Quase 90% das pessoas cuidadoras de crianças com TEA são as próprias mães; 47% delas se sentem culpadas pelas condições da criança
O sonho de ser mãe é algo que acompanha diversas mulheres ao longo da vida. Entretanto, algumas pesquisas mostram que a romantização da maternidade é algo prejudicial para a saúde emocional delas. Conforme a comunidade materna Portal Mommys, 49% das mães entrevistadas se sentem em um “limbo emocional” e 80% disseram estar “exaustas”, mesmo não tendo nenhuma doença mental ou física diagnosticada.
Segundo dados da Fundação Getúlio Vargas, 11 milhões de mulheres são mães solo no Brasil, número quase seis vezes maior do que o de pais solo. Um recorte mais recente do IBGE (2024) aponta que mais de 5,5 milhões de domicílios são chefiados por mães solo com filhos menores de idade — e a maioria dessas mulheres (mais de 60%) vive abaixo da linha da pobreza.
Além disso, 72,4% dessas mães solo vivem em domicílios monoparentais, sendo compostos apenas por elas e seus filhos. Ou seja, não moram com parentes ou agregados que teriam o potencial de ajudar nas responsabilidades familiares e na promoção do equilíbrio entre vida pessoal, família e trabalho. Para quem vive uma maternidade atípica, as responsabilidades podem ser ainda mais complicadas, pois os tratamentos contínuos dos filhos demandam mais tempo na vida dessas mães.
O estudo “Cuidando de quem cuida: um panorama sobre as famílias e o autismo no Brasil”, realizado pela Genial Care, rede de cuidado de saúde atípica especializada em crianças autistas e suas famílias, aponta que 86% das pessoas cuidadoras de crianças com TEA são as próprias mães e 47% delas se sentem culpadas pelas condições da criança.
A importância da rede de apoio
A presença de uma rede de apoio composta pelo pai, familiares, amigos, profissionais de saúde e grupos de apoio pode fornecer um suporte inestimável às mães. Essa rede oferece não apenas conforto emocional, mas também recursos práticos e informações valiosas sobre o autismo. Ao ter uma rede de apoio, as tomadas de decisões ficam mais leves, e é através dessa solidariedade e compreensão que as mães encontram força para enfrentar os obstáculos e celebrar as conquistas de seus filhos, criando um ambiente de apoio essencial para o desenvolvimento e bem-estar de toda a família.
Ao compartilhar experiências e conhecimentos, a rede de apoio ajuda as mães a se sentirem compreendidas e menos isoladas, permitindo-lhes navegar de forma mais eficaz pelos desafios únicos que enfrentam ao criar uma criança com autismo. “Como mãe que sempre trabalhou em período integral, precisei criar uma rede de apoio para poder me concentrar no trabalho sem me culpar ou me preocupar excessivamente com o bem-estar dos meus filhos. Estabelecer uma rotina tanto para mim quanto para eles tem sido muito útil. Lidar com a decisão diária sobre como será o dia deles pode ser cansativo, mas ter um roteiro predefinido facilita bastante, permitindo que eu lide mais facilmente com as exceções, como quando um filho fica doente ou quando há uma festa de aniversário para ir”, comenta a Vice-Presidente de Treinamento e Desenvolvimento da Genial Care, Antonia Mendes.
Para Antonia, o maior desafio que as mães carregam é precisar tomar decisões sem se sentirem culpadas. “E se quisermos dedicar mais tempo à maternidade e abdicar do trabalho? Ou de trabalhar na mesma intensidade que outros? Todas as ações terão uma consequência, e tudo bem. O inverso é verdade: se quisermos nos dedicar integralmente ao trabalho, como mães, perderemos alguns momentos com os filhos, e, temos que estar bem com essa decisão também”, acrescenta.
Burnout materno é real?
O burnout materno é o esgotamento emocional causado pelo estresse prolongado relacionado aos cuidados maternos, combinados com as múltiplas obrigações cotidianas. Alguns dos sintomas são sentimentos constantes de culpa, estresse relacionado à administração do tempo, exaustão mesmo após um período de repouso, sentimento de fracasso e impotência, irritabilidade sem motivo aparente, baixa autoestima, tristeza, medo e insegurança, entre outros. Todas as mães, sendo elas cuidadoras ou não, podem passar pelo cansaço mental, mas é importante reconhecer o impacto mental e emocional que elas enfrentam ao lidar com as barreiras para conciliar suas responsabilidades familiares e profissionais.
De acordo com o relatório “State of Motherhood 2024”, mais de 70% das mães relataram que sua saúde mental piorou desde que se tornaram mães. No Brasil, a Escola de Saúde Pública da USP revelou que cerca de 40% das mães brasileiras apresentaram sintomas compatíveis com burnout materno nos primeiros anos da maternidade. “A pressão para se adequar a padrões inatingíveis de produtividade e disponibilidade muitas vezes resulta em estresse, ansiedade e sentimentos de inadequação”, declara Ana Tomazelli, psicanalista e presidente do Instituto de Pesquisa de Estudos do Feminino e das Existências Múltiplas – Ipefem.
Maternidade atípica e os desafios do diagnóstico e tratamento


Ingrid Monte, de 43 anos, é mãe de Pedro, um menino de 8 anos diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (TEA) aos dois anos de idade. Ela relata que o caminho até o diagnóstico precoce foi longo e difícil — e, após ele, surgiram novos obstáculos, como o alto custo do tratamento adequado.
“Conseguir o diagnóstico do Pedro já foi um desafio. Quando finalmente veio, percebi que o tratamento seria outro problema. As terapias variam de R$ 80 a R$ 350 por hora, e muitas crianças precisam de 20 a 30 horas semanais. Além disso, é necessário montar uma equipe multidisciplinar com profissionais como neuropsicóloga, terapeuta ocupacional e fonoaudióloga. Em casos mais complexos, há ainda intervenções como equoterapia e musicoterapia”, conta Ingrid.
A realidade da maternidade atípica no Brasil vai além do acesso ao diagnóstico e aos cuidados clínicos. Segundo Ingrid, mesmo os direitos garantidos por lei nem sempre são respeitados. Um exemplo é a presença de um acompanhante terapêutico nas escolas, direito previsto para alunos com TEA, mas que muitas vezes não é cumprido pela rede pública de ensino. “Na prática, faltam profissionais capacitados para oferecer esse suporte na escola. Isso compromete o desenvolvimento e a socialização da criança”, desabafa.
Entre as políticas públicas voltadas ao tema, a Lei Romeo Mion (Lei nº 13.977/2020) garante a emissão da Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, instrumento que assegura prioridade no atendimento e no acesso a serviços públicos e privados. A norma leva o nome de Romeo, filho do apresentador Marcos Mion, e representa um marco importante na luta por mais visibilidade e respeito aos direitos das pessoas autistas e suas famílias.
O mercado de trabalho e as mães de crianças com deficiência
De acordo com Antonia Mendes, hoje o mercado de trabalho tende a oferecer mais oportunidades para quem pode se dedicar de maneira integral ao trabalho. “Isso implica que a mãe de uma criança atípica pode aceitar isso e ter que montar uma rede de cuidado para seu filho, (que não é simples e se não houver apoio da família pode ser caro), ou ela vai procurar oportunidades de trabalho que proporcionem uma rotina mais flexível, mas isso diminuirá o leque de oportunidades possíveis e muitas vezes pode ter um impacto financeiro negativo”, relata.
Para avançar na carreira, é comum que as empresas esperem um desempenho em alto padrão e uma dedicação consistente. O que muitas mães passam ou escutam é que “se sua maternidade é atípica, ou não, a impede de se dedicar assim, pode ser que outra pessoa na empresa vá avançar antes de você”, informa a vice-presidente.
Dados recentes reforçam o alerta das especialistas. Relatórios nacionais e internacionais mostram que mães de crianças com deficiência enfrentam uma taxa de desemprego duas vezes maior que a média. Ainda que haja avanço na pauta da diversidade, o recorte da maternidade atípica continua invisível em muitas políticas corporativas, o que agrava a sobrecarga dessas mulheres.
Em 2024, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) apontou que o Brasil apresenta uma das maiores lacunas de empregabilidade entre mulheres com filhos com deficiência e mulheres sem filhos. Já no Congresso Nacional, está em debate o projeto de lei que institui o “Estatuto da Mãe Cuidadora”, que prevê jornada de trabalho flexível e prioridade em processos seletivos públicos e privados — medida que visa garantir dignidade e autonomia para essas mulheres.
Antonia Mendes e Ana Tomazelli concordam que as mães que desejam trabalhar e contribuir para o sustento da família não deveriam enfrentar penalidades ou restrições devido à sua condição parental. “É fundamental que as empresas e instituições adotem políticas inclusivas que reconheçam e valorizem a maternidade, garantindo igualdade de oportunidades e tratamento justo para todas as mulheres, independentemente do estado civil ou da parentalidade”, finalizam.
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