Parte 1 – Arquitetura e Fortificação Militar
Em Portugal, a figura do arquiteto, como havia se firmado na Itália da Renascença, não se consolidou da mesma forma. Apesar de muitos arquitetos trabalharem principalmente para as ordens religiosas, o que lhes permitia uma prática mais erudita dos seus conhecimentos, eles ficaram conhecidos no universo lusitano como mestres de obras, mais tarde, quando foi estruturada uma carreira, como engenheiros militares. A formação desses mestres de obras era feita nas corporações de ofício, cuja origem remontava possivelmente aos grêmios romanos, ou à antiga civilização grega. E para entender a importância desses profissionais para a metrópole e as colônias precisamos retroceder na história deles e conhecer o processo de sua formação.
As Guildas, corporações originárias do norte europeu, que regulamentavam o processo produtivo artesanal, também tiveram grande influência em Portugal. As Casas dos 24 se estabeleceram em Portugal em várias cidades no século XIV. Eram compostas por 24 homens, 2 de cada ofício, que tinham assento na Câmara. Cada mestre não poderia ter mais de 4 discípulos a seu cargo, no caso de mestres carpinteiros e pedreiros. Para os outros ofícios, apenas 2 discípulos. Antes da criação das Aulas Militares, a formação desses profissionais ocorria nas corporações de ofício. Nestas, o aprendiz começava a desenvolver suas habilidades como pedreiro, depois assumia o posto de mestre pedreiro, e por meio de um processo de avaliação poderia assumir o cargo de arquiteto ou mestre de obras (CARITA, 2001).
No reinado de D. Manuel I (1495-1521), as obras reais ficavam sob a responsabilidade da Casa Real, estrutura que centralizava a sua elaboração e controle de execução. Nomeava-se um arquiteto, cuja formação ainda provinha das corporações de ofício, que responderia pelo cargo de mestre das obras (CARITA, 1999), entretanto, conforme observa a pesquisadora Beatriz Bueno (2003), é possível afirmar que ao final do reinado de D. Manuel I já se havia formado um grupo seleto de profissionais a serviço da Coroa.
A formação dos mestres pedreiros ou arquitetos era centrada no Trivium (Gramática, Lógica, Retórica) e no Quadrivium, metodologia de ensino herdada da antiguidade clássica e praticada nas universidades medievais, que compreendia o estudo da Aritmética, da Geometria, da Música e da Astronomia como complemento da formação das denominadas artes liberais. O Trivium era a base para os estudos mais avançados do Quadrivium. A aprendizagem iniciava-se entre os 13 e 14 anos e durava cerca de 6 anos. Ao completar a formação, passava-se pelo exame dos Juízes dos Ofícios, sendo que no caso dos arquitetos/mestres de obras, o exame era geralmente feito com a apresentação de uma obra realizada. Daí a grande importância do canteiro de obras como elemento de estudo, planejamento, execução e resolução de problemas na adequação dos projetos.
No século XVI, efervescente momento das grandes navegações, o mestre de obras designava um profissional com muitas ações: arquiteto, pintor, escultor, e, em alguns casos, edificador de fortalezas (VALLA, 1996). Os arquitetos que se destacaram no reinado de D. Manuel I foram Mateus Fernandes, Diogo Boitaca, João de Castilho e os irmãos Diogo e Francisco de Arruda. Diogo Boitaca foi o primeiro arquiteto do Mosteiro dos Jerônimos, imponente construção de Lisboa, iniciado em 1502, mas sua principal obra foi o Mosteiro da Batalha, onde trabalhou de 1516 até 1529. Os irmãos Arrudas explicitaram em sua trajetória profissional o processo de profissionalização dos arquitetos portugueses no período, cuja formação era composta de conhecimentos práticos, artísticos e geométrico-matemáticos. Diogo e Francisco de Arruda foram os arquitetos da Torre de Belém (1514 a 1519), da fortaleza de Mazagão (1512) e da Casa dos Bicos (1530). Essas obras retratam profissionais com uma formação completa, que envolvia conhecimentos técnicos, da construção, e conhecimentos artísticos e históricos.
Para gerir com mais diligência o seu vasto império, D. Manuel I efetivou uma reforma administrativa e legislativa. Em 1496 determinou a uniformização dos pesos e medidas de uso corrente no reino e criou um padrão de moeda corrente. Ao lado dessas ações, foram estruturados regimentos diversos, dentre estes, o Regimento dos carpinteiros pedreiros e braceiros e call telha tijolo e tojo madeira e pregadura oficiais. Pode-se considerar que ao inserir vários segmentos pertinentes à área de construção, estruturou-se, também, uma hierarquia profissional, atribuindo-se a cada componente dessa hierarquia a devida responsabilidade e um campo de atuação melhor delimitado. A preocupação com a normatização dos elementos construtivos deve ter exigido das próprias organizações formadoras da mão de obra correspondente uma adequação, mesmo numa sociedade em que a instituição da educação formal ainda não havia se estruturado. O apoio ao desenvolvimento de estudos das Ciências Náuticas e da Matemática foi fundamental para que se criasse uma cultura científica norteadora de ações em várias esferas do conhecimento, por exemplo, a introdução dos estudos da Aritmética e o uso dos algarismos arábicos.
D. João III (1521-1557), sucessor de D. Manuel I, expandiu o império colonial português à sua maior extensão com a investida até o Japão, em 1543. A experiência naval dos portugueses levou a que os seus serviços fossem cobiçados por toda a Europa. Cartógrafos, cosmógrafos e pilotos foram contratados pelas outras potências, principalmente a Espanha, a França e a Inglaterra, levando o que havia de mais avançado em termos de técnica e Ciência Náutica. Francisco de Holanda, António Rodrigues e Miguel de Arruda foram os maiores arquitetos/mestres de obras do período do reinado de D. João III. Miguel de Arruda, filho de Francisco de Arruda, foi o primeiro Mestre das Obras dos Muros e das Fortificações do Reino, Lugares d’Além e Índia, cargo que exerceu a partir de 1548. Foi o autor das traças (desenhos) da Cidade do São Salvador (Brasil), executadas pelo mestre pedreiro Luís Dias. Arruda foi herdeiro de uma formação embasada na vasta experiência do tio e do pai, e também adquirida como auxiliar do italiano Benedetto da Ravena na construção da vila-fortaleza de Mazagão, no Marrocos (BUENO, 2003). Ele é considerado por vários estudiosos como marco fundamental para a definição do perfil do novo profissional da construção civil e militar em Portugal.
António Rodrigues sucedeu a Miguel de Arruda no cargo de Mestre das Obras Régias, assumindo ao mesmo tempo o cargo de Mestre das Obras das Fortificações por cerca de 15 anos. O seu Tratado de Arquitetura Militar, datado de 1576, se tornou a primeira obra voltada à instrução dos jovens da Escola Particular de Moços Fidalgos do Paço da Ribeira (1562/1568/1573), criada em função da instrução do jovem futuro Rei, D. Sebastião, e de alguns jovens nobres destinados a ocupar posições de mando no Reino e nas colônias. O conteúdo do tratado era estruturado em apostilas, que seriam estudadas em aulas, com conhecimentos de Geometria, Trigonometria, Perspectiva e Arquitetura Militar (BUENO, 2003). Antes do acesso aos conhecimentos teóricos e práticos referentes à arquitetura civil e militar, o estudante recebia uma formação baseada na estrutura do ensino das sete artes liberais, acompanhado do latim. Apesar de atender a poucos jovens, a importância da escola do Paço da Ribeira é incontestável para a definição do perfil do arquiteto e do engenheiro militar em Portugal.
REFERÊNCIAS
CARITA, H. Lisboa Manuelina e a formação da Época Moderna (1495-1521). Lisboa: Livros Horizonte, 1999.
CARITA, R. Os engenheiros-mores na gestão do Império: a Provedoria das Obras dos meados do século XVI. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL UNIVERSO URBANÍSTICO PORTUGUÊS. 1415-1822. 2001, Lisboa. Actas […] Lisboa: Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, 2001, p. 393-405.
BUENO, B. P. S. Desenho e Desígnio: o Brasil dos engenheiros militares (1500-1822). 2001. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.
VALLA, M. O papel dos arquitectos e engenheiros-militares na transmissão das formas urbanas portuguesas. Urban, Lisboa, n 1. Disponível em: http://urban.iscte.pt/revista/numero1/margarida.htm. Acesso em: 2 out. 2023.