Por Doris Pinheiro
Hoje é aniversário dela, nossa diva negra, Irma Ferreira, que faz, a partir das 20h, no Teatro Sesc Casa do Comércio, o show “Em Cantos de Òríṣá”.
No show, Irma Ferreira explora a conexão entre música e ancestralidade por meio dos Oríkìs (cantigas), Àdùrás (rezas) e Itans (histórias) dos Orixás do panteão Nagô Vodun. Além disso, interpreta canções brasileiras que exaltam a riqueza da cultura negra. O repertório transita entre o sagrado e o contemporâneo, proporcionando ao público um mergulho profundo na tradição afro-religiosa.
Acompanhada por Luan Badaró (percussão), Ruan de Souza (violão) e Beto Lemos (violoncelo) – Irma traz ao palco as composições de seu álbum “Em Cantos de Òríṣá”, lançado em 2023 pelo selo AJABU! Record. O disco, que teve grande repercussão internacional, ganha novas nuances na apresentação ao vivo. Para tornar a noite ainda mais especial, a cantora carioca Quel fará uma participação especial, viajando do Rio de Janeiro exclusivamente para a ocasião.
Doutoranda em Música, mestre em Performance e graduada em Canto Lírico pela UFBA, Irma Ferreira tem mais de uma década de trajetória artística. Sua atuação vem ganhando notoriedade no Brasil e no exterior, com apresentações ao lado de orquestras renomadas como Orquestra Radio France, Orquestra Jovem do Estado de SP, OSBA, ORSE, OSUFBA e NEOJIBA. Ela conversou com a gente. Um presente de aniversário para ela, um presente para nós também…
Doris Pinheiro – Como sua vida na música começou?
Irma Ferreira – Nossa, eu acho que as minhas primeiras lembranças de vida incluem a música, porque eu lembro que muito cedo, e acredito que esse foi o grande start, quando eu comecei a estudar música, eu ganhei um piano de armário, um piano infantil de armário de um tio, e junto com esse piano, uma coleção de fitas cassete de músicas de concerto e dentro dessas fitas havia algumas obras de Bach e algumas obras de Chopin. A partir disso, a minha infância girou entre ouvir essas músicas, entender e achar aquilo o máximo e brincar com aquele pianinho.
A partir da minha adolescência eu comecei a tocar violino, porque era uma atividade recreativa e eu levei essa brincadeira a sério demais. Acho que basicamente foi assim que começou a minha vida na música, através de uma brincadeira, fazendo parte de todas as etapas de desenvolvimento da minha vida. Infância, escola, até chegar aqui na vida adulta e profissional. Mas eu não tenho familiares da música, nesse sentido eu sou a pioneira que traz a música como profissão, porque meu pai é pedreiro, minha mãe é enfermeira e durante a minha infância era professora.

DP – Como se deu seu encontro com o canto lírico? O mundo das óperas
IF – O meu encontro com o canto lírico é muito inesperado, porque eu sempre fui uma criança muito tímida. E ter um instrumento na frente, ter o violino na frente, era como se fosse um escudo de proteção. A minha relação com o público tinha esse escudo protetor no meio, que era o violino. E eu nunca me vi no palco cantando. Quando eu entrei para o curso técnico de violino no Manoel Novas, eu passei a me apresentar cantando nas atividades do curso. E aí tinha as apresentações, tinha os espetáculos de final de semestre, e sempre que precisava eu estava lá cantando. Mais por uma pressão dos amigos do que porque eu acreditasse que pudesse ser cantora.
Só que na época do vestibular eu tive um problema de coluna. O violino era a minha opção, eu não podia tocar para fazer a prova prática da Escola de Música, e eu não me imaginava esperando mais de um ano para fazer o vestibular. Nesse meio tempo amigos falaram para eu fazer canto. Eu tinha entrado para o projeto Team Música nas Escolas que na época já acontecia na Escola de Música. Nesta mesma época ia ter audição para a Neojiba que estava começando. Então eu tinha duas opções :ir para a Neojibá e tocar violino, e provavelmente estaria ainda hoje no violino, ou ir pra Orquestra da Tim, onde todos os meus amigos estavam, porque eles eram músicos de sopro em sua maioria. Eu resolvi ir pra Tim com os amigos.
Nesse processo de estar na Tim, tinha uma professora de canto, e a minha professora de canto era aluna da graduação de canto lírico da UFBA, e ela disse: “Irma, você leva jeito pra isso”. Professora Antônia, queridíssima. Nós tínhamos um mês para eu me preparar para o vestibular. Já que eu não podia fazer o vestibular para violino, então eu entrei nesse desafio e passei no vestibular. Na época tinha a Associação Lírica da Bahia, isso terminou fazendo com que eu tivesse acesso a muitas óperas. Antes mesmo de entrar para o vestibular, já estudando, ela me chamou para fazer a primeira ópera, que foi o Guarani, no TCA, sob regência do maestro Pino Onis (saudoso Pino Onis). E assim se deu esse meu contato com o mundo da ópera e do canto lírico. Eu tive um problema de coluna e precisava fazer o vestibular e achei o meu apoio para me preparar para isso. E hoje eu tô aqui.

DP – Como é estar em cena com a Ópera dos Terreiros?
IF – A Ópera dos terreiros tem um papel muito importante na minha vida, porque, primeiro, ela fala uma linguagem muito próxima do que eu acredito que é possível na música de concerto, e na ópera, sobretudo. Uma ópera que inclua e conte histórias também nossas, histórias próximas. A ópera é um gênero que surge a partir disso, para contar histórias, histórias sobre o povo, seja as óperas de Mozart, seja a ópera de Verdi, Puccini, elas contam histórias. E por que não contar histórias próximas? Então a Ópera dos terreiros, ela é importante nesse sentido, de me possibilitar contar uma história que é tão, tão do meu povo.
Mas antes ainda da Ópera dos terreiros, vem a Lídia de Oxum, que foi a minha primeira protagonista aqui em Salvador, a ópera de Ildazio Tavares e Lindeberg Cardoso. E a Lídia de Oxum foi aquele momento que eu disse “é esse caminho que eu quero”, porque apesar da ainda ter muita coisa que precisa ser revista, por ter sido uma ópera escrita 30 anos atrás, – com pensamentos e questionamentos que hoje não cabem, que na verdade que nunca couberam, mas que hoje a gente não pode mais aceitar -, foi uma ópera que acendeu uma luz nesse sentido da possibilidade de fazer e de tratar temas mais próximos, claro. A gente ainda precisa de muito tempo pra chegar num lugar ideal, mas já foi um pontapé. E sendo a minha primeira protagonista aqui em Salvador, no palco do Teatro Castro Alves, tem um lugar muito especial pra mim.
DP – E com Amor Azul?
IF – Amor Azul é uma grande realização, porque foi uma ópera que me proporcionou estar no palco com Gil, num dos palcos mais importantes da música de concerto de Paris, que foi a sala da Rádio France, com uma super orquestra e cantando em português, isso ainda com a Gop, que é uma personagem secundária. E também me possibilitou estar aqui em Salvador, na Concha Acústica, com a concha repleta de pessoas, fazendo a protagonista Rada. Então é uma ópera que também tem um lugar muito especial, por tudo isso que representa, pelo acesso a Gil, pela possibilidade de fazer uma ópera tão emblemática que fala do amor, mas não um amor raso, o amor em suas diversas camadas e diversas possibilidades.
DP – Como está caminhando sua carreira internacional?
A minha carreira internacional vem crescendo muito, porque para além das óperas, que já me levaram a alguns lugares, a minha relação com repertório afro-religioso e o CD têm me levado a caminhos que a ópera ainda não tinha chegado. Por exemplo, o selo, o álbum “Em Cantos de Òríṣá”, lançado lá em 2023, ele foi lançado por uma gravadora da Suécia, que abraçou esse trabalho. Então hoje o álbum está sendo vendido nas lojas de Paris. Você chega em Paris e você consegue comprar o CD físico “Em Cantos de Òríṣá”.
O retorno das pessoas vem de todas as partes do mundo, então eu espero conseguir ampliar isso. Isso vem acontecendo muito naturalmente. O trabalho vem acessando outros caminhos. Ano que vem, turnê para fora, Europa, África, então a carreira internacional vem caminhando bem e a partir de um lugar com muito respeito e credibilidade, tanto do público amante da música, quanto dos meus pares, as pessoas da profissão, músicos, maestros, então eu estou muito feliz com esse trabalho, com o caminho que a minha carreira tem tomado.

DP – Mas você canta também com orquestras, faz shows de música popular
IF – A minha história, ela é muito diversa, a minha história musical, né? Eu começo com a música de concerto através do violino, aí eu entro na Orquestra Brasileira de São Salvador, que era o projeto de música nas escolas, já cantando, tendo contato com o repertório brasileiro e o repertório popular, e logo depois eu começo a cantar na Orquestra Fred Dantas, que ampliou muito as minhas possibilidades como cantora, porque eu assumi o papel numa orquestra Big Band, e esse papel me deixa responsável por conseguir dar conta de um repertório. Um relatório muito vasto.
Na orquestra, a gente cantava desde o jazz até os axés dos anos 90. Então foi aí que eu aprendi a lidar com a pluralidade do palco, lidar com os imprevistos e com um público muito mais perto do que na ópera. E isso foi levado para a ópera. Essa é uma característica do meu trabalho. Mesmo eu estando nesse lugar de solista, protagonista, eu estou sempre muito próximo do meu público, o que foi me dado através da música popular e das orquestras populares aqui de Salvador.

DP – E você é professora também e pesquisadora. O que pesquisa?
IF – E eu também sou professora e pesquisadora. A minha caminhada artística foi feita paralela a minha caminhada acadêmica. Enquanto eu estava em turnê com o Gil e com o NOP – Núcleo de Ópera da Bahia e gravando CD, eu estava terminando o mestrado, iniciando o doutorado, procurando fazer o concurso para ser professora de canto da universidade. Hoje eu estou professora substituta de Canto Lírico da UFBA e é um caminho que eu levo, que eu trilho em paralelo. São caminhos que coexistem.
Então, mesmo sendo muito puxado, eu tento manter as duas coisas, porque eu venho de uma família de professor. Minha mãe foi professora por muitos anos, então a educação sempre teve, a educação e a instituição de ensino, sempre tiveram importância. Não é só educação. Você estar dentro da universidade, você estar fazendo a pós-graduação, você estar lecionando, sempre tive isso muito vivo na minha vida. Então isso caminha em paralelo com o que com todas as outras atividades, mesmo sendo uma missão bem difícil.
E a minha pesquisa hoje, ela gira em torno das vivências e formação dos cantores líricos pretos no Brasil. Então eu vou tratar das questões raciais, dos atravessamentos que esses cantores são submetidos nesse processo de estar no palco fazendo essa música que ainda hoje é muito distante, mesmo com iniciativas como a da Ópera dos Terreiros, como a da Lídia de Oxum, como as montagens que o Núcleo de Ópera da Bahia vem fazendo, ainda é um processo muito, muito difícil. Estar dentro do canto lírico, estar dentro da música de concerto, sendo artista preto. O sistema do racismo e da branquitude ainda anulam e inviabilizam muito essas trajetórias, então a minha pesquisa gira em torno disso.

DP – Como foi realizar o seu álbum de estreia Em Cantos de Òrìṣà (2023) ?
IF – O lançamento do Encanto de Orixás foi a culminância de um projeto, de uma pesquisa que já acontecia muito antes, porque o “Em Cantos de Òríṣá” surge, ele nasce de fato no início da pandemia, lá em 2020, meados de 2020, quando eu gravei um vídeo e postei no Instagram. E a partir desse vídeo vieram muitas, muitas devolutivas, positivas, falando sobre como aquela música processava aquelas pessoas naquele momento da pandemia. Então a partir desse vídeo eu passei a gravar um vídeo por dia, o que totalizou 138 vídeos, além de outros que foram gravados esporadicamente. Mas por 138 dias eu postei um vídeo por dia cantando para um orixá.
E essas cantigas foram escolhidas a partir de uma pesquisa que já existia, uma pesquisa que envolve a mim, o historiador Yogan Everton Neves e a minha irmã e a lalorizá Angélica Ferreira. Então foi a partir dessa pesquisa que surgiu a série de vídeos “Em Cantos de Òríṣá” e a partir da série de videos surgiu o “Em Cantos de Òríṣá”, o CD, o álbum, né? E estrear esse trabalho foi ver materializada essa dedicação que se iniciou nos vídeos, na pesquisa e na aceitação positiva do público, as respostas ao álbum, a música, a esse processo que exalta a espiritualidade, a ancestralidade, mas que também, a partir de um silêncio, de um velho materializado, foi bem mágico.

DP – O trabalho tem uma forte ligação com a espiritualidade. Como é isso para vc?
IF – O trabalho tem uma forte relação com a espiritualidade, porque inicialmente, como eu falei, como começou a série de vídeos, o trabalho não tinha uma ideia de ser um produto artístico. Era um processo de conexão meu com essa espiritualidade que eu resolvi abrir para o público, mas não foi num lugar de que isso viraria um projeto artístico, sabe? Então, o álbum sou eu, o álbum é o que eu sou, o trabalho é o que eu sou. O trabalho representa muito mais do que a irmã artista, ele representa a irmã em sua totalidade, em sua completude. Em sua dedicação para com a espiritualidade, para com o candomblé.
Então, levar isso para o público, saber que a minha ancestralidade está sendo vista dessa forma, é um processo de me despir mesmo e de dizer aqui, essa sou eu e eu fico muito feliz que isso é bem recebido e que as pessoas estão sendo acessadas em lugares muito profundos, que também é sem máscaras, sem segundas peles. E uma recepção que acessa lá dentro, acessa a alma de quem houve. Então, eu fico muito feliz que essa ligação com a espiritualidade consiga acessar o público nesse lugar que me acessou quando eu comecei a fazer a série de vídeos, quando eu comecei a pesquisar as cantigas e quando a gente gravou o álbum.
DP – E agora o show de mesmo nome?
IF – O show “Em Cantos de Òríṣá” é exatamente isso que o álbum diz, ele acessa e me acessa e eu espero que consiga encontrar a plateia nesse mesmo lugar de quem se permite sentir e seja a de onde for, se sentir a partir do seu íntimo. Então, eu tô muito feliz que o show esteja acontecendo agora com as pessoas que estão participando, o Juan de Souza, o Luan Badaró, o Beto Lemos, com a participação da Quel, com a participação do Yuri Passos, com a participação da Erika de Paula, que também vai estar tocando. Então, é um show que vem me fazendo ter muitos silêncios para entender, para aceitar e para sentir o que é possível em cada momento que ele acontece, em cada ensaio, em cada audição do repertório. É isso, é só entregar, se permitir e aceitar o que vai vir, que eu imagino que seja muito, muito bonito e muito especial.
DP – O que move você na vida?
IF – O que me move na vida é difícil, mas eu acho que, em uma única palavra, a arte me move. A arte me move e a arte é num lugar muito amplo. A arte que acessa a espiritualidade, a arte que acessa a racionalidade também, a arte que me possibilita visualizar possibilidades. Então, eu acho que consigo responder essa pergunta a partir disso, que a arte é o que me move.