476 anos da primeira cidade do Brasil
Por Gina Marocci
Estamos em 1549, tempo do reinado de D. João III (1521-1557), que foi responsável pelo fortalecimento do poder marítimo dos portugueses no oceano Índico e pela ocupação da costa brasileira a partir de 1534. Para isso, ele dividiu o território da colônia em 15 capitanias hereditárias com o objetivo de fixar representantes legais para administrá-las, promover o povoamento delas e, assim, recompensar pequenos nobres por serviços prestados à Coroa. Esses fidalgos receberam os títulos de capitão e governador, contudo tiveram de arcar com todas as despesas da empreitada, como fundação de povoados e vilas, além de doar terras para o desenvolvimento de atividades agropecuárias. Mas, nem todas as capitanias deram certo, principalmente por causa dos desmandos dos donatários e, no caso da Bahia, ela retornou às mãos da Coroa como capitania real.
Em 1548 foi criado o Governo-Geral, cuja implantação ocorreu a partir de 1549, com a vinda do primeiro governador-geral, Thomé de Sousa, que trouxe uma comitiva de cerca de mil pessoas, entre elas, 130 soldados, 90 marinheiros, 70 profissionais (carpinteiros, ferreiros, serradores etc.), funcionários públicos, 6 jesuítas comandados por Manuel da Nóbrega, 500 degredados e colonos para o trabalho pesado. Aqui aportaram as naus Salvador, Conceição e Ajuda, as caravelas Leoa e Rainha, e o bergantim São Roque, além de duas outras naus de comércio, que deveriam retornar ao reino carregadas de pau-brasil. A cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos foi esboçada em Lisboa para ser a sede do Governo-Geral, portanto a capital da colônia é a primeira cidade planejada do Brasil.

Thomé de Sousa aportou em março de 1549 na Barra, local onde o capitão-donatário Francisco Pereira Coutinho erguera um povoado na década de 1530. Dali, Thomé de Sousa e Luís Dias, mestre de obras responsável pela construção da cidade, bem como dos principais edifícios, traçaram as primeiras definições para a capital, que seria uma cidade fortificada em dois níveis. Para entender a lógica do traçado português do núcleo inicial da cidade, vamos utilizar a planta elaborada pelo engenheiro baiano Theodoro Sampaio, com base no original existente no manuscrito Razões do Estado do Brasil (1611), e publicada no livro dele intitulado História da Fundação da Cidade do Salvador (1959). Na planta podemos verificar que há duas áreas fortificadas, que representam a parte alta e a outra, no nível do mar, que são chamadas até hoje de cidade alta e cidade baixa.

Nos primeiros meses, os homens se empenharam em desmatar o local escolhido, identificar água doce para abastecimento e marcar os limites que seriam protegidos por muralhas e portas. Contaram com a mão de obra dos nativos, que habitavam as cercanias do sítio escolhido, como também aqueles que conviviam com Diogo Álvares Correia (Caramuru) e lhes ensinaram a arte dos ofícios mecânicos. Os escravizados africanos começaram a chegar a partir de 1551, ainda em pouca quantidade, pois registram-se três que vieram trabalhar nas ferrarias da cidade.
Na cidade baixa, numa estreita faixa de terra, foram erguidos armazéns e guindastes de apoio ao porto. Nesse período inicial era ocupada também pelas estruturas de pesca e habitações dos pescadores. O acesso das pessoas e dos animais era feito pela ladeira que saía da lateral da ermida da Conceição até um dos baluartes da cidade alta.

A cidade alta, instalada entre muros, cujo acesso se dava pelas portas de Santa Luzia e de Santa Catarina, abrigava desde o início importantes edifícios, como a Casa de Câmara e Cadeia, o lugar de reunião do Concelho, formado pelos vereadores e outros funcionários do poder local, responsáveis pela elaboração de posturas e outras normas com objetivo de definir preços de alimentos, de jornadas de trabalho dos oficiais mecânicos, por exemplo. A pequenina igreja de Nossa Senhora da Ajuda foi a primeira a ser erguida dentro da área fortificada. Arruamentos foram traçados com o intuito de ordenar a construção das habitações em quarteirões. A principal via ligava a praça municipal à Porta de Santa Luzia, a rua Direta do Palácio, mas também conhecida como rua Direita dos Mercadores, que foi ocupada por sobrados de grande porte e pontos de comércio de varejo. Fora dos muros, dois caminhos prenunciavam direcionamentos futuros para o crescimento da cidade fora dos muros: um, para a Vila do Pereira, antigo povoado erguido por Francisco Pereira Coutinho; o outro, para as instalações da Santa Casa de Misericórdia, irmandade que promovia a assistência e cuidados aos mais necessitados, e também ao conjunto dos jesuítas, no Terreiro de Jesus.

Passados 50 anos da sua fundação, a cidade já havia se tornado um grande entreposto comercial, recebendo e distribuindo mercadorias de importação e exportação, principalmente do açúcar, proveniente do Recôncavo e da Capitania de Sergipe Del Rei, e o tráfico dos africanos escravizados. Para ilustrar a imagem de Salvador em 1600, temos a reconstituição aproximada feita pelo monge beneditino Paulo Lachenmayer, em 1945, conforme indicações de Wanderley Pinho, com base em informações do Livro Velho do Tombo do Mosteiro de São Bento da Bahia. Nesse frontispício da cidade registrou-se a área entre a atual praça Municipal e a praça Castro Alves, na cidade alta. Nela são destacados os principais edifícios: 1, Palácio do Governo; 2, igreja da Ajuda; 3,4 e 5, Portas de Santa Luzia (ou São Bento); 8, ermida de São Sebastião.
Na encosta estão indicados caminhos e ladeiras de acesso e um guindaste particular para transporte de mercadorias (9). Assim, para alcançar o porto já se havia delineado a atual ladeira do Pau da Bandeira (10), que se ligava à ladeira da Conceição (12), bem como outros caminhos que são indicados como caminhos velhos que vão para a Vila Velha e para as portas da cidade (25). Ao contrário da cidade alta, a cidade baixa é representada com uma ocupação escassa, representada pelas casas de taipa dos pescadores (16) e suas armações (24), além das casas de pedra para secar açúcar (14), propriedades de um desembargador, algumas pequenas casas ao rés do chão estão alinhadas ao lado da pequena igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia. Trincheiras e peças de artilharia estão indicadas à beira-mar.

O Mosteiro de São Bento da Bahia, o primeiro das Américas, foi fundado em 1582. O primeiro conjunto de mosteiro de igreja começou a ser erguido no final do século XVI (o atual teve obra iniciada na segunda metade do século XVII), e ele foi um importante vetor de expansão extramuros. Os franciscanos receberam autorização para fundar o convento em 1587, também fora dos muros e, assim como, o conjunto da Companhia de Jesus, ajudaram a ocupar a região conhecida como Terreiro de Jesus/Cruzeiro de São Francisco. Esses foram alguns elementos da história urbana de Salvador nos seus primeiros 50 anos.