Por Roberto Aguiar
O bairro de Itapuã, em Salvador, tem uma relação forte com a música. Caymmi fez desse cantinho da capital baiana o cenário de suas canções. Vinicius de Moraes, na varanda de sua casa olhando o imenso mar azul, compôs ‘Tarde em Itapuã’, uma das mais belas canções da música popular brasileira. Não podemos esquecer o Malê Debalê, Seu Regi, Amadeu Alves e As Ganhadeiras de Itapuã, expressões musicais que mostram a potência sonora do bairro. Há 5 anos, um time de mulheres, sentadas ao redor de uma mesa com seus instrumentos, com muito samba na voz e nos pés, tem contribuído para fortalecimento cultural do bairro.
Conversei com Amanda Quadros, uma das fundadoras do coletivo Roda de Samba de Mulheres de Itapuã, que fez uma avaliação dos cinco anos de existência do Coletivo, falou desafios enfrentados e destacou as perspectivas para 2024.
A Roda de Samba de Mulheres de Itapuã completou 5 anos de existência. Olhando pelo retrovisor, o que você enxerga nesses 5 anos de projeto?
A Roda completou cinco anos, e avaliando esse período, foram cinco anos de resistência, mas acima de tudo, de alegria, de muito aprendizado. Tem sido incrível, encantador e potente colocar na mesma roda a novidade, trazida pelas sambistas mais novas, com a experiência e a referência das nossas mestras do samba. Tudo isso dentro de um círculo, em que todo mundo aprende com todo mundo. Acho que fazendo uma análise de todos esses anos que existimos, são cinco anos de muito aprendizado.
2) Conte um pouco como nasceu o projeto da Roda de Samba de Mulheres de Itapuã.
A Roda de Samba nasce como um movimento de resistência contra o machismo que nós, mulheres, sofremos na sociedade e no samba, né. Um dia, entre algumas mulheres que estavam passando por processos difíceis em suas vidas, machucadas, e a gente decidiu começar a se juntar nas casas uma das outras para fazer o que a gente mais ama: samba. Desde o começo, a única coisa que a gente sabia é que a gente queria que esse fosse um espaço para acolher outras mulheres que também quisessem fazer samba com a gente. Até que decidimos fazer uma roda de samba aberta, onde qualquer mulher que soubesse minimamente tocar um instrumento pudesse se sentar com a gente e tocar. De lá pra cá, a gente só foi crescendo.
3) Quais as principais dificuldades que vocês enfrentaram e seguem enfrentando para manter o projeto vivo?
Nossa maior dificuldade é sermos ouvidas. A maioria do coletivo, atualmente, é de mulheres negras. Entre nós temos pescadoras, vendedoras de quitutes, baianas de acarajé, mães solo, mães de filhos acamados, etc. Então enfrentamos todas as dificuldades que a maioria das mulheres negras enfrenta, não vou ser repetitiva detalhando isso. Mas além dessas dificuldades, encontramos muita resistência dos sambistas, também. A primeira dificuldade que tivemos que vencer foi educar as pessoas que achavam ruim que a gente só aceita mulheres na roda. Mas os homens têm todas as outras rodas de samba da cidade para eles. Então, aos poucos as pessoas foram entendendo e hoje têm alguns amigos homens que chegam junto para ajudar sem precisar estar com um microfone nas mãos. Também já houve quem dissesse que a gente não sabia fazer samba de verdade, quem reclamasse que a gente canta música de duplo sentido. Até de sujas já fomos acusadas, e tivemos que superar uma tentativa de suspender a nossa roda aberta. Sabemos que isso tudo tem a ver com o machismo e o racismo. Porque quando a gente junta um monte de mulher negra sem pedir autorização a ninguém e fazemos o que temos vontade, quando a gente canta nossas dores e nossos prazeres, quando a gente abre a boca pra cantar nossas críticas à sociedade, isso tudo incomoda. E pior, quando vem gente da cidade inteira para curtir nosso samba, ouvir o que estamos cantando, ah, isso então incomoda demais. E ainda tem o racismo religioso, porque a gente dá banho de pipoca antes de começar a roda e canta música para Orixá. Tem homofobia, porque vem muitos casais de mulheres curtir com a gente. As dificuldades são muitas. A maior dificuldade acho que é sermos ouvidas. Mas a alegria de fazer juntas o que a gente ama, compensa.
4) Qual a relação da Roda de Samba de Mulheres de Itapuã com a comunidade?
Eu sou de Itapuã e algumas mulheres que estão na Roda são também de Itapuã. A Roda nasce aqui, porém temos mulheres de vários lugares da cidade. Então a gente tem uma relação muito próxima com a comunidade de Itapuã. Uma relação também de sentir que Itapuã precisa ser ressignificada pelas vozes das mulheres. Itapuã foi cantada por muitos homens, e reconhecida assim pelo mundo todo, e tudo bem. Mas a gente precisa cantar Itapuã também pelas vozes dessas mulheres e fazer com que elas sejam ouvidas, para que o mundo também reconheça que Itapuã é cantada e construída também pelas vozes femininas, pelas vozes das ganhadeiras, por todas aquelas mulheres que constroem a cultura e a história do seu bairro. Então a gente tem uma relação de muita intimidade com o bairro, de agradecimento, de fonte mesmo. E mais especificamente a comunidade do Alto da Bela Vista, onde a gente faz nossas rodas, nos recebe muito bem. Quando a gente chega pra montar a roda, a vizinhança empresta mesa, empresta cadeira, qualquer coisa que a gente precisa aparece alguém para providenciar. E quando a gente demora de fazer samba, o telefone toca sem parar: ‘quando vai ter samba das mulheres?’. Então é um carinho muito grande e muito respeito que a gente tem por essa comunidade.
5) Quais as perspectivas para 2024? O que vem de novo por aí? Já temos a data da primeira roda de 2024?
Em 2024 espero muito mais rodas de samba de mulheres pela Bahia, pelo país. É o que a gente acredita, porque a gente quer rodar muito com esse projeto, com esse coletivo. Temos algumas ideias nascendo para novos projetos, e também alguns convites. Acredito que em breve poderemos anunciar nossas primeiras apresentações de 2024.