Por Jade Rodrigues
Quando criança, eu tinha um paninho de estimação. Nunca chegou a ser esfarrapado, pois nada esfarrapado permanecia na casa da minha avó. Ele sempre tinha que estar limpo e bem lavado. Era meu compromisso.
Ele morava na casa da minha avó e me foi dado pela minha mãe depois que ela trabalhou em um hotel enquanto morava fora do país. O paninho já tinha tido um dono antes de mim mas eu não estava nem aí. Meu paninho não pertencia mais a criança nenhuma além de mim, isso que importava.
Talvez fosse um sobrevivente.
Talvez a mala de seus parentes tenha se espatifado durante o check-out do hotel e o paninho tenha ficado pra traz, ou simplesmente esqueceram num dos armários.
Não quis colocar a história à prova — Inventei explicações para muitas coisas seguindo essa fórmula. E em quase todas precisei recalcular a rota. A biografia do paninho, por exemplo, sofreu uma reviravolta inesperada e levou junto a imagem de senhora imaculada que eu tinha de minha avó Rita.
Tudo se deu quando numa viagem para Brasília eu esqueci meu paninho e ele foi tomado por um primo menor. Daí se seu um chora-chora, noites sem dormir. Caos instaurado.
Num desses almoços que tínhamos em família com frequência, com mesas compridas para abrigar grandes travessas, com toalha xadrez, pratos brancos de bordas pesadas… e o paninho. O meu paninho. Ali, sendo segurado por um primo meu bem na minha frente.
Quando fui apontar a tragédia para minha avó, percebi que ela também olhava para ele e, num movimento rápido e furtivo, pegou o paninho da mão do meu primo, o embalou e o enfiou no sutiã e passou para o nosso quarto.
O paninho. O meu paninho.
Ele não era um sobrevivente, ele era um objeto sequestrado agora.
E a criança não teve tempo nem de raciocinar o que aconteceu com o objeto que ela antes segurava em mãos.
E Dona Rita, tinha acabado de tornar-se uma transgressora.
Em vez de me desagradar, a descoberta me fez gostar ainda mais dela. Aos sete anos, já me incomodava o modo como a descreviam como as mulheres deveriam ser: discretas, pacientes, caladas.
Eu, na minha precoce predileção por mulheres rebeldes, detestava aquilo. Mas agora pelo menos eu tinha um elemento novo sobre minha avó. O roubo do paninho levantou a bandeira de uma vida interna que até então eu não sabia que a minha vovó tão doce e meiga poderia levar.
Talvez um tanto turbulenta, perigosa.
Anotei a hipótese e a prova e fiquei esperando por mais.
Eu queria muito mais. Eu ganhei muito mais.