Criador de personagens icônicos da cultura pop, como Rê Bordosa e Bob Cuspe, o cartunista passa a integrar o acervo de Iconografia do IMS, que já conta com nomes como J. Carlos, Millôr Fernandes e Claudius
Dono de um humor ácido e um traço inconfundível, o cartunista Angeli transita com desenvoltura entre a contundente charge política e a corrosiva crítica de costumes. Personagens como Rê Bordosa, Bob Cuspe, Wood & Stock e os Skrotinhos, estrelas de uma galeria em que sempre cabia mais uma criação genial, foram companheiros iconoclastas e politicamente incorretos de gerações que viveram nos anos 1970, 80 e 90. Agora, uma parte desta importante produção chega ao Instituto Moreira Salles para compor a Coleção Angeli. Com a aquisição, o IMS passa a ter direito de divulgar a obra de Angeli. Já os direitos autorais permanecem com o cartunista.
A Coleção Angeli será formada por 2.100 itens. São 700 charges, 700 tirinhas e 700 ilustrações originais, acompanhados, cada conjunto, por seus esboços — extremamente meticuloso, Angeli sempre buscou o apuro em cada desenho, muitas vezes jogando fora projetos já prontos para reiniciá-los do zero. Poder acompanhar o processo de criação a partir dos traços iniciais é algo valioso para pesquisadores e admiradores da sua obra. Além desses originais e estudos, o IMS também vai receber um grande número de outros trabalhos digitalizados.
Essa produção virá para o IMS em etapas. O primeiro grupo, as charges, acaba de ser incorporado ao acervo. No fim deste ano, o IMS recebe as tirinhas e, em meados de 2025, as HQs e as ilustrações. A seleção foi feita pelos profissionais do IMS, tendo como interlocutora a mulher do cartunista, a arquiteta e designer gráfica Carolina Guaycuru. Angeli esteve inicialmente à frente do processo, mas há cerca de quatro anos recebeu o diagnóstico de uma doença neurodegenerativa. Em abril de 2022, anunciou sua aposentadoria, encerrando aos 65 anos uma carreira longeva e ultraprodutiva; só na Folha de S.Paulo, sua casa por quase cinco décadas, estima-se que tenha publicado mais de 20 mil charges e tirinhas — a tira Chiclete com Banana fez tanto sucesso que ganhou vida própria numa HQ de mesmo nome, elevando Angeli a uma celebridade pop.
“O acordo com o IMS vai permitir que a obra dele seja bem acomodada e preservada para as futuras gerações”, diz Carolina. “Angeli acompanhou muito a mudança comportamental no país, começou a produzir durante a ditadura, continuou depois da redemocratização. Suas charges e tirinhas refletem toda essa transformação, tanto política como de comportamento e cultural. E, apesar de ter sido sempre muito organizado com o seu acervo, uma família não tem como cuidar disso tudo e ainda tornar acessível para o público”, observa ela.
Filhos do casamento anterior do cartunista, com a jornalista e radialista Maria de Aguiar, o produtor musical e sonoplasta Pedro Angeli e a publicitária Sofia Angeli consideram empolgante a chegada da Coleção Angeli ao IMS. “É muito curioso porque nosso pai é um punk, um underground, uma pessoa que nunca estaria num lugar como o IMS, uma instituição que preserva arte”, diz Sofia, falando também em nome do irmão. “Mas há um tempo atrás começou a entender a importância disto, da preservação, principalmente. É uma obra muito importante, única, que fala da história política e social do Brasil. Ficamos felizes em saber que uma parte dela vai estar bem guardada, bem cuidada, e principalmente que vai estar exposta para que gerações que não o conhecem possam conhecer, saber quem é Angeli e quem o Angeli retratou ao longo dos anos na sua obra.”
A virada de Angeli rumo a uma preservação profissional aconteceu com a ida para o IMS do acervo de Millôr Fernandes, que ele tem como grande referência e inspiração, e, principalmente, durante a montagem, em 2018, da exposição Millôr: obra gráfica, no IMS Paulista. Cocuradora da exposição e coordenadora de Iconografia do IMS, Julia Kovensky conta que ele acompanhou de perto a montagem e, ali, teria começado a pensar no futuro de sua produção: “O Angeli guardou cuidadosamente a maior parte do que produziu, de uma forma metódica e organizada. Isso pode parecer contraditório para seus fãs, mas, vendo o acervo que formou, é evidente a preocupação com sua conservação. Mais tarde, ele transmitiu o desejo, e a preocupação, de que sua obra ficasse conservada e acessível ao público, que integrasse um museu.”
À medida que as obras forem chegando ao IMS, passarão por etapas de conservação, serão catalogadas e digitalizadas, para então começarem a ser disponibilizadas para pesquisas e divulgadas pelo IMS, de modo que o público tenha amplo acesso a elas e ao que retratam.
“Angeli é um cronista dos últimos 45 anos do Brasil, um cronista como poucos existem”, diz o jornalista André Barcinski, que está preparando um material biográfico sobre o cartunista para ser lançado em livro organizado por Carolina e pelo editor André Conti, amigo da família. “Ele tem um lado político, mas é muito envolvente ouvi-lo falar da cultura dos anos 1970 e 80 que viveu tão bem, principalmente a cultura alternativa paulistana. Ele criou uma galeria de personagens muito fascinantes, ver como os desenvolveu é o que mais me atrai.”
“Estamos lidando com um dos maiores artistas do século XX, e não só do Brasil. O Angeli só não penetrou mais em outras regiões do mundo porque tem a barreira do português, se fosse americano ele seria o Robert Crumb”, diz o cartunista Adão Iturrusgarai, o “quarto amigo” do grupo Los Tres Amigos. Formado por Angeli, Laerte e Glauco inicialmente de forma despretensiosa, acabou virando tirinha de sucesso na revista Chiclete com Banana.
A cartunista Laerte, uma das mais importantes parceiras de Angeli, chama a atenção para a riqueza visual de sua produção. “Os trabalhos dele, desde os primeiros, são de uma elaboração plástica bastante grande. Os traços, as cores que começou a usar, isso é muito visível para mim.” Ela também observa a importância que Angeli teve na vida de toda uma geração. “O trabalho do Angeli é fortemente influenciador de comportamentos, ideias, atitudes e ações. É muito comum as pessoas dizerem o quanto as histórias do Angeli fizeram parte da sua formação em épocas como a adolescência e a juventude. Isso tudo é de uma importância absurda. É muito legal saber que o IMS vai poder ser o pivô dessa movimentação de recolocar esse material todo em circulação.”
A chegada de Angeli ao Instituto Moreira Salles constitui uma peça importante para o panorama histórico que o IMS vem constituindo em seu acervo de Iconografia sobre o universo das artes gráficas e da imprensa ilustrada do século XX no Brasil — o IMS já guarda os acervos de J. Carlos, Millôr, Hilde Weber, Claudius e Cássio Loredano. “E, se formos mais atrás, temos um álbum do pintor Manuel de Araújo Porto-Alegre, considerado o primeiro a publicar caricaturas na imprensa brasileira”, observa Julia Kovensky.
“Um dos nossos objetivos, dentro da ideia de iconografia, é trabalhar com esses grandes criadores de um imaginário, de uma cultura visual. O Angeli, junto com outros de sua geração, mas principalmente ele, traduziu graficamente a cidade de São Paulo. Além de acompanhar a política, os costumes e o desenvolvimento da cultura do século XX, ele criou uma obra visualmente tão forte que se mistura com a própria ideia que as pessoas têm da cidade. É um dos mais marcantes artistas gráficos do país”, diz ela.
Sobre Angeli
Arnaldo Angeli Filho nasceu em 31 de agosto de 1956 na Casa Verde, bairro na Zona Norte de São Paulo, numa família de imigrantes italianos. O pai era funileiro, e a mãe, costureira. Depois de repetir três vezes a quinta série e ser expulso do colégio, aproximou-se do rock e da cultura underground. Aos 14 anos, emplacou um desenho na extinta revista Senhor, publicação que foi um marco no jornalismo cultural brasileiro.
Em 1973, fez sua primeira colaboração para o jornal Folha de S.Paulo. A chargista Hilde Weber, alemã radicada no Brasil e que trabalhava em O Estado de S. Paulo, recomendou-o ao ex-marido, o jornalista Claudio Abramo, então editor da Folha. Dois anos depois, seria contratado para uma prolífera parceria de quase cinco décadas. No jornal, construiu uma carreira brilhante, publicando simultaneamente charges políticas e a tira Chiclete com Banana, onde surgiram personagens icônicos, como Rê Bordosa e Bob Cuspe. Chiclete com Banana se tornaria revista independente em 1985, chegando a atingir tiragem de 110 mil exemplares. Nela foi lançado o projeto Los Tres Amigos, realizado em parceria com Laerte e Glauco, também cartunistas.
Desenhista compulsivo, os dois fechamentos diários em jornal nunca foram um problema para ele. “A prancheta é a minha casa”, afirma num dos vídeos produzidos para a Ocupação Angeli, realizada em 2012 no Itaú Cultural, em São Paulo. “Eu não consigo dormir. Eu não consigo ficar muito tempo longe dela. E isso é meio doente mesmo. Eu até almoço e janto em cima da prancheta. Eu preciso da minha prancheta. Eu não consigo tirar férias porque não posso levar minha prancheta.”
A obra de Angeli foi celebrada em diversas plataformas. Além da Ocupação Itaú, em 2012, em 2023 foi homenageado na Cartoon Xira, em Portugal, com a exposição individual 50 anos de humor. Três coletâneas de tirinhas foram lançadas pela editora Companhia das Letras: Toda Rê Bordosa (2012), Todo Bob Cuspe (2015) e Todo Wood & Stock (2020). No audiovisual, o cineasta Cesar Cabral dirigiu o curta Dossiê Rê Bordosa (2008), a série Angeli The Killer, com duas temporadas, e o longa-metragem Bob Cuspe — Nós não gostamos de gente (2021) — este premiado em 2022como melhor animação em longa-metragem no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. O próprio Angeli é retratado no curta documental Angeli 24 horas (2010), de Beth Formaggini. No teatro, o grupo paulistano Parlapatões estreou em 2013 o espetáculo Parlapatões revistam Angeli, texto de Hugo Possolo e Angeli baseado na obra do cartunista, com trilha sonora de Branco Mello.
Em abril de 2022, aos 65 anos, Angeli anunciou sua aposentadoria, provocada pelo avanço de uma doença neurodegenerativa.