“Aprender a Sonhar” fala sobre o poder transformador das cotas
A história da quilombola que virou médica tem emocionado muitas pessoas que assistem Aprender a Sonhar, primeiro longa-metragem de Vítor Rocha, em exibição nos cinemas de todo o país. A obra chega em um momento emblemático: os 20 anos da política de cotas na Universidade Federal da Bahia (UFBA), implantadas em 2005 após aprovação no ano anterior.
Para celebrar essa conquista coletiva, o Cinema da UFBA, no Vale do Canela, recebe um ciclo de sessões especiais que começa nesta segunda-feira, 20 de outubro, às 18h30, com a presença do professor de Direito Samuel Vida e de jovens das comunidades de Paraguari (Suburbana) e do Alto das Pombas — territórios que, como os personagens do filme, traduzem na prática a potência transformadora do acesso à universidade pública.
O filme – Aprender a Sonhar está em cartaz nos cinemas e conta a trajetória de Marina Barbosa, do quilombo à medicina, assim como de outros quatro jovens cotistas. Por trás do jaleco branco e do crachá de médica, há uma história enraizada em terra vermelha, farinha, fé e resistência, contada no filme dirigido por Vítor Rocha.
Marina Barbosa nasceu e cresceu no quilombo de Quenta Sol, no município de Tremedal, no sudoeste da Bahia, a poucos quilômetros de Vitória da Conquista. Desde pequena, observava a mãe cuidar da saúde da família com o que a terra dava — raízes, folhas e rezas.
Mas foi apenas quando leu, em uma revista, uma reportagem sobre o poder curativo das ervas que despertou um desejo até então sem nome: queria entender aquele poder. Queria ser médica — mesmo sem saber exatamente o que era “medicina”.
A trajetória de Marina é um dos fios condutores do longa-metragem baiano que está em cartaz em Salvador e outras cidades. O obra entrelaça ainda as histórias de Nadjane Cristina, moradora de ocupação formada em Serviço Social, Ana Paula Rosário, oriunda de uma comunidade de Itabuna-BA e pesquisadora de sociologia, e Taquari e Tamiwere Pataxó, casal formado em direito, na UFBA, e que mantém os laços culturais com seu povo em Coroa Vermelha e na Reserva da Jaqueira, em Porto Seguro-BA.
Mulher árvore
O destino ganhou forma simbólica quando um amigo deu a Marina, ainda jovem estudante, uma muda de árvore e disse: “Você vai ser o que fizer dessa árvore.” Marina plantou a muda ao lado da casa dos pais, no coração do quilombo.
A planta cresceu junto com ela, tornando-se um elo invisível entre mãe e filha. Quando Marina adoecia, a árvore murchava; quando se fortalecia, a planta florescia. Era como se ambas compartilhassem o mesmo pulso vital.
Mas o caminho até o diploma foi árduo. Ao ser aprovada no vestibular da Universidade Federal da Bahia, Marina partiu para Salvador com apenas o dinheiro da passagem, uma pequena porção de farinha e sal preparados pela mãe e a roupa do corpo.
O pai, temendo a cidade grande, não a deixou levar mais nada. Chegou à capital sem abrigo, sem comida e sem saber onde dormir. Conseguiu vaga em um abrigo da Cese (Coordenadoria Ecumência de Serviços) e, mesmo assim, iniciou o curso de Medicina.
Farinha e sal
Durante seis meses, frequentou as aulas com a mesma roupa e um chinelo de couro surrado. Quando as colegas perguntavam se ela só tinha aquela roupa, Marina dizia que era “uma promessa”. E, de certa forma, era — uma promessa de resistir.
Alimentava-se apenas de farinha e sal, até o corpo sucumbir. Foi internada por meses e, uma das médicas, chegou a declarar que “não havia mais saída”.
Mas Marina encontrou força onde muitos não veem: reconectou-se à sua ancestralidade. Retomou os saberes do quilombo, uniu-os ao conhecimento científico e reencontrou o equilíbrio entre corpo e espírito. Saiu do hospital frágil, mas viva — e mais convicta do seu propósito.
Antes do curso, já havia ajudado a fundar, junto a outros estudantes e professores, um cursinho quilombola em Vitória da Conquista. Foi a forma que encontrou para se preparar para o vestibular e ajudar outros jovens da zona rural a sonhar com a universidade.
Série de TV
A história de Marina ganhou repercussão após ser retratada na série Aprender a Sonhar, lançada em 2017 em TVs Públicas e streaming, que acompanha trajetórias de jovens quilombolas, indígenas e periféricos em busca do diploma sem abandonar suas raízes. A série faz parte do macro-projeto do longa agora em cartaz. “São filmes diferentes, apesar de termos alguns personagens presentes na série e no longa”, conta o diretor, Vítor Rocha.
No quilombo, a árvore de Marina também resistia. Um dia, uma ventania forte quebrou o caule, mas a planta continuou a crescer, envolta por boldo, também chamado tapete de Oxalá — planta de cura e proteção. Sua mãe, ao ver as flores e os brotos, entendeu o sinal: a filha, já médica, estava bem e pronta para dar frutos.
Hoje, Marina trabalha em plantões e administra sua própria clínica. Continua a cuidar de corpos e almas com o mesmo respeito com que a mãe tratava as dores do quilombo. Sua trajetória é uma prova viva de que o conhecimento ancestral e a ciência podem caminhar juntos — e de que, mesmo quando o caule se quebra, a árvore pode florescer outra vez. Confira sua história em Aprender a Sonhar, nos cinemas.















