesso, colocando o ritmo mais famoso de Salvador em todas as rádios do país.
A fama de Sarajane ajudou a impulsionar outros artistas e grupos de axé como Edson Gomes, Banda Mel, Chiclete com Banana e Banda Reflexu’s. A música ‘A Roda’ tornou Sarajane nacionalmente conhecida e lhe rendeu disco de platina, com mais de 600 mil cópias vendidas, além de um videoclipe no Fantástico, gravado em 1987.
A cantora estava em diversas apresentações em programas de televisão e possuía inúmeras execuções nas emissoras de rádio de todo o Brasil. Sarajane também entoou os sucessos ‘Ela sabe Mexer’, ‘Merengue Deboche’ e ‘Venha Me Amar’. Ao todo, gravou 18 álbuns e faturou diversos prêmios.
Em 1994 fundou a Associação Criança na Arte Sarajane (Acasa), instituição que promove a inserção social de crianças e adolescentes, com cursos profissionalizantes, oficinas de artes plásticas e música. A cantora também é mãe de 5 filhos: Gabriel, Daniel, João Rafael, Mikael e Sara. Em um bate papo com o site Doris Pinheiro, Sarajane fala sobre sua carreira, os momentos mais marcantes e sobre a situação da Axé Music nos dias de hoje. Será que o ritmo que pôs Salvador no mapa realmente morreu?
Confira na conversa:
Site Doris Pinheiro: Como é completar 40 anos de carnaval?
Sarajane: Para mim é de muita importância, porque eu vim de um carnaval onde as músicas, o comportamento e a forma de se fazer carnaval era diferente. Quando a gente chega na avenida a gente traz a música preta, da periferia onde eu vivia, que continua a ser a minha referência. Então, a minha mensagem é de um carnaval de resistência, tal qual é o carnaval dos blocos afros, que é de um trabalho social com a comunidade, a sua ancestralidade, sua religião e a sua cultura. Tudo isso é magnífico, de uma beleza ímpar a que eu tenho muito respeito.
SDP: É complicado resumir 45 anos de carreira em um único acontecimento. No entanto, se tivesse que escolher o mais marcante de sua carreira qual seria e por quê?
Sarajane: Ter ido no Programa do Chacrinha e contribuído a colocar Salvador na rota do Turismo. Salvador era uma cidade que não era tão propagandeada pelo turismo como hoje. Quando eu chego trazendo o coletivo e vou para o Chacrinha mostrar esse ritmo, o Axé, as pessoas querem conhecer a cidade e que ritmo é aquele, de onde ele saiu. A Axé Music colocou Salvador no mapa e Chacrinha acreditou nisso. Acreditou em um ritmo diferente que alavancou a carreira de outros artistas também. Isso para mim é gratificante, apesar de alguns não comentarem e nem falarem sobre isso e, tentar apagar essa parte da história, Deus, os guardiões e as entidades estão aqui para me dar forças e falar a real verdade.
SDP: Na sua opinião, qual a principal mudança do Axé dos anos 80/90 e 2000 para o Axé nos tempos de hoje?
Sarajane: A tecnologia que traz os novos instrumentos e sons, novas possibilidades. Essa modernidade hoje mistura o funk com pagotrap (estilo que une variações do rap com sintetizadores, percussão e o trap – subgênero do hip-hop), samba, hip-hop e por aí vai. Isso é muito bacana. Esse som vem do gueto, que as pessoas têm certo preconceito. Claro, algumas vezes, as letras são muito agressivas, algumas mais explícitas, como um soco no estômago. Mas, vamos dizer assim, na nossa época também a gente trazia letras que falavam da sexualidade e tal. Esses novos sons, que são referência do gueto, quando chegam nos grandes salões é de trazer um impacto, tipo ‘Ei, eu tô aqui, acorda. Ei, cadê você? Sabe? É como um grafiteiro, que muitas vezes é recebido com preconceito, quando ele vem e mostra a arte dele a galera depois entende e aplaude.
SDP: Alguns críticos de música afirmam que a Axé Music morreu. Você realmente acredita nisso ?
Sarajane: Para ser sincera, esses críticos deveriam estudar mais, até porque quem fala isso, não deve nem saber o que é música baiana. Eu acho quem estava dentro desse contexto todo e que tinha a música como prioridade e não como mera indústria é que sabe a verdade. Quando nós éramos jovens adolescentes e mentes pensantes, a gente tinha um pensamento diferente de empreender. Empreender com a música, a música como uma ferramenta para alavancar o turismo. Onde a cultura iria crescer muito e iríamos chamar a atenção do mundo falando sobre Salvador, sobre a nossa Bahia, né? A Bahia tem muitas coisas, muitas culturas diferentes. Eu falo muito de Salvador e do Recôncavo Baiano que para mim é essa cultura que a gente mostra quem somos e ela é responsável por tudo, então, nada morre quando se fala de verdade. Agora, se você fala de indústria ela realmente morre, acaba. Porque a indústria não tem sentimento, ela não tem sonho, o objetivo é grana, são outras coisas fúteis. Então a gente teve muita resistência em chegar com o ritmo, com uma música diferente falando sobre a nossa terra como uma mãe, a Bahia com seus encantos. Esse é o verdadeiro Axé. Para mim morreu quem falou que o Axé está morto.
SDP: Você acha que neste meio há muita disputa, guerra de egos? Para você, os cantores ou cantoras de hoje poderiam ser mais gratos aos que foram precursores do ritmo que fez Salvador ser tão famosa no Carnaval?
Sarajane: Eu acho que cada pessoa está no seu momento. Em qualquer lugar vai existir guerra de ego porque o ser humano é vaidoso, inclusive a vaidade, ela pode te impulsionar, seguir adiante, quando ela for saudável, claro. Eu acredito que essa fala de os cantores de hoje serem gratos a quem veio na frente, bem, eu acho que eu não tenho que cobrar nada de quem tá fazendo sucesso aí, entende? Eu tive o meu momento e eu precisei me afastar por 10 anos. Comecei muito cedo. Fui fazer faculdade. Estudei e fiz outras coisas. Reconheço o meu papel como ativista e como política no sentido cultural. Fui lutar pelo Carnaval de Participação Popular, criei uma instituição para os artistas notórios, a Aban, junto com Jerônimo e André Macedo, que atua na defesa de direitos sociais dos artistas. O carnaval envolve muitos processos de política de tantas outras coisas. Então, a gente lutou muito para que o carnaval tivesse essa conotação que tem hoje, que o artista tivesse os seus blocos; os camarotes que são importantes, como indústria também. Porque, se não fosse isso, essa parte técnica, a indústria, o carnaval seria pobre. Eu acredito que a festa, por si, é rica, porque também envolve um negócio. O que eu acho é que durante o ano, o artista tem que entender que ele tem que dar uma contrapartida para o dinheiro público que foi gasto, para a sua cidade, para o cidadão, para a sua cultura. Agora, claro, se um outro artista apoia o meu trabalho e lembra de mim, isso para mim é ótimo.
SDP: Fale um pouco mais sobre a Fundação ACASA. Como está a fundação? Que público ela atende?
Sarajane: A instituição foi criada exatamente com esse propósito de eu dar uma contrapartida para a sociedade. Eu vim da periferia, uma menina pobre que não tinha nenhum tipo de acesso a nada. A ideia era morar ali, naquela vizinhança e casar com um menino daquele lugar humilde, ter filhos e continuar ali. Mas eu tinha uma visão muito maior e era muito ousada, sabe? Eu quis correr o mundo, conhecer lugares, fazer coisas, me transformar, mostrar que podia ser diferente, que tinha uma coisa grande para eu ver. E aí eu dormia na rua, eu corria por todos os cantos, eu conheci a tudo e vi tudo muito menina, ainda muito criança.
E eu quis fazer balé clássico, eu não pude porque era caro. Eu vim de uma vida onde sofri inúmeros preconceitos, por não ter dinheiro, por não ter nada. Sofri preconceito porque engravidei e criei meus filhos sozinha, ajudei minha mãe e meus irmãos e por aí vai. E aí a minha contrapartida, quando eu consegui algo grande na vida, apesar de ter sofrido, de ter sido roubada, maltratada, humilhada e tudo mais, sofrer assédio e pedofilia, de sofrer tantas coisas, eu afirmei que eu tenho que fazer alguma coisa.
Aí eu consegui uma casa, criei uma entidade para trabalhar com cultura, com educação e transformação do ser humano. São quase 30 anos de obra. Saí há seis anos da presidência, mas retornei agora. Temos a nossa sede própria na Rua do Taboão, número 36-38, onde nós estamos reformando. A Conder (Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia) está nos ajudando. Vamos ter toda uma união de prefeitura e governo em apoio não a Sarajane, mas a comunidade, porque o Taboão é histórico, é um lugar muito rico, mas infelizmente abandonado. Precisamos vê-lo não só como um lugar de vender plástico, né? Embora seja importante, é um lugar histórico, que precisa de investimento; fomentar a cultura, fomentar o turismo. Então é isso que a gente quer.