Parte 2
Os tratadistas italianos do Renascimento influenciaram na formação dos profissionais
da arquitetura e da engenharia em toda a Europa. No século XVI, os portugueses Francisco de
Holanda e Antonio Rodrigues gozaram do privilégio de uma bolsa de estudos para a Itália, de
onde absorveram fortes características do espírito humanista renascentista e tentaram repassá-
lo aos seus contemporâneos. Tudo indica ter sido Holanda um autodidata e que ao partir para
a Itália, com apenas 20 anos (1538), já havia adquirido uma significativa bagagem cultural e
prática nas técnicas pictóricas.
Sua viagem aconteceu num período em que na arte portuguesa estava se processando a substituição do Gótico e do Manuelino pela arte proveniente da península italiana, adotada oficialmente, a partir de 1540, por D. João III (VILELA, 1982). Foi Holanda quem levou a obra de Dürer (De proportione) e o tratado de Serlio para Portugal. Concluiu o Tratado da Pintura Antigua em 1548, em Lisboa, obra que se compõe de dois livros que se complementam e tratam do panorama artístico europeu. Em Portugal foi criada em 1562 a Escola Particular dos Moços e Fidalgos (Escola do Paço da Ribeira) de importância incontestável para a definição do perfil do arquiteto e do engenheiro militar em
Portugal.
Antonio Rodrigues (1520-1590) começou sua formação profissional no canteiro de
obras de Tomar, sendo ampliada no intercâmbio com a Itália, onde esteve em viagens de
estudos, no reinado de D. Sebastião, que intensificou a contratação de profissionais italianos
da arquitetura e da engenharia militar. Pompeu Arditi e Tommaso Benedetto da Pésaro,
Filippo Terzi e Pietro Vignarelli de Urbini foram alguns dos italianos contratados, e Antonio
Rodrigues, Baltasar de Arruda, João Baptista Lavanha e Baltasar Álvares foram portugueses
enviados ao intercâmbio e que reforçaram a consolidação de um novo profissional em
Portugal, o engenheiro militar (BUENO, 2003).
A partir de 1573, Rodrigues assumiu as aulas no Paço da Ribeira, período em que iniciou a escrever o Tractado de Arquitectura (duas versões incompletas, datadas de 1576 e 1579) com o intuito de servir de suporte à Lição de Arquitectura Militar, sob sua responsabilidade. O tratado de 1576 versa sobre Arquitetura Militar, Geometria, Trigonometria e Perspectiva. O segundo, de 1579, pode ser considerado uma nova versão do primeiro, com mais ênfase na Geometria. Seus tratados foram utilizados como apostilas das Aulas do Paço da Ribeira. Questões teóricas e práticas eram colocadas aos alunos como proposições e possibilitavam a disseminação dos conhecimentos adquiridos em sua estada na Itália (BUENO, 2003).
No século XVII, Matheus do Couto e Luís Serrão Pimentel foram as principais
referências e atuaram em um momento complicado, que foi o período da Restauração. Serrão
Pimentel foi o precursor dos novos profissionais, e o principal nome referendado pelas novas
Aulas de Fortificação e Arquitetura Militar instituídas a partir de 1644, na metrópole, e de
1696 nas colônias. Matheus do Couto aparece como partidista da Aula do Paço da Ribeira em
1616, e em 1631, já lecionando arquitetura, escreveu o Tractado de Arquitectura. O tratado é
dividido em quatro livros, incluindo um que versa sobre perspectiva, que funcionavam como
apostilas para as aulas de arquitetura. No Livro I o autor cuida da escolha do melhor lugar
para edificar cidades, vilas e lugares, tema que se repete em outros tratadistas. Bolonhês de
nascimento, foi o primeiro arquiteto português a sistematizar uma Teoria das Ordens, com
clara influência da obra de Serlio, e apresentar uma dimensão teórica condizente com as
discussões coetâneas (BUENO, 2003).
Luis Serrão Pimentel (1613-1678) foi o primeiro lente da Aula de Fortificação e
Arquitetura Militar, criada por D. João IV em 1641, logo após a Restauração. Sua formação
em Cosmografia possibilitou o desenvolvimento da Cartografia, da Corografia e da
Topografia, conhecimentos estratégicos para a Coroa portuguesa. Em 1680 foi publicado seu
livro Methodo Lusitanico de Desenhar as Fortificaçoens Regulares, & Irregulares, Fortes de
Campanha, e outras Obras pertencentes a Architectura Militar, uma síntese da sua atividade
de docência por mais de 30 anos. A maior contribuição é que o seu tratado trouxe a Portugal
as inovações propostas pelos engenheiros militares franceses e holandeses (CARVALHO,
2000). Assim, somaram-se aos conhecidos estudos e tratados do século XVI, os novos
tratados de Antoine de Ville (1639), Adam Fritach (1642), Samuel Marolois (1615, 1628) e
Blaise François Pagan (1645).
O século XVIII iniciou com o brilho do reinado de D. João V e com a ampliação da
rede de Aulas Militares de formação dos já gabaritados engenheiros militares portugueses. O
estrangeirado Manuel de Azevedo Fortes ainda é considerado o maior nome dos tratadistas
portugueses. Ele representa os homens letrados influenciados pelo Iluminismo, e sonhavam
em promover uma sociedade ilustrada. Fortes escreveu diversas obras das quais se destacaram
o Tratado do modo facil e o mais exato de fazer as cartas geographicas (1722), Lógica
racional, geométrica e analytica (1744) e o Engenheiro Portuguez (1728, 1729), sua mais
conhecida obra. O Tratado sobre Lógica foi o primeiro em língua portuguesa. O Engenheiro
Portuguez, obra dividida em dois volumes, foi elaborado para orientar a formação dos
engenheiros e demais oficiais militares. O primeiro volume, Tomo I, é um compêndio de
Geometria Prática, baseado nos mais diversos tratadistas, visando à instrução desses profissionais com o que havia de mais recente sobre a arte de fortificar.
No prólogo, Fortes expõe que a obra não foi elaborada para o público em geral, pois nasceu dos seus estudos, passados em apostila para “servir de Methodo aos Praticantes da Academia Militar e que estava sendo estruturado, por encargo do Rei, para publicação.” (FORTES, 1728)
Os pontos comuns entre os livros de Serrão Pimentel e Fortes é que eles apresentam o
estudo da Geometria Prática e sua complementação, bem como o estudo de uma tipologia
específica de edificação, a das obras de defesa. A produção teórica está voltada para a
engenharia militar e para os fundamentos da Geometria necessários à formação dos
profissionais na Arte da Guerra. O esforço empreendido por Serrão Pimentel e mais ainda por
Fortes foi devotado a uma racionalização da representação gráfica buscando documentar, de
forma mais precisa, o construído e o pensado (MAROCCI, 2011). Desse modo, acreditavam
promover o domínio de um conhecimento (planejar, projetar, executar) antes delegado a
poucos, mas de total importância para o efetivo domínio do território português, seja no
continente, seja nas diversas colônias.
A racionalização da representação gráfica não significou uma padronização dos
projetos em qualquer nível. Efetivamente buscou-se o domínio de uma linguagem como
componente fundamental para o sustento de uma concepção nova de compreensão da
sociedade portuguesa (MAROCCI, 2011). Fortes declara que a valoração do indivíduo está
diretamente ligada à sua importância para a concretização dos objetivos do Império colonial
português. Portanto, não depende diretamente da sua origem, mas, sim, da sua formação
intelectual. É uma concepção que está sincronizada com o pensamento de outros homens
letrados por toda a Europa.
A influência desses tratadistas na estruturação de um Brasil urbano se fez pela
formação dos engenheiros militares nas principais vilas cidades brasileiras no período
colonial.
REFERÊNCIAS
BUENO, B. P. S. Desenho e Desígnio: o Brasil dos engenheiros militares (1500-1822). 2001.
Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2003.
CARVALHO, Luís Serrão Pimentel, o Método Lusitano e a Fortificação. 2000.
Dissertação (Mestrado em Teoria da Arquitetura) – Universidade Lusíada, Lisboa, 2000.
FORTES, M. de A. de. O Engenheiro Portuguez. Lisboa Occidental: Officina de Manoel
Fernandes da Costa, Impressor do Santo Officio, Tomo I, MDCCXXVIII.
MAROCCI, G. V. P. O Iluminismo e a urbanística portuguesa: transformações em Lisboa,
Porto e Salvador no século XVIII. 2011. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) –
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.
VILELA, J. S. Francisco de Holanda – Vida, Pensamento e Obra. Lisboa: Instituto de
Cultura e Língua Portuguesa/Ministério da Educação e Ciência, Biblioteca Breve, v. 62, 1982.