Por Gerson Brasil, jornalista e escritor
Antes, depois, se confundiu; o calendário gregoriano a olhou com chocolate líquido e hastes de biscoitos importados das mãos de Matilde, empertigada, sandálias inoportunas, incapazes de diminuir a altura das portas indo e vindo, ao menor toque na maçaneta; “penso que decoraram para que lado abrir e fechar, não rangem, não mostram os dentes, como todo pensamento, sempre alinhadas a evitar ruídos, mas na cautela ou ardil acolhem, quando admoestadas, algumas considerações, o suficiente para passar de ano”.
Era Hortência, era outubro, de lá a espreitar o aniversário, sem ser possível averiguar a glória; se emparelhava ao relógio, o Cartier, da família, datado de 1935, comprado com alguns anéis e colares, um botão de madrepérolas e outros objetos, talvez emprestáveis, mas de sólida reputação, assinados por Bazar Le Crois, Rua da Grécia, 52; a abrigar sorveteria, assaltantes, a polícia, certa vez um assassinato, mas larga o suficiente para as pessoas não se esbarrarem; nem todos tinham a mesma filiação. A calçada media 6 metros de largura e terminava na praça de cavalos empinados, ameaçadores, mas de bronze. Todos zombavam daquela magnitude de mierda, possivelmente saudosistas, românticos e sem poder se enternecer e se vangloriar de ter conhecido a mulher dos sonhos na sombra daqueles cavalos grosseiros. No hay felicidad bruta.
O aniversário de sólida perspicácia acrescentava fervor cívico pela coincidência de que ainda não haviam desaparecidas as homenagens a Hermógenes, o advogado que impedia o Dr. Lourival a se tornar a pessoa mais importe das conversas. Muitos acreditam no verniz social, não dão prova, mas tomam banho, escovam os dentes, amam, desejam a morte de pessoas detestáveis, e não se dão conta de que o corpo humano é criação de Darwin e não de Deus, muito menos da Medicina, mas só se chama o advogado quando a casa será penhorada.
Sonhara com a Lei, la gracia scripta, escrita pela graça, mas logo o despistou; a vasta cabeleira, o linguajar caliente, intimidatório fazia desaparecer qualquer sucesso de um beijo, aceitável, até mesmo malcriado. Hortência lembrou-se de quando beijou Apolônio, sem que o mesmo frequentasse outubro. Certa vez lhe perguntou se haviam outras maneiras de beijar e também corrigir o cabelo, sempre fazendo anotações sobre o comportamento dos fios face a composição do rosto, principalmente dos cílios, e o caminho que a sobrancelha escolhera.
Pensou em se desfazer de outubro, cogitou esquecer, mas lembrou-se do risco. “E se de repente reaparecer num momento inoportuno? O modo como os pães foram acolhidos pela bandeja, os biscoitos, a pera, os morangos o pequeno bule de chocolate, de café e de leite eram velhos conhecidos. Mas como? Não estava em casa e nem nas ruas que frequentava e sim a 3 mil quilômetros de distância, era a primeira vez, e o hotel em Punta Arenas. As hospedarias, estalagem, se prestavam às fotos, sorrisos de felicidade. Era possível guardá-las também em cartões postais. No hall do hotel havia a Brasserie Sacré Cœur, o purgatório da dieta do Mediterrâneo.
As coxas não estavam amassadas, mas o lençol sim. As coxas não mudaram de cor e nem o lençol e os vincos bem conhecidos. Podia adivinhar-lhes as trilhas, o emaranhado e de quando fingiam esquecer de que estavam presentes. Quem sabe se ministrassem umas aulas a Marta “ me livraria de sempre ajeitar as fronhas”, numa cama de solteiro a me impedir, sem muita convicção, de ter alucinações, sonhos extravagantes, delírios e outras diatribes catalogadas pelo moral e espionadas pela curiosidade da medicina, mas sem poder prescrever a cura. “Com o tempo desaparecem”, disse o médico para minha mãe. “Logo após esses ataques, dê-lhe para beber água com açúcar e evite o almoço e o jantar com refeições salgadas, gordurosas. Utilize as de poucos tons; talvez a senhora não saiba, mas Renoir tinha sonhos terríveis, devido a insistência de matizar as pinturas. Cuidado com as empadas, é um perigo”.
“Levo a bolsa azul marinho, os mamilos? Ontem, a claridade do quarto os flagrou eriçados, suntuosos, entumecidos, cogitei uma farsa, estavam frescos, os presumi nos 23 anos, desde então o trem não utiliza a estação, agora centro cultural. Na terceira coluna, próxima a uma parede, eles pularam da blusa e foram recebidos por um vapor quente e úmido, sem que os passageiros lhe pedissem os bilhetes. Aprecio a cautela, a formalidade, a disciplina, o cumprimento anchova, mas adoro truques, não há regra, manual, só a empatia.
Alertei Francesca, na tentativa de proteger minha amiga de acontecimentos, alheios a lógica, a prudência, mas aquela manhã, clara, seda e de céu anil me fez engolir uma interrogação. Não estudei medicina, mas conheço anatomia e a bunda sempre se acomoda fastidiosamente na cadeira.
“ Não é preciso ir ao médico, não consulte o dicionário, nem o diário de Maximiliano Fernandez. Ganhou reputação, e também maledicências, mas as observações só servem quando se está doente, ajudam a tornar o tédio luminoso. Acontecimentos são irredutíveis à régua. Houve um banho, na quinta-feira, curvei o pescoço e me deparei com uma quase cicatriz. Na cama Mario tinha 78 quilos, nos armários mantimentos e leite em pó; sem o conhecimento das vacas, uma certa perfídia, aboletada no cotidiano. Não seria possível o Martine torná-lo um faquir, detesto gente magra, não me interessa o interior das pessoas e sim a carne, a pose, a enganação. No final da tarde estava, após muito trabalho, redações com propósitos de magnitude e só isso, estava aquosa. Notei que o corpo reclamava compensações, talvez além do vinho, adivinhei-lhe os usos e costumes?
Os lábios ressabiados vão comigo? Devido a acolhimentos vertiginosos de línguas, na imitação de escalar a bandeira, sem que se soubesse se haveria de tremular, postar-se patriótica ou na forma de abrir um dicionário cujas páginas apareceram pela primeira vez em 1929. Ano sempre visto com reserva, devido a maldição dos números ímpares.
Como fazer esse inventário, sem traição, ou traquinagem. Se você dúvida, anote. Minha presença é sempre recebida como a Mulher Azul de Cézanne, mas sobram invejas, realçam a estima, despejam maldições; “quando morrer pouca gente estará no enterro, você verá, é uma carta a mais no baralho, mas é admirada, por simples insinuações”.
O ilíaco e suas propagações vão me seguir? Seria adequado? E se eu alugasse, ou tomasse de empréstimo a Eugênia Torres Santiago, ou fizesse uma imitação, não precisaria ser verdadeira, bastaria o traje de secreta. Não é o conhecimento que alimenta a propalada humanidade e sim a dúvida, a desconfiança. Apontar o erro é uma forma ingênua de anunciar verdades, com alguém sempre disposto a apontar a fraude. Santiago é uma mulher bonita, imitá-la dispensaria uma falsificação e só divergirmos no emprego dos pronomes oblíquos e na forma de dispormos os lábios quando vamos beijar. Disse que as vezes se distrai. “Numa noite, educada, sempre diz quando chega, Paulo Campos me diagnosticou como frígida, fiquei intrigada; se formara em arquitetura, e na faculdade estudava copiosamente e eu temia que os miolos poderiam estourar. Interrompi o beijo e perguntei se também amava as urtigas, além de mim. Uma distração que me ocorreu. Foi o fim do namoro. Não receio a infidelidade dos amantes, e sim a agitação, das falas, como se fosse a garantia da existência. Basta apenas beijar, quando encontrar o beijo”
Hortência y ella misma acertou que dúvidas e aborrecimentos sempre impõem o reconhecimento, uma marca, pouco importa o tamanho. São desprezíveis, mas há de se conviver. É pouco provável a chuva tirar férias, o sol se lesionar no joelho (os ortopedistas odeiam), o desaparecimento das equações matemáticas e as unhas desistirem de se fazer encabuladas.
Pensou em esmorecer a beleza, outubro e a pequena multidão seriam ludibriados, afinal, “não mandei cartas, recados, os beijos não se comportam como normas a serem seguidas, são furta-cor, seios e demais complementos não precisam de passaporte, se ombreiam a albergue, acolhem as graças e voam hereges”. Hortência estava na terceira taça de vinho, sem necessidade ou compromisso de ser benevolente ou assassina.