Será preciso ser ingênuo para perceber uma diferença entre um romance realista e um conto de fadas! Valéry
Por Gerson Brasil
Para Isleide
Luzia incendiava seis quartos, três salas, uma 60×40, cozinha, dispensa e hall de entrada com seis metros de pé direito e mais a biblioteca, a irritante escada e o terrível elevador. “Chamava a atenção e como artista amador, tomei anotações, tentei simular um desenho; traduzir é importante, discorrer, grandes gestos não empalidece a astúcia, ali plantada, mesmo se a olhar de soslaio. Não lhe era dado o direito de percorrer a casa, dormir em baixo da cama, obstruir alguma passagem, reduzir a vista de qualquer cômodo a uma fresta, era pior. Não conhecia noites nem dias, mas mantinha intimidade com os habitantes da casa”.
O inferno metamorfoseado em ferros e chapas, arcabouço a rivalizar com o confessionário, mas sem as benções do padre e bem distante das remissões. A porta tecida em xadrez, deixava a ver um Braque. Teria sido presente? “Despistou o oceano e se encontrou com papai nos jardins, mas se esqueceu de pintar o interior da urna – azul lilás cairia bem-, de onde o medo assombrava a todos”.
Não havia cadeira, poltrona, cadeira de rodas e sequer aqueles assentos a obrigar as pessoas postarem-se frente a frente, e a imaginação a adivinhar a idade, se comeu, se estava com fome. ‘Se vestia mal e a escova se escondeu dos cabelos’. Era de confiança ou assaltara a joalheria da Rua Corrientes de Barros, na noite passada? A polícia, quase sempre, se esquece do ladrão, o toma como figurante do filme, cuja a estreia foi adiada, a impedir a conjectura.
Quase ninguém usava o elevador, difícil saber se estava na posição correta ou se de cabeça para baixo; caso urna funerária o entendimento de pronto espantaria o medo, afinal, são os outros que morrem, com direito a dar um passeio pela cidade em direção ao cemitério e a torcida de parentes e amigos a lhes confortar bom descanso e a cremação. Fará calor? Seria bom encomendar uma chuva? Despi-lo?
Os dois brincos – poderia também ser só um, na casa o aleatório se servia de qualquer coisa-, o cigarro e a bebida levavam dissabores, e a impertinência era favorecida, diante da quase impossibilidade de operar-se uma mudança, desejada por todos, sonhada, acalentada com tamanha qualidade, a imprimir fingimento e savoir faire à espera de que algo acontecesse. Luzia de Almeida Rosas conhecia os moradores da casa, os tomava após consultar enciclopédias e dicionários. A curta empregada se esforçava para alocar pratos, gostos e infindáveis prazeres a moldar 1,80m em várias versões, mas sempre com o tom de voz inexequível.
Limpou as mãos no avental e escreveu: “quem sabe a guerra (sem interromper o confronto) pudesse aprender alguma coisa, truques, conversação insidiosa, mal agradecimento e a resistência a impedir que as atribulações se desviassem dos caminhos, dificultando a contagem do tempo. Nada impedia a aceleração dos dias e nem os postergavam, não se tratava de ganho de causa, como na guerra, obter vantagens. Maldizer as comiserações era prática diária, temia-se ser inebriado pelo logro, falsidade, se a tarde não fosse pintada com alguma desavença, ou um obstáculo de difícil remoção, haveria de ser um dia aziago”.
“ Não se pode requerer terras altas, onde a vontade, mesmo se apoiando na lei, não tem a capacidade de inventar um modo distrópico suficientemente seguro de alcançar aquilo que é perene”, dizia Luzia, com um copo de uísque, cigarro na boca e impropérios abissais.
Fazer crer que os acontecimentos não tinham assento na casa começou como uma diversão, encabulada, se estendeu para um concurso, a imitar o de misse, ou a inauguração de um monumento; por pouco não foram institucionalizados, mas houve rejeição.
“Podemos render vivas a prognósticos, já é muito e o contentamento se apraz ao sabermos que logo adiante seremos obrigados a lançar mão da dúvida, porque o acontecimento seguinte não guarda relação com aquele a promover uma série de banições, sem a necessidade de recorrer ao castigo, ou a imposição de outros acontecimentos corretivos, isto nos levaríamos ao abismo, quando fechar uma porta, ou varrer a varanda, deixaria de ser uma tarefa e confiante passaria a ser aboletada no cálculo das impossibilidades irresponsáveis”, anotou Luzia no diário.
Era afastada a tarefa de negligenciar e impedir que os outros moradores fossem tomados de surpresa e não conseguissem dar conta dos deveres contraídos na obrigação de permanecerem fieis à labuta de enfrentar devaneios sem hostilizá-los ou promover a guerra, um esconderijo fácil.
Fumar na casa cabia exceções, eis um imperativo fortíssimo, o suficiente para louças, móveis e até o elevador não mergulharem no medo de contrair um resfriado ou ficarem impedidos de receber o ar que entrava pelas janelas, como juras de amor. Qualquer acontecimento tinha o momento assegurado, sem precisar da autorização da lettre.
Os acontecimentos mudavam as estações do ano, certos aborrecimentos se alentavam no outono e também corriam em direção ao verão, empurrando a empregada a produzir todo tipo de sortilégio para não cometer erros, estes, sim, eram considerados desrespeitosos. Martha Lopez de Jesus já tinha passado por diversas casas o que lhe possibilitou a conviver com diversos manuais; ‘é muito mais fácil do que cuidar de idosos, levar cachorro para passear ou dar bom dia, a quem se detesta’.
No outono Luzia usava robe e a dedicação em fazer comentários, refratários a interpretações – “o que é não se modifica, mas cabe extensões” -; utilizando o mesmo método das conjugações verbais, executando qualquer ocorrer de trocas. Era muito mais preciso do que as estações, estas podem surpreender grossos casacos com o aborrecimento do sol, repentinamente, sem que se possa reclamar, lançar mão de alguma praga, ou esconjurar o vizinho que deixou o lixo na porta da casa na hora imprópria.
No verão era obrigatório servir chocolate com pouca canela e rum. Não promovia a felicidade e nem se tomava louvação. As invenções da mulher admirada e importunada dentro e fora da casa fazia chover uísque e chá na mesma xícara; e o vestido com botões dobrados, criação do mediterrâneo, ajudava a estabelecer novas conjugações, elidindo tropeços; isso impedia a acusação banal de repetição, ou a criação de fato ilusório.
O testemunhar acontecimentos sem precisar se o ladrão havia sido refutado pela vítima, e a polícia a chegar tempos depois, mas nas declarações o suspeito pertencia a determinada gangue, agia sempre da mesma forma, não ouviu aquele dia, e impaciente, deixou de anotar que era lua cheia e a vestimenta simpatizava com as dos filmes infantis. Por isso mesmo, recebeu abraços e elogios, pela audácia e imaginação. Quando estava fugindo palmas o saudaram e o agradecimento por ter proporcionado, naquele calor infernal, um momento de distração, sem o preço do sorvete.
Não havia dia impróprio ou benigno, e sair de casa era uma contingência, como sempre fazia Luzia, dada a facilidade a empregar os verbos, evitando os pronomes possesivos, como o fez o rude Mouro, Otelo: ‘Que a suave Desdêmona eu dedico. Minha bela guerreira. É com tanta alegria quanto assombro, que te vejo, alegria da minha vida’. Mas a estrangulou.
Os crimes sempre levam a marca da impaciência, como se estivesse guardada numa caixa de chocolate, atrapalhada, não sabia a quem presentear. Acontece que a senhora de vestido fechado e echarpe poderia ter na bolsa um revólver 38 e o brutamonte uma pistola Glock, com silenciador. A impaciência é a mesma, na caixa de chocolate e na loja de armas, sem que se possa abandonar o mercado dos ilícitos, nele cabe a esposa do subúrbio e a cortesã, às vezes pensam em trocar de lugar.
Luzia era chamas e luz. Sobravam invejas, mas face a autoridade da casa e a ausência do estado, não era necessária uma conferência, debate ou assembleia, isso pertence a quem mora em chão ou sob mármore. A quantidades de cuidados dispensados consomem dias, meses, refeições. Os acontecimentos são banalizados, injúrias, xingamentos, desavenças e importunos não conhecem os predicados, se limitam aos adjetivos, como se fossem a tinta indicada, ou cal, a sepultar qualquer prazer fora do que estabelece a lei.
É imprescindível uma agenda do dia a dia, a verificação, a cobrança, o esquecimento dos compromissos, mesmos que contrariem as intempéries do tempo e imponham constrangimentos fora do alcance de previsões, porque estas não são suficientemente sólidas para se averiguar.
Por descuido, ou aventura, quando foi dado ao conhecimento de tia Lucy que alguns acontecimentos estavam de acordo, ou tomavam como modelo, o outono, o inverno, a primavera e o verão, houve silêncio. Anunciou que havia voltado de confissões, devidamente anotadas, sem muita convicção, e exibiu para todos o acúmulo de pontos de perdões recebidos, como se a loteria a encontrou na sorte.
O silêncio foi quebrado. Havia restrições à contabilidade dos perdões de Lucy, mas não eram de ordem moral, os moradores da casa temiam entrarem em falência, afinal, só contavam com um padre e multidão incandescente de concorrentes. Havia gente a acumular pecados simultaneamente, na mesma ocasião, sem os mesmos propósitos. Outros, em dias alternados ou no ridículo chegavam a emendar um dia no outro, sem trocar a roupa, escovar os dentes ou fazer qualquer tipo de refeição, o cansaço e a palidez vinham na frente.
Alguns se sentiam injustiçados, com a inveja a lhes atiçar desobedecer certos princípios, no argumento de que a serventia só envolvia de glória àqueles que ignoravam a estima e a servidão. Uma troça. Para alargar ainda mais o descontentamento, já próximo do inferno, tia Lucy, ainda de pé, com as mãos a ajudar o didatismo, asseverou: “não é o momento de cobrires a cabeça para impedir que as ninfas não lhes empurrem para doces ocasiões, distantes a 6 ou 8 quarteirões, e sem ressalva os levem também para os arrondissements mais distantes, como o seizième. Se existe a cabeça é para também empilhar o que se pode descoser”.
Tia Luci acumulava remissões e invejas que deixavam o metrô zarolho, era do princípio do século XX, agora, na modernidade, um emaranhado de linhas e estações impossíveis de reter na memória. Quando se pedia desculpa invocava-se o metrô, como testemunha daquela manhã enferrujada de frio a levar Andrade Gomes Ortega de volta à casa.
Quando a vida mal tinha acabado de acontecer, Einstein e sua invenção não colhia a menor influência na hora de se ir ao mercado, nem tão pouco a física de modo geral, aplicava-se a medida de ¼ para qualquer substância que se deixasse transportar, a forma onde cabia importava menos ainda. O peso era calculado pelos dois braços ou a cabeça, a distância era o esforço feito. Se por ventura fosse imperioso dispor de mais força, havia o descanso e a retomada da jornada. Executar a tarefa era a medida da vida e de todos os acontecimentos ocorridos. Os ilícitos obrigatoriamente se destinavam à polícia; rondar quarteirões poderia ser qualificado como passeio turístico, distração; seria necessário apresentar relatórios comprovadamente sustentado por provas materiais e insultos.
Agora o mundo obrigava aos cidadãos a fazer algo, alguma coisa, para ter direito ao repasto, guloseimas e enfrentar o inferno que era o metrô. Sabia-se exatamente a quantidade de chuva e de sol ao longo dos meses e todos os preparos para vencê-los, sem haver irritação dos pelos, das mucosas e os indefectíveis resfriados.
Quando o corpo solicitava, a espreguiçadeira era convocada, com seu sistema único em todo o mundo. Metia inveja até na Mecânica. O carpinteiro, ou mestre carpinteiro, utilizava apenas a habilidade e medição acumulada ao longo do tempo, a mesma de que fazia uso tia Lucy com os perdões. Muitas vezes para desacreditá-la a chamavam de materialista. O irmão de Ortega chagava a dizer: ‘cuide da alma, a vida não se reduz a carpintaria’. – “Talvez você não saiba, não há carpintaria melhor do que erguer corpos além-túmulo”, replicava Lucy.
“Feliz o corpo das remissões em grandes quantidades, me proporcionam um sabor especial, na leveza, como espinhas, poderei gastar o corpo sem aviso prévio; perfídia aviltante impingida ao proletariado, a consumir seus pecados lentamente ao passar dos dias e das noites e as tardes, invadindo a madrugada, sem o menor descanso.
Num desses dias, a não admitir deus nem falsas promessas, Lúcio Alcaraz esfregou as mãos no bigode, as levou até a maxila, engoliu o que não havia na boca e sem cansaço, mas com a medida certa, contou-me que estava de aviso prévio. “Antes a morte”, blasfemou. “São 30 dias infernais, o homem levou 8 dias, 3 horas e 18 minutos para ir e voltar da Lua. Luzia há de furtar esse acontecimento com benevolência e rispidez auspiciosa. Amanhã, vou tentar encurtar o tempo e nem bom dia direi, se não for suficiente dormirei de trás para frente”.
Gerson Brasil – jornalista e escritor