Por Gerson Brasil – jornalista e escritor
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Alice mora na Urbia da Soledade, é um sobrado de seis janelas, frontispício conspícuo e verde de vergonha na tinta foragida, sem que se a tenha restabelecido, em razão de poucas moedas, algum cálculo ou por medo das rachaduras abrigarem espirais, alguns arabescos, e, no companheirismo dos gradis enferrujados, estabelecerem uma natureza morta, a abrigar uma porta estreita e muito alta. Consta o número 65 e nada mais.
Qual o Código Postal? Não sei. O número do Seguro Saúde? Também não disponho dessa informação. O número da Carteira de Motorista? Não sei, mesmo porque a carteira pertence a Alice. Alguém mora com ela? Não tenho conhecimento das subjetividades de Alice e as minhas não posso axiomatizar; sobram dúvidas, opiniões contraditórias, troco as cores; a assinatura claudica e nem sempre acerto responder à pergunta, se sou eu mesmo. Penso ser uma armadilha, o zelo do conferente?
Qual uma tabuada aritmética, com a possibilidade de trocar os sinais? Sim, talvez, não, é possível, agradeço, detesto, podem surpreendentemente trocar de lugar e deixar a informação confusa, estridente, gerar aborrecimento igual ou pior ao acontecido com Maria da Silva Dias Santiago das Flores, na inapetência do pintor a borrar o quadro, encomendado, com cintilante reserva, mas agora dormindo atrás do armário, não fosse o espelho a recolocar a senhorita Flores no devido lugar e em diversos travestimentos, sem que a incúria se faça dona do ambiente.
Alice tem um gato na janela. Olhe bem, não fugiu, está na outra janela, a da esquina, há um tubo de ferro por onde o ladrão sobe, nem sempre; e a barra de ferro transversa, na parte interna da janela, dispensa cadeado, protege o sobrado, móveis, utensílios o cofre e o retrato de um dottori, cuja grandeza foi nomear, bastardos desonrosos, mas grandes o suficiente para se tornarem conti, no Mediterrâneo.
A tranca desanima a insistência do ladrão, mas não a abate. O gato pode ser facilmente confirmado, as outras informações dependem de datas, enciclopédias e georreferenciamento. Mas isto não impede a aferição, sem que se logre buscar antecedentes. A constatação por escrito inclui a própria letra, a analogia, a alegoria, o moral, a ética, a lógica, a razoabilidade, a contradição ou o anagógico.
Mas não elide uma desgraça. Talvez para se proteger de apócrifos, comentários maledicentes, desconfianças e invejas que acompanham as chuvas, Alice escreveu uma carta para a Associação Nacional dos Assassinos e para a Procuradoria Nacional da Polícia requisitando todas as informações da família para afastar qualquer dia aziago.
“Excelentíssimos,
… como vossas senhorias hão de acolher, gostaria que me fossem remetidos, todos os papéis, juntas, anotações, registros, cartas, papéis incertos, escritos injuriosos a se comparar as desgraças abatidas sobre os Borges, por um descuido nas transcrições de depoimentos, depois anulados e corrigidos, sem que se tenha certeza se houve os depoimentos e as consagradas testemunhas. Sei do zelo e da habilidade na condução dos negócios por vossas senhorias e, para lhes conferir a lisura habitual, solicito o acréscimo de fotos que possam identificar a família Bernini e imagens geradas por daguerreótipo, litografia, gravura, pintura, esboço, e lembranças de algum traço de personalidade. Minhas escusas, e são muitas, a este labor que os empreendo, mas a estética e a prudência desempenham um largo papel nas nossas vidas, se condensam e nos conduzem acá e além-mares. As comemorações da “Nuestra América” se aproximam e gostaria de estar in totum, de posse de todas as garantias, deveres e direitos para poder beijar amanhã meu amante, que civilmente me acostumbraste.
Desde já,
Agradeço ao Santo Ofício da República de Seios Maternos e intento ser agraciada, para que a incerteza não paralise intermitentemente minha paixão.
Alice Maria Galeazzo Bernin