Por Gina Marocci
Em Salvador, o mês de janeiro é marcado pela festa ao Senhor Bom Jesus do Bonfim. A imagem de Jesus crucificado, trazida de Portugal em 1745, como ex-voto do comerciante português Theodózio Rodrigues de Farias, por conta de uma graça alcançada, suscitou uma forte devoção tanto em Salvador como nas vilas do Recôncavo. Ainda em 1745 foi criada a Associação de Devotos do Senhor do Bonfim, cuja primeira mesa administrativa foi composta predominantemente por homens moradores da cidade, ou seja, de pessoas de fora da Península de Itapagipe (Santana, 2009). Como não havia uma capela para a imagem, ela ficou instalada em um dos altares da igreja de Nossa Senhora da Penha de França, recém-construída pelo bispo D. Botelho de Mattos como capela do palácio de verão.
Mas como era Salvador na primeira metade do século XVIII? E como se chegava até a região da Boa Viagem, de Montserrat ou da Penha? Nesse período, a cidade contava com cerca de 40 mil habitantes, mais de 6700 fogos (imóveis) distribuídos em 7 freguesias urbanas (Sé, Conceição da Praia, Pilar, Carmo, Santana, São Pedro e Rosário) e 2 que não eram consideradas urbanas, a de Brotas e a da Vitória (Mattoso, 1992). Para além da área consolidada entre as portas da cidade alta (da atual praça Castro Alves até o Pelourinho), havia os bairros novos impulsionados pela presença de igrejas, mosteiros e conventos. São Bento, que também abrangia as áreas próximas às igrejas de São Pedro, Lapa, Piedade, Mercês e São Raimundo, era formado por largas ruas com muitas residências (Marocci, 2011). Atravessando-se o rio das Tripas (canalizado no início do século XX, sob a Baixa dos Sapateiros), a Palma, a Saúde e o Desterro desenvolviam-se como áreas predominantemente residenciais.
A região do Carmo, no monte Calvário, se destacava pelas residências ricas, enquanto que o bairro de Santo Antônio Além do Carmo apresentava novas ruas e construções residenciais mais simples. Na cidade baixa, o bairro da Praia já se estendia para além do centro portuário, com os seus prédios públicos como a Alfândega, a Intendência e o Arsenal, além de inúmeros armazéns, trapiches e residências, numa fina faixa de terra até o Noviciado dos Jesuítas, na Jequitaia.
Na primeira metade do século XVIII, a Península de Itapagipe era uma região praticamente rural, com poucas ruas e uma população composta majoritariamente de homens do mar, pescadores, negros livres e brancos artífices ou pequenos comerciantes (Santana, 2009). Algumas famílias abastadas tinham suas chácaras para passar o verão longe do barulho da cidade. Esse contingente diversificado foi quem deu início à Devoção ao Senhor do Bonfim, diferentemente das outras Irmandades que eram organizadas pela atividade profissional ou pela cor da pele.
O acesso à Península de Itapagipe era mais fácil pelo mar do que por terra, já que a região da Jequitaia tinha manguezais e para trafegar na estreita faixa de terra dependia-se da altura da maré, o que dificultava o acesso dos romeiros ao santuário que se erguera na colina, em terreno doado por Joanna Thereza de Oliveira, em 1752 (Santana, 2009). Em 1754, a imagem saiu da igreja da Penha em procissão marítima até o porto do Bonfim para ser instalada na capela-mor da igreja em construção. Na colina já havia o conjunto de casas dos romeiros. O melhor acesso à colina era por meio de barcos e saveiros, que atracavam no porto de Montserrat ou no porto dos Pescadores, ao sopé da colina.
O mais antigo acesso à colina era pela estrada de Montserrat, mas havia o acesso pela ladeira da rampa do mar (porto da Lenha). A Irmandade construiu, ainda no século XVIII, duas novas ladeiras, a do porto do Bonfim, hoje Ladeira dos Romeiros, e a ladeira da Ponte da Pedra, atual Ladeira do Bonfim, que facilitava o acesso de quem vinha de Roma e da cidade. Entre 1792 e 1798, a Devoção construiu uma nova estrada até o porto de Roma, que logo ficou sendo chamada de Avenida dos Dendezeiros (Santana, 2009). Essa pode ser considerada a primeira urbanização da colina.
No início do século XIX a Península já apresentava uma ocupação maior ao longo do percurso até a colina, onde começaram a se instalar, também, casas comerciais. As festas que já ocorriam nesse tempo no mês de janeiro atraíam pessoas da cidade e do Recôncavo. A Irmandade deu continuidade às melhorias na região e comprou, em 1815, terrenos dos Mares até a Jequitaia, para construir a Calçada do Bom-Fim, e promover várias benfeitorias como drenagem de terrenos, calçamento de pedra e arborização de ruas, tudo isto para promover a festa e melhorar as condições de acesso à colina e à igreja (Santana, 2009).

Na segunda metade do século XIX a colina ainda carecia de cuidados urbanísticos, sendo que o mesmo acontecia com a chamada Baixa do Bonfim. O largo à frente da igreja era uma área gramada limitada por caminhos sem pavimentação e pela contenção da colina, feita em pedra e ornada com a balaustrada pré-moldada que ladeia a ladeira do Bonfim.

A Companhia do Queimado, um dos primeiros sistemas de abastecimento de água do Brasil, veio prover a cidade de pontos de acesso à água potável por meio de chafarizes instalados em espaços públicos (mas não era um serviço gratuito, pagava-se pela água). Na segunda metade do século XIX No sopé da colina, que também tinha uma área cercada, a Companhia instalou, cerca de 1860, um chafariz de ferro fundido, possivelmente da companhia francesa Val d’Osne, que confeccionou outros chafarizes para várias cidades brasileiras. As duas fotografias abaixo são do início do século XX. Na primeira podemos ver o muro com portão que fechava a área verde da encosta da colina; em vermelho, a localização do chafariz, que em 1920 já não estava mais nesse lugar. A segunda fotografia mostra pessoas recolhendo água do chafariz, que era cercado com gradil de ferro.

Em 1865, a Companhia do Queimado instalou um segundo chafariz, que foi adquirido na Itália pela Irmandade, em mármore de carrara, contudo pagava-se à Companhia pela água. Pode-se observar na primeira fotografia (1912) que foram instalados lampiões para iluminação pública, e que o acesso à área verde da colina era restrito, fechado com um portão. Por qual razão? Poderia ser por segurança, por ser propriedade da Irmandade, então, não considerada como área pública. Na segunda imagem vemos o chafariz em mármore.

A eletrificação dos bondes fomentou a urbanização da região, que recebeu a primeira linha desses novos bondes em 1897. Com isso, novas áreas foram pavimentadas com paralelepípedos e receberam iluminação pública. Na década de 1950 foi a vez do asfaltamento de vias, tendo em vista a necessidade de rolamento dos ônibus e carros particulares. A área verde da colina tornou-se a praça Eusébio de Matos, aberta ao público. Os arcos que sustentam a ladeira do Bonfim abrigam famílias em situação precária.

Na década de 1990 ocorre a requalificação da área, com a reforma dos arcos e a retirada dos moradores. Os arcos se tornam unidades para instalação de comércios de pequeno porte. Na colina, as barracas instaladas no passeio contíguo à balaustrada são retiradas. A pavimentação dos passeios e da praça é recuperada, assim como os canteiros, em que são plantadas novas espécies de arbustos. Essa foi a última intervenção do século XX.
REFERÊNCIAS
MAROCCI, G. V. P. O Iluminismo e a urbanística portuguesa: as transformações em Lisboa, Porto e Salvador no século XVIII. 2011. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia, século XIX: uma Província no Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
SANTANA, M. C. de. Alma e festa de uma cidade: devoção e construção na Colina do Bonfim. Salvador: EDUFBA, 2009.