Por Doris Pinheiro e Gina Marocci
A cidade do Salvador é consagrada a Jesus, mas o padroeiro é outro santo, São Francisco Xavier. Bom, oficialmente, porque no coração do soteropolitano a cidade está mesmo sob as bênçãos especiais do Senhor do Bonfim…
E toda essa história de fé ardorosa começou numa grande tempestade…
Em meio a uma das travessias pelo Oceano Atlântico, ao sentir que as imensas vagas que atingiam suas naus poderiam levar todos à morte, o capitão Teodósio Rodrigues de Faria, comerciante de grande porte, contratador de tabaco e negociante de escravos, prometeu ao Senhor Crucificado, caso ele e sua tripulação fossem salvos, construir em Salvador da Baia de Todos os Santos uma igreja em louvor ao Senhor do Bonfim, num local bem alto, onde se pudesse avistar toda a entrada da Baía.
Nascido em Setúbal, cidade portuguesa onde a devoção ao Senhor do Bonfim é muito forte, o capitão Teodósio, em 1745 cumpriu sua promessa. Mandou buscar em sua cidade natal uma imagem idêntica à que existe lá, em cedro, 1,10m de altura. A imagem chegou à Província da Bahia em 18 de abril de 1745, acompanhada da de Nossa Senhora da Guia. As duas foram instaladas na igreja da Penha.
O capitão Teodósio e toda sua tripulação ajudaram pessoalmente a construir a primeira capela, embrião da igreja que conhecemos hoje. A devoção ao Senhor Bom Jesus do Bonfim nasceu, então, de um ex-voto, como uma oferta ao povo baiano.
Ele fundou, também, o culto ao Senhor do Bonfim e a Nossa Senhora da Guia, criando a “Devoção do Senhor Bom Jesus do Bomfim”, Irmandade de leigos reconhecida pelo então arcebispo Dom José Botelho de Matos. E a população aderiu ao ato de fé criando a Associação de Devotos do Senhor Bom Jesus do Bomfim (1745).
Segundo a historiadora Katia Mattoso, os primeiros devotos eram moradores de Itapagipe, pessoas simples, como pescadores, pequenos comerciantes, marinheiros e negros livres. E este foi um traço peculiar da Devoção, pois, como bem observa a arquiteta Mariely de Santana, nela se uniam pessoas das diversas camadas da sociedade, de várias profissões e cor da pele, o que a tornou, desde sempre, diferente das outras irmandades, geralmente relacionadas a grupos sociais específicos.
A capela teve suas obras iniciadas em 1746, e no dia 24 de junho de 1754, após a conclusão das obras internas, a sagrada imagem do Senhor do Bonfim foi trazida da igreja da Penha, onde havia ficado desde a chegada ao Brasil, para a Colina do Bonfim. Procissão e missa solene entronizaram o Senhor do Bonfim em sua casa.
Construção da Fé – Não faltaram contribuições para a construção da casa do Senhor do Bonfim, que eram depositadas na igreja da Penha. O terreno, doado por Joanna de Oliveira, em 1750 e os recursos doados pelos fiéis, permitiram a construção da capela e das casas dos romeiros, ambos sinais da fervorosa devoção ao Senhor do Bonfim entres os baianos ainda no século XVIII.
O local para a construção da igreja, a única colina que ficava à beira do mar em Itapagipe, não tinha um acesso fácil. A melhor maneira de se chegar à colina era pelo mar, em barcos ou saveiros. Aportava-se na Boa Viagem, no porto da Lenha ou no porto do Bonfim.
Avistada ao longe, tanto por mar como por terra, a colina do Bonfim poderia ser comparada às pequenas vilas construídas por todo o Brasil. A capela, livre de qualquer construção ao seu redor, imperava, tendo à sua frente um terreiro retangular (antes de qualquer urbanização) e as casinhas dos romeiros de mesmo desenho, ornamentando dois lados; a ladeira se confundia com a vegetação que compunha a encosta de acesso à baixa do Bonfim.
A capela teve suas obras iniciadas em 1746, e no dia 24 de junho de 1754, após a conclusão das obras internas, a sagrada imagem do Senhor do Bonfim foi trazida da igreja da Penha, onde havia ficado desde a chegada ao Brasil, para a Colina do Bonfim. Procissão e missa solene entronizaram o Senhor do Bonfim em sua casa.
Mas só em 1772 as obras da capela foram concluídas. Há notícias de que também neste ano pode ter sido iniciada a tradição da lavagem da Igreja, quando os integrantes da Devoção determinaram que os escravos lavassem a igreja como parte dos preparativos para a festa. Segundo Mariely de Santana (2009), o costume de limpar e lavar as igrejas chegou ao Brasil com as primeiras irmandades. No Bonfim, caiavam-se as fachadas, lavavam-se o chão da igreja e as imagens e limpavam-se as alfaias. As senhoras lavavam a igreja na quinta-feira anterior à festa.
A devoção cresceu rapidamente e os festejos, inicialmente realizados na igreja da Penha, no período da Páscoa, eram marcados por romarias. Ao longo do século XVIII a festa não teve data fixa, ocorrendo, inclusive, em meses diferentes. A partir de 1773 a festa litúrgica do Bonfim passou a ser celebrada no segundo domingo da Epifania (2º domingo de janeiro), porém, só em 1804 é que a Arquidiocese oficializou a festa neste período.
O culto ao Senhor do Bonfim teve início em Setúbal, em Portugal, em 1669, quando camponeses erigiram uma ermida sob a invocação do “Anjo da Guarda”, que depois passou a se chamar de igreja do Senhor do Bonfim.
O milagre concedido a Teodósio impactou fortemente sobre a população baiana, o que fez com que a capela fosse visitada cada vez mais por pessoas de todas as partes da cidade, levando a Devoção a investir em obras para melhorar o acesso à colina. Inicialmente, promoveram-se melhorias às ladeiras de acesso. Depois construiu-se uma estrada ligando a colina ao porto de Roma, que se chamou Avenida Dendezeiros do Bonfim, com calçamento, arborização, tudo bancado com as doações e sem investimento público. Mais tarde, a Devoção fez o trecho ligando o largo de Roma à Calçada.
A igreja sofreu grandes transformações no início do século XIX, quando foram construídos a escadaria e o adro, colocou-se o revestimento de azulejo na fachada, alargamento da porta principal e substituição das janelas laterais. São do século XVIII as torres, erguidas com seus campanários e terminações em forma de bulbos recobertas por azulejos amarelos.
A parte interna da igreja também sofreu uma grande reforma ornamental no início do século XIX. De acordo com o pesquisador Luiz Alberto Freire, era comum as irmandades e ordens terceiras empreenderem nas igrejas e capelas, reformas para substituir a talha policromada e dourada por uma ornamentação mais moderna.
No caso da igreja do Bonfim, a reforma iniciou-se pelo retábulo-mor, elegendo-se o estilo neoclássico como referência. Além do retábulo-mor, foram contratadas as talhas do forro e tribunas da capela mor, arco cruzeiro e dos altares colaterais e laterais.
A tradição das Fitinhas – Foi entre 1807 e 1809 que as famosas fitinhas do Senhor do Bonfim foram introduzidas na Bahia. Na época eram chamadas de “medidas”, porque tinham exatamente 47 centímetros, que é a medida do braço esquerdo – da mão esquerda até o coração da imagem do Senhor do Bonfim da Basílica.
Elas eram fitas de seda com pinturas e bordados representando o Senhor do Bonfim. Originalmente criadas para serem usadas no pescoço, hoje elas são usadas no pulso. No pescoço eram usadas como um colar, no qual se penduravam medalhas e santinhos e funcionavam como uma moeda de troca. Ao pagar uma promessa, o fiel carregava um pequeno objeto, que podia ser uma pequena escultura de cera, representando a parte do corpo curada com a ajuda do santo. Ou como lembrança, comprava uma dessas fitas, que simbolizava a própria igreja.
Para os portugueses as fitinhas eram uma medida teórica e considerada milagrosa. Quem queria alguma graça fazia tudo com essa medida. Por exemplo: se a pessoa tinha que usar uma atadura, ela devia ter os 47 centímetros da medida do Bonfim.
As várias cores das fitinhas, que muitos associam aos orixás africanos, são coisa da Bahia, assim como amarrar no pulso, fazendo três pedidos, um a cada nó dado. Por isso, quando a fita romper ela deve ser lançada ao mar ou no mato.
Para o baiano é uma tradição comprar um carro e colocar as fitas bentas amarradas ao espelho retrovisor. Durante muitos anos as mulheres colocavam amarradas ao sutiã, para proteção pessoal.
Hinos – Existem dois hinos do Senhor do Bonfim: o oficial, composto pelo poeta baiano Pethion de Villar, e o popular, composto por João Antônio Wanderley E Arthur de Salles. Além dos dois hinos a igreja do Bonfim possui também em seu rico acervo lítero-musical, a Novena do Bonfim e a Missa festiva, peças clássico-populares de Damião Barbosa de Araújo, compostas no século IXX.
Clip realizado pela Prefeitura de Salvador
A Basílica do Bonfim
A igreja do Bonfim tem um projeto arquitetônico bastante comum ao início do século XVIII, que se repete em muitas matrizes e igrejas de irmandades, com nave única e corredores laterais superpostos por tribunas. Os pórticos em arcada, das laterais, são uma transição dos avarandados do século XVII e os corredores do século XVIII. Em planta, a Basílica é uma típica igreja do século XVIII do nordeste brasileiro.
A igreja abriga obras de diversos artistas. O altar-mor é dedicado ao Senhor do Bonfim. A pintura do teto da nave foi feita por Franco Velasco, da Escola Baiana de Pintura.
Nos altares laterais há as imagens do século XVI de São Joaquim, Senhora Santana, Nossa Senhora, Santo Afonso e São José, além os painéis de Cristo na presença de Pilatos e de Cristo no Horto das Oliveiras e os entalhes de concepção neoclássica de Francisco de Matos Roseira.
Nas paredes da nave principal 34 telas narram a Paixão de Cristo e na sacristia estão mais cinco telas de grande valor executadas por José Teófilo de Jesus.
Um dos maiores destaques do acervo são os quadros “A Morte do Justo” e “A Morte do Pecador”, que ficam um de cada lado, na entrada da igreja e são de autoria de Bento Capinam.
O Justo está arrodeado de anjos e de um padre, já o Pecador, embora arrodeado de anjos, que tentam chegar até ele, está sendo influenciado pelo demônio, que o oriente para não aceitar a aproximação dos anjos.
Doação de Fé – Na basílica há também as alfaias, que são objetos usados nos atos litúrgicos, como sacrários, crucifixos, castiçais e outros que foram incorporados à ambientação da igreja, como lustres de prata lavrada e os lustres dos altares laterais, todos oferecidos por devotos ao longo dos séculos.
Um sacrário de prata lavrada, por exemplo, foi oferecido pelo coronel Miguel José Maria Teive e Argolo, em 1680 e um crucifixo e castiçais das banquetas do Santíssimo Sacramento e de Nossa Senhora da Guia vieram de Portugal em 1791; os lustres dos altares laterais, também em prata lavrada, foram oferecidos pelo comendador José Freire de Carvalho, em 1813. De Portugal veio um coração trabalhado em ouro e prata, que é guardado como preciosa relíquia histórica.
O Museu dos Ex-Votos – Museu Rubens Freire de Carvalho de Tourinho, funciona dentro da Basílica do Bonfim e tem objetos entregues à igreja por fiéis ao longo dos últimos 300 anos. Ali estão expostos os ex-votos, moldagens em cera, madeira e outros materiais, geralmente de pedaços do corpo humano.
Há também pinturas, retratos de diversas situações, cartas, bilhetes e radiografias. Pedaços de histórias da vida dos devotos, que a fé consagrou. A camisa autografada por todos os jogadores na conquista do tricampeonato do mundo na Copa de 1970 e uma moeda retorcida que aparou um tido desferido salvando a vida do senhor Donato Cecílio, em 1779, ao invocar o Senhor do Bonfim, são alguns dos destaques.
Gina Marocci – Graduada em Arquitetura pela Universidade Federal da Bahia (1982), onde titulou-se em Mestre em Arquitetura e Urbanismo (1997) e Doutora em Arquitetura e Urbanismo (2011), e sua tese analisa a influência do pensamento iluminista na urbanística portuguesa. Tem experiência na área de Arquitetura e Urbanismo, com ênfase em História da Arquitetura e Urbanismo, atuando principalmente nos seguintes temas: urbanismo; história da cidade, desenho urbano, educação, engenharia militar e conservação e restauro.