Parte 1
No final do século XV, muitas nações europeias se lançaram a novos mundos, por terra e por mar. O domínio efetivo e a colonização/exploração demandaram-lhes uma mão de obra específica, que pudesse erguer fortificações, pontes, abrir estradas e construir cidadelas muradas, afinal os povos originários desses lugares deveriam se render aos novos “donos do poder”. Ao lado da ampliação geográfica do mundo conhecido, novas invenções, como a imprensa, e a renovação que o Renascimento trouxe, tanto ao associar as artes plásticas e as ciências, quanto à imersão no legado greco-romano nos diversos campos da atividade humana, promoveram um desenvolvimento técnico nunca visto no Ocidente. A visão humanista da Renascença fundiu o artista e o cientista em muitos aspectos. A interação entre a arquitetura, a pintura e a escultura exigiu-lhes um profundo conhecimento da Geometria e da Matemática, e a imprensa lhes permitiu difundir suas ideias não apenas na obra pronta, mas na obra escrita, desenhada, esquematizada. Conceitualmente, este foi o combustível que incentivou a produção de manuais e tratados, prática que permaneceu até a primeira metade do século XX em vários países.
É fato que as cidades italianas foram o berço do Renascimento na Europa. O imortal italiano Leonardo da Vinci, que se destacou como cientista, pintor, escultor, arquiteto, engenheiro, inventor, matemático, poeta e músico, é o maior exemplo de um pensador renascentista. Uma das suas obras mais conhecidas é o homem vitruviano. Vitrúvio, engenheiro militar romano a serviço do imperador Otávio Augusto César, entre 33 e 14 a.C., escreveu o tratado de arquitetura mais antigo que se tem conhecimento. Seu texto, De Architectura Libri Decem, foi reapropriado pelos humanistas, influenciando fortemente os homens de letras e artistas renascentistas (LAMERS-SCHÜLTZE, 2003). Entretanto, o texto mais marcante de Vitrúvio foi aquele exposto no Livro III, que, interpretado por vários arquitetos do Renascimento, gerou o homem vitruviano. As ilustrações, assinadas por da Vinci (1490), da Verona (1511), Cesariano (1521) e Scamozzi (1615) são a representação gráfica do texto que trata das proporções do corpo humano criando uma analogia com a arquitetura.

O Renascimento trouxe uma nova metodologia de aprendizagem pautada num processo de argumentação, tanto oral quanto escrita, o que permitiu a produção dos tratados de arquitetura para orientação e formação profissional. Redigidos de forma didática, eram acessíveis aos amadores esclarecidos e à burguesia, tornando, assim, o arquiteto uma pessoa pública, voltada à publicação e à difusão do seu saber (LAMERS-SCHÜLTZE, 2003). Do domínio quase exclusivo dos construtores góticos, a arte de construir tenta, por meio da escrita e da representação gráfica, uma universalização. Uma universalização, porém, da linguagem e da forma, não da técnica de construir.
Leon Batista Alberti (1404-1472), humanista nascido de uma família rica da nobreza de Florença, não era arquiteto de formação, mas foi responsável pelo primeiro estudo crítico sobre a obra de Vitrúvio. Ao retomar as descrições vitruvianas, consideradas de difícil entendimento, Alberti estabeleceu um sistema de classificação onde expôs, de maneira clara, as variações dos capitéis, entablamentos e bases presentes nos monumentos (partes de um edifício da arquitetura grega e romana, também chamada de clássica). Sua principal obra, De Re Aedificatoria (1442-1452), levou dez anos para ser concluída. Nela, apesar de não possuir ilustrações, a valorização da Geometria e do círculo como a forma perfeita estão presentes.

Sebastiano Serlio (1475-1553/1555), pintor e arquiteto nascido em Bolonha, não deixou um tratado acabado, mas um conjunto de nove escritos sobre a arte de construir que foram publicados separadamente a partir de 1517, sem qualquer ordem, parte em Veneza, parte em Paris e em Lyon. Serlio possibilitou por meio dos seus livros ilustrados que o debate sobre os problemas arqueológicos e a arquitetura se tornasse parte de uma formação geral, da cultura de uma época que se estendeu até o século XVIII. Contemporâneo de Miquelângelo, foi responsável pela primeira compilação de elementos e componentes arquitetônicos, totalmente ilustrados e em escala. Seus livros foram amplamente empregados pelos italianos, franceses, ingleses, alemães e flamengos e eram considerados um dicionário ilustrado de arquitetura. Após sua morte foi publicada a obra completa, que foi chamada de Tutte l’opere d’architettura et prospettiva.

Pietro Cataneo (aprox. 1510-1571), engenheiro militar, arquiteto e teórico da arquitetura, escreveu sobre fortificação de castelos e de cidades no território de Siena. Sua obra, A Arquitetura de Pietro Cataneo, publicada em Veneza no ano de 1554, estimulou o surgimento de novos tratados que falavam desses temas. Cataneo tornou-se leitura obrigatória entre os arquitetos portugueses desde o século XVI, influenciando, principalmente, a arquitetura religiosa nos territórios conquistados na Índia. O modelo das igrejas em cruz latina, da fachada dividida em três quadros, insinuando uma construção trinavada e a austeridade das propostas, insinuam o chamado “estilo chão”, amplamente empregado em Portugal (CÔRTE-REAL, 2001).

Os tratados também apresentavam propostas para novas cidades, com o intuito de criar formas e estratégias para a proteção da urbe, como por exemplo, a cidade veneziana de Palma Nova, construída em 1593. O projeto de Vincenzo Scamozzi (1548-1616) cria uma cidade de forma ideal, totalmente geométrica. Sua obra, L’idea della architectura universale, é considerada o último tratado de arquitetura do Renascimento. Ele concebe a arquitetura como uma ciência universal orientada por regras matemáticas e geométricas, que definem a relação entre todas as partes do edifício arquitetônico. O Livro II do seu tratado contém o projeto de uma cidade ideal, exercício de Geometria aplicada aos princípios da engenharia militar que já despontava na Europa como uma grande área de conhecimento.

França, Inglaterra, Alemanha, Países Baixos e Espanha tiveram tratadistas renomados nesse período. Esses livros, a maioria deles rica em desenhos e detalhes técnicos, foi de suma importância para uma sociedade europeia com um grande contingente de analfabetos. Divulgava-se não apenas um estilo ou tendência de arte e arquitetura, mas os princípios técnico-científicos norteadores da arte de projetar e construir edificações e cidades.
REFERÊNCIAS
CÔRTE-REAL, E. O Triunfo da Virtude. As origens do desenho arquitectónico. Lisboa: Livros Horizonte, 2001.
LAMERS-SCHÜLTZE, P. (Coord.). Teoria da Arquitetura do Renascimento até os nossos dias. Köln: Taschen, 2003.
MAROCCI, G. V. P. O Iluminismo e a urbanística portuguesa: transformações em Lisboa, Porto e Salvador no século XVIII. 2011. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.